28/09/2009

Saber Com Sabor: Literatura e Filosofia Enquanto Artes do Pensar

1. PARA INÍCIO DE CONVERSA

Que é filosofia? Esta não é uma questão de fácil resposta. E não o é porque, se Rousseau tem razão, os filósofos só entram em acordo para discutir. Infelizmente, ele não é o único a dizer isto. Hume comparava a filosofia de seu tempo como um verdadeiro campo de batalha, no qual “não há nada que não seja objeto de discussão e sobre o qual os estudiosos não manifestem opiniões contrárias. A questão mais trivial não escapa à nossa controvérsia, e não somos capazes de produzir nenhuma certeza a respeito das mais importantes. Multiplicam-se as disputas, como se tudo fora incerto; e estas disputas são conduzidas de maneira mais acalorada, como se tudo fora certo”. Não é diferente o que pensa Kant. Para ele, a filosofia vivia flutuando num mar de opiniões, sem leme, sem bússola; perdida em meio a devaneios. E não deixou de ser assim depois dele, a despeito de sua pretensão de pôr um fim a toda essa celeuma.Se não há consenso entre os filósofos, talvez a melhor maneira de definir a filosofia seria dizer que ela é o que os filósofos fazem. Mas que fazem os filósofos? A pergunta já é a própria resposta: fazem filosofia. Mas assim voltamos ao ponto de partida, continuamos sem saber o que é filosofia. Que fazer? Que tal, então, indicar os textos de Platão, Aristóteles, Descartes, Hume, Kant, Sartre e de outros filósofos famosos, para, em seguida, dizer que filosofia é o que cada um deles fazem? Mas, para quem nunca leu esses pensadores, essa resposta não o deixará satisfeito. Se se trata de alguém que não se deixa convencer facilmente, dirá que estou dando voltas, me esquivando de responder a questão. Poderia então perguntar, se não existiria alguma coisa de comum entre todos esses filósofos e, se essa identidade, não seria a resposta adequada a questão formulada. Decerto que sim. De fato, nenhum filósofo discordaria que a filosofia deriva da palavra grega Sophia, que significa «amor à sabedoria». Ainda que vaga, essa definição é alguma coisa melhor do que dizer que filosofia é o que fazem os filósofos.Mas isso ainda não é suficiente, não responde a questão que pergunta que é a filosofia. Será que não há alguma coisa de comum sobre a qual esses filósofos se reúnem para discordarem entre si, para falar de acordo com Rousseau? Decerto que há. Que é então? Uma resposta breve é a de que nenhum filósofo discordaria que a filosofia é uma atividade, isto é, uma forma de pensar acerca de certas questões, que surgem por conta da característica peculiar do homem, enquanto ser que só é na medida em que está se fazendo. Sua especificidade é a indeterminação, pois é um ser contingente, por isso mesmo, obrigado a tomar decisões a respeito de sua própria vida, do rumo de sua própria existência. Com efeito, sempre que os homens não conseguem mais se reconhecer nas representações e nos valores vigentes na sociedade, surge, então, a necessidade de uma justificação, de uma avaliação de toda a vida ao julgamento da razão, para discernir o que é e o que deve ser, ou, como diziam os gregos, o que é o fato e o que é a norma. Não é por menos que Kant entende a filosofia como uma espécie de tribunal da razão. Enquanto tal, sua característica mais marcante é o uso de argumentos lógicos. Conseqüentemente, a atividade dos filósofos é, tipicamente, argumentativa: ou inventam argumentos, ou criticam os argumentos de outras pessoas ou fazem as duas coisas.A filosofia é, portanto, uma forma de saber argumentativo. Extrai sua força e poder de convencimento da lógica, seja esta analítica ou dialética. É por isso, uma atividade que exige disciplina metódica, regras de pensar. É uma atividade racional, e que, por isso mesmo, exige do filósofo um distanciamento da vida, para submetê-la à frieza de argumentos lógicos. Para os racionalistas, que não concedem nenhuma concessão aos sentidos, a filosofia não pode partir do sentimento, da intuição, do desejo ou de representações dadas pela realidade imediata. Enquanto atividade, que é reflexão da vida, ela tem de se ater a puros pensamentos e neles se mover. Não sem razão, que Hegel aconselhava a juventude alemã, que pretendia abraçar a filosofia como objeto de estudo, a esquecer o ver e o ouvir; subtrair-se à representação concreta e se retirar para a íntima noite da alma, para aí aprender a ver.Diferentemente da filosofia, a literatura não toma distância da vida. Pelo contrário, ela transpira vida. Antes de se tornar objeto de estudo dos especialistas, ela foi vida, criação de uma pessoa, que sente necessidade de extravasar, de se doar ao outro. Ela é simulação da vida, enquanto experiência recordada pela imaginação. Falando da criatividade de José Lins do Rego, Graciliano Ramos nos diz que seus romances "dá-nos a impressão de ouvir o rumor do vento nos canaviais, de sentir o cheiro do mel nas tachas; percebemos até, nos seus diálogos, o timbre da voz das personagens". Diz o mesmo de Jorge Amado. Sua imaginação é tão forte que "ele supõe falar a verdade ao narrar-nos existências românticas nos saveiros, nos cais, nas fazendas de cacau". Temos a mesma impressão quando lemos O Quinze, de Raquel de Queiroz. A sensação que sentimos é a de estar deitado numa rede, de longas varandas bordadas, armada no alpendre, a ver a bicharada ruminando pelos terreiros da casa. A descrição é tão forte e viva que chega a nos arrastar para dentro daquele mundo construído com as memórias que o tempo guardou na alma da escritora. Com você, Graciliano, experimentamos a mesma coisa. Quando li pela primeira vez Vidas Secas, senti a terra quente nos pés e os calcanhares rachados. Senti o cheiro rabujento da baleia, seus latidos de dor pela carga de chumbo que pegou bem no meio dos seus quartos traseiros e inutilizou uma de suas pernas. Ferida de morte, Baleia deita-se. Queria dormir. Lembra-se de Fabiano, seu dono amado que agora lhe tirava a vida. "Acordaria feliz num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes".Tudo isso me faz lembrar dos meus tempos de molecote no sertão. Trago comigo até hoje a imagem do meu pai montado em seu cavalo marchador. Adorava vê-lo passeando em sua montaria, todo faceiro, pelos terreiros da casa. Todas às tardinhas, costumava montá-lo. Dizia que era para treiná-lo. Era uma verdadeira orquestração de sons e cores. Os cascos batendo contra os pedregulhos arrancavam faíscas do chão. Dos buracos das ventas saía um nuvem de fumaça quente. A cada baforada, ouvia-se o sopro de suas narinas se abrindo e se fechando. De suas virilhas, vinha um som oco de seus testículos batendo contra as paredes internas de suas coxas, ploc, ploc, ploc...Se foi assim, não sei. Só sei que conto o que vivi como minha imaginação me deixa recordar. São restos de memórias temperadas com imaginação. Memória e imaginação são os ingredientes com os quais o escritor tece o seu texto literário. Seu criador é um imitador da vida. Não é um filósofo que, por conta das regras do pensar, só admite a existência de uma verdade. O texto literário, não. Despido da armadura dos raciocínios lógicos, experimenta a vida como ela é, como ela pulsa.É a liberdade poética do pensar que faz o texto literário. Fernando Pessoa é quem diz. Pensando a vida, ele traduz as suas verdades como elas são sentidas, não como são pensadas segundo os cânones da lógica. Esse monstro da poesia, que passou a vida inventando a vida, soube auscultar as verdades do viver para assim descrevê-las:Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de por que se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Não era que um via uma coisa e outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro um outro lado diferente. Não: cada um via com um critério idêntico ao outro, mas cada um uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão. Fiquei confuso desta dupla existência da verdade.Decerto que o filósofo, educado para pensar segundo as regras da lógica, não admitiria essa dupla existência da verdade. Uma coisa não pode ser e não ser, ou é ou não é. Dizer que duas pessoas vêem diferentemente uma mesma coisa, é o mesmo que admitir que a coisa é uma e outra ao mesmo tempo. Isso é ilógico, diria, certamente, o nosso filósofo contrariado por esse absurdo.A literatura abraça esse absurdo, pois é vida. O mundo criado pelo artista literário é feito de verdades que não são mensuráveis pelos padrões do pensamento científico. Ela não nasceu para convencer as pessoas, como o faz a filosofia, mas sim, para seduzi-las. Um escritor, certamente precisa dispor da técnica, conhecer a gramática, mas se não tiver a magia para encantar o leitor, de nada adianta. Ele deve ser como um bom conversador, um bom sedutor. Diferentemente do filósofo, que fala ancorado em argumentos lógicos, o bom escritor, como diz Batista de Lima, é aquele que coloca a si próprio numa deriva. "A boa escritura é a criativa. A criatividade é uma deriva. Como é uma deriva a paixão. Apaixonar-se é ficar à deriva", perder-se para se encontrar. Daí a diferença entre a filosofia e a literatura. Aquela argumenta; esta, seduz.2. BRINCANDO DE ESCRITORFui seduzido pela literatura quando ainda era moleque. Menino do sertão, criado solto nas capoeiras, vivia como os bichos. Distante do mundo civilizado, somente vim a ter contato com a leitura, quando minha irmã voltava de férias do internato com alguns livros escondidos na mala. Desasnado sob a disciplina da palmatória, pude ler, ainda que com dificuldade, os tesouros que, furtivamente, dela pegava. À luz da lamparina, ficava até altas horas da noite devorando os romances proibidos que ela guardava a sete chaves; longe dos olhos inquisidores dos nossos pais.O tempo passou, até que meus pais resolveram me mandar estudar na cidade. Queriam que eu me formasse em medicina. Virasse doutor para voltar para o interior cheios de ensimesmamentos, feito gente metida a besta. Igual aos meus primos ricos, já que eu pertencia à parte pobre da família.Foi a minha desgraça. Os transtornos da vida me afastaram da leitura e me obrigaram a ler somente aquilo que pudesse me fazer um bom teórico. Até há pouco, nenhum tempo pude dedicar a leitura de textos literários. Economia, filosofia, sociologia, história era só o que eu lia. De tanto me empanturrar de teorias, terminei por cair numa profunda crise existencial. Sofri uma depressão tão grande que chegou a me causar um mal-estar irritante no nervo ciático. Minha perna esquerda ardia do quadril até o peito do pé. Quase fui parar numa mesa de cirurgia. Por pouco não fui cortado.Passei dois anos pulando de médico em médico. Ninguém sabia direito o que diabos se passava comigo. Muitos dizem que era problema de cabeça. Um bom psicólogo poderia me ajudar. Se era isso, o tempo resolveria.Foi nesse período, que voltei aos textos literários. Fiquei tão impressionado com as leituras, que resolvi me meter a besta. Resolvi escrever sobre minha vida. Terminei o texto há pouco tempo atrás. Como hoje estou brincando de escritor, e não tenho mais nada a dizer sobre literatura e filosofia, já foi um parto chegar até aqui, deixem-me ler um pequeno trecho do texto, que fala do meu parto, isto é, do meu nascimento. Comentarei com vocês o parto de alguns parágrafos, que me custaram sofridas horas de imaginação. Com isso encerro a minha fala, agradecendo pela paciência que até agora tiveram comigo.x..x.x.Nove horas da noite. Um gemido, seguido de um grito abafado, chegam à sala. Incomodado, meu pai sai do sono pesado em que estava mergulhado desde o anoitecer. Com má vontade se escancha na rede. Aguça os ouvidos e espera por novo chamado de socorro que não vem. Aborrecido vai até o quarto. Afasta o lençol, que fazia as vezes de porta, e espicha o pescoço como se quisesse apurar a vista para enxergar melhor o que se passava lá dentro.As chamas amarelas da lamparina, dependurada na parede, eram fracas. Mal dissipavam a escuridão guardada pelas quatro paredes daquele quarto. Do umbral da porta de pano, improviso da necessidade, meu pai vê minha mãe deitada numa rede. Gotas de suor desciam por sua testa, a escorregar pela sua face pálida de dor, até se perderem por entre as dobras ensopadas do lençol que trazia preso entre os dentes.- Isso é lá hora de sentir dor! Praguejou meu pai com aquele humor sertanejo de dias de lundu. - Que é que está sentindo, Coque?Era assim que ele chamava minha mãe... Coque, de Alacoque.