28/09/2009

LIÇÕES DE CAIO PRADO JÚNIOR E SUA CONCEPÇÃO DE HISTÓRIA NA “FORMAÇÃO DO BRASIL CONTEMPORÂNEO”

UMA LEITURA COMENTADA DO TEXTO


Francisco José Soares Teixeira[1]


INTRODUÇÃO
A ECONOMIA COLONIAL E AS RAIZES DA FORMAÇÃO DO BRASIL CONTEMPORÂNEO


“Formação do Brasil Contemporâneo” veio a público no ano de 1942, quando seu autor contava com 25 anos de idade. De lá para cá, já são transcorridos quase sete décadas. Durante esse longo transcurso de tempo, a sociedade brasileira evolui e se modernizou. O País se industrializou e se transformou numa das maiores economia do mundo; em 2002, de acordo com o último relatório anual da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (UNIDO), o Brasil ocupava a oitava posição no produto industrial do mundo. Dentre as treze maiores economias do Planeta, o Brasil tinha o 11º Produto Interno Bruto (PIB), atrás dos EUA, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, China, Itália, Canadá, Índia e México e à frente da Rússia e da África do Sul.

Teria o Brasil mudando tanto assim, a ponto de apagar todo e qualquer vestígio da herança colonial? Ninguém melhor do que o próprio Caio Prado para responder essa questão. