O Encontro de Hegel e Marx com a Economia Política Clássica
I. CRITÉRIOS PARA UMA AVALIAÇÃO DA LEITURA DE HEGEL DA ECONOMIA POLÍTICA
No seu sentido bem geral, a Filosofia do Direito(2) é a exposição das diversas figuras assumidas pela vontade, desde as mais simples e abstratas até alcançar as mais ricas e cada vez mais concretas(3). Na realidade, estas figuras são expressão de um processo histórico, no qual a vontade realiza uma verdadeira odisséia, na sua luta para se efetivar como vontade verdadeiramente livre. O ponto de partida desta odisséia, como se sabe, são as formas imediatas de apropriação: a posse e a propriedade. Através destas formas, o homem se dirige ao mundo e nele realiza sua vontade, enquanto direito universal absoluto, de se apossar de toda e qualquer coisa que o cerca(4). Mas, esse direito de apropriação, para falar de acordo com Hegel, não é senão a expressão de uma vontade particular, portanto, arbitrária e contingente. Com efeito, na posse, o que está em jogo é tão somente uma relação da vontade consigo mesma, na medida em que sua ação (da vontade) leva em conta unicamente o prazer que a possessão da coisa lhe proporciona. Sendo assim, a efetuação do querer da vontade particular elimina o que há de racional na sua relação com as outras vontades, pois o que lhe importa é exclusivamente a saciação de seus desejos, paixões e instintos particulares.Entretanto, a vontade não pode permanecer fechada nela mesma, não pode viver apenas da sua relação unilateral com as coisas. De fato, toda e qualquer ação introduz alterações na realidade empírica, o que obriga a vontade a reconhecer as ações de outras vontades, sob pena de não conseguir realizar seus próprios desejos e paixões. O ato de se apropriar de algo implica excluir o outro deste ato, o que pode privar uma das vontades da possibilidade de satisfazer seus carecimentos e desejos. De sorte que, assim sendo, somente quando a vontade reconhecer, voluntariamente, o direito de posse de outras vontades, ela poderá atribuir à coisa o predicado de ser sua propriedade. Pode, então, afirmar: "esta coisa é minha, aquela é de outrem".A propriedade, portanto, rompe com os limites da vontade na sua ação unilateral e a põe em relação com outras vontades. Esse reconhecimento, todavia, permanece precário, contingente, porque da mesma forma que se pode reconhecer alguém como proprietário de alguma coisa, pode‑se também deixar de reconhecê‑lo como tal. Daí porque a propriedade só pode ser assegurada mediante à instituição do contrato, que obrigue a todos os indivíduos a se reconhecerem como proprietários. E só pode fazê‑lo na condição de ser posto por uma vontade exterior à dos proprietários, ou seja, se assumir a forma de lei, isto é, se for posto pelo Estado. Portanto, o ato de reconhecimento implícito, exigido pela relação de propriedade, é um ato de reconhecimento que não se funda numa relação interna, portanto necessária. Por tudo isso, no âmbito das formas abstratas de apropriação, a vontade não é verdadeiramente livre, posto que sua relação com as outras vontades permanece uma relação de exterioridade.
____________________________([1]) Hegel, Georg Wilhelm Friedrich. Principes de La Pholosophie du Droit ou Droit Naturel et Science de L'État en Abrégé. Trad. de Robert Derathé.([2]) Para uma exposição mais detalhada das diversas figuras assumidas pela vontade, ver Teixeira, Francisco José Soares. - Economia e Filosofia no Pensamento Político Moderno. - Campinas: Editora pontes, 1995.([3]) "La personne a le droit de placer sa vonlonté dans n'importe quelle chose ‑ qui par là devient la mienne ‑ comme but substantiel de cette chose, puisque celle‑ci n'en a pas en elle‑même et qu'elle recçoite pour destination et pour âme ma volonté. C'est le droit absolu que l'homme a de s'aproprier toutes choses" (Hegel, G. W. F. Principes de La Philosophie du Droit... op. cit.& 44. P.102).
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