- Por que não falou mais cedo?Teve o silêncio como resposta. Esperou um pouco mais. Nenhuma palavra. Trombudo, retorna furioso para a sala. Passa uma das pernas por cima da rede. Escarranchado, segura a cabeça entre as mãos. Aperta-a com força, como se quisesse espremer de dentro dela pragas para jogá-las contra o azar que o incomodava naquela hora da noite.O desconforto da situação deixou meu pai furioso. Continuou a praguejar baixinho, com medo de que minha mãe pudesse ouvi-lo. Ele sabia que ela não o incomodaria por pouca coisa. Mulher de fibra, afeita à dureza da vida sertaneja, só pediria ajuda na última hora. A fisgada que sentira no pé da barriga, quando ainda estava à beira do fogão, não a assustou. Uma dorzinha de nada lá ia impedi-la de fazer o jantar do seu marido! Mulher cumpridora de suas obrigações, não arreda o pé de seus afazeres por qualquer besteira. Engoliu a dor. Serviu o jantar, lavou os pratos e foi-se deitar, na esperança de poder esperar até o dia amanhecer. Aí tudo seria mais fácil.Infelizmente, as coisas não aconteceram assim. As dores aumentaram de intensidade; iam e vinham como maior freqüência.Meu pai já havia caído novamente no sono, quando uma nova fisgada, mais forte e aguda, fez minha mãe gemer mais alto. É... parece que não tinha jeito não. Ele não iria conseguir dormir naquela noite. O melhor a fazer seria tomar providências para ajudá-la.E foi o que fez.Sentou-se escanchado na rede. Segurando-a com as duas mãos, com um supetão, puxou-a contra o peito para poder levantar-se.De pé, ainda com a rede entre as pernas, tateia com os pés o chão de barro batido à procura de suas currulepes. Encontra-as e calça-as. Pega uma corda de laçar e se dirige para a roça, onde o cavalo e o jumento de botar água comiam tocos de sabugos com palha de milho. Era um pequeno cercado, pegado com os fundos da casa.Com a corda numa mão e uma cuia de milho na outra, meu pai se aproxima do cavalo. Chama-lhe pelo nome, balançando o milho que trazia na cuia. Acostumado a comer ração, o animal não resiste ao chamado pavloviano do seu dono. Sem oferecer resistência, se deixa laçar e ser conduzido até o alpendre da casa.O alpendre não era lá grande coisa. Parecia mais uma latada; construída para proteger os animais de montaria do calor escaldante do sol do sertão. Qualquer pessoa de estatura mediana podia alcançar com a mão o frechal. Era aí onde meu pai guardava algumas utilidades. Entre as telhas e os caibros, ele enfiava as foices e roçadeiras e outros pequenos instrumentos de trabalho. Nunca faltava um bom rolo de sebo de carneiro capado. De mil e uma utilidades, o sebo quente era bom para curar braços e pernas desmentidas, desconjuntadas. Servia também para amaciar cordas de relho, arreios e outras tantas coisas.Era uma casa de taipa. Tinha o teto acaçapado. O piso era negro, de terra batida; cheio de buracos. As paredes eram negras, rebocadas com barro cru, rachado pelo calor do sol.Os cômodos eram contados. Nada além do necessário. Duas salas, um quarto de dormir, uma cozinha e uma despensa.Duas portas de madeira de cedro fornido faziam a comunicação entre a sala principal e o alpendre. Eram portas divididas ao meio. A parte de cima, sempre aberta, parecia mais uma janela. A parte de baixo estava todo o tempo fechada, e com a tramela passada. Era para impedir que a miuçalha invadisse a casa.Um corredor estreito, com o piso cheio de buracos, ligava a sala principal à sala de jantar. Do lado esquerdo de quem entrava pelo corredor a dentro tinha um quarto escuro, com uma janela localizada bem perto do telhado. Era de lá que viam os gemidos de minha mãe.Com a sala de jantar confinavam a cozinha e a despensa.A cozinha era pequena. Um jirau fazia às vezes de uma pia de lavar louça. Entre uma refeição e outra, enormes pratos de barros descansavam emborcados, arrodeados de panelas de barro de fundo rachado, encardido de tanto levar fumaça.O fogão estava todo o tempo acesso, mesmo quando nada se cozinhava. O bule de café precisava manter quente o seu conteúdo, como se estivesse sempre a esperar alguém a qualquer momento.A despensa era muito escura. No fundo, se levantava um paiol de milho que ia até perto do teto. Pegado a uma das paredes laterais, ficavam enormes tubos de flandre, entalados até a boca, de feijão. Na parede oposta, sobre um grande banco de aroeira maciça, descansavam sacos de estopa cheios de rapadura preta, arroz, farinha e açúcar.Ao redor de toda a casa, um enorme terreiro a separava do monturo, onde ficavam o curral das vacas e o chiqueiro das cabras e ovelhas e o roçado do cavalo e do jumento de botar água. No meio do terreiro, tinha um mourão de aroeira, fincado firmemente no chão, que servia para amarrar os animais mansos e brabos.Era assim a casa onde naquela noite minha mãe gemia de dor.Do alpendre, meu pai podia ouvir a sua respiração ofegante.Apressa as providências.Com a sela numa mão e a esteira na outra, meu pai se aproxima do cavalo, que se entretinha fuçando os últimos caroços de milho que haviam sobrado no fundo da cuia. Joga a sela no lombo do animal, puxando-a até perto da garupa. Em seguida, pega o rabo do cavalo. Arruma-o na forma de cacho, passando-o pela laçada do rabicho, como assim fazem a mulheres ao amarrar os cabelos atrás da nuca. Depois afivela as cilhas, por último, põe as rédeas.Tudo pronto!Com passadas largas, meu pai vence o alpendre, atravessa a sala e emboca corredor a dentro. Chega ao quarto onde estava minha mãe e da porta bodeja:- Estou indo, Coque. Volto já. Vou num pé e volto noutro.Ao passar de volta pelo alpendre, pega o chicote de coro cru e o enfia no pulso. Monta no cavalo e sai em disparada.Meia hora depois chegava ao seu destino.- Boa noite comadre Medalha!Passaram-se alguns minutos, até que uma voz responde lá de dentro:- É o compadre Fuloro?Era assim que as pessoas mais íntimas chamavam meu pai. As mais formais, preferiam chamá-lo de Floro; abreviação carinhosamente improvisada do seu verdadeiro nome: Florentino.- Sim, comadre, sou eu; Floro.- Numa hora dessas, compadre! Que aconteceu?- A mulher tá lá em casa se esvaindo de dor, comadre.- Valha-me Deus, compadre! Espere um pouco. É só o tempo d'eu me arrumar.Não demorou muito para o vulto de Dona Medalha aparecer à porta.- Tô pronta, compadre. - Mas tá um bocado escuro. Não é melhor fazer uns fachos, compadre?- Tem razão, comadre!Meu pai desapeia do cavalo e vai até um monte de lenha. Escolhe dois pedaços fornidos de sabiá; ainda maduros. Esfacheia suas extremidades. Em seguida, aproxima um deles da lamparina, até pegar fogo. Guarda o outro, entregando o que estava acesso a sua comadre.- Pé na estrada, comadre! É um bom pedaço até lá em casa... É quase uma légua de caminho!À frente do cavalo, Dona Medalha caminhava com pressa. O caminho estreito, cheio de grotas e buracos não os deixava andar lado a lado. O jeito era seguir um depois do outro, enfileirados como patinhos atrás da mãe.Quando o último facho chegava ao fim, Dona Medalha e meu pai botavam o pé no terreiro de casa.Do aceiro Dona Medalha anuncia sua chegada. Grita:- Cheguei, comadre Alacoque!Apressa os passos. Esbaforida, chega ao quarto de minha mãe. De tanta dor, seu rosto pálido lembrava uma flor de algodão.Afobada, Dona Medalha dá as ordens:- Põe a chaleira d'água no fogo, compadre. Escalde a bacia grande bem escaldada. Vou precisar dela.Eram os preparativos para esperar a minha chegada.Cheguei às quatro horas da manhã. Demorei um bocado. Desde a boquinha da noite que eu anunciava a minha visita. Minha mãe foi quem não levou muito a sério os beliscões que eu dava em sua barriga... Aquelas fisgadas que ela sentia de vez em quando. Quando pus a cabeça para fora, Dona Medalha a agarrou com força, puxando-a com cara de poucos amigos. Afinal de contas, fazia tempo que eu embromava para nascer. Dei uma trabalheira dos diabos.Parece que eu estava adivinhando. O que me aguardava do lado de cá de fora da barriga de minha mãe não parecia coisa muito boa.Ainda tentei voltar pra dentro da sua barriga. Infelizmente, já era tarde. A desgraçada daquela mulherzinha, que atendia pelo nome de Medalha, já tinha cortado o meu cordão umbilical. Exibia-o para minha mãe como se fosse um verdadeiro troféu. Um coroamento por me trazer para o lado de cá da vida.Talvez seja assim que se sentem as parteiras. Afinal de contas são elas que ajudam a trazer ao mundo vidas novas; esperanças novas.Foi assim que eu nasci. E é com essa cara deslavada que conto a vocês como tudo aconteceu. Se eu consegui seduzi-los, coisa que talvez nunca vou saber, virei um escritor.

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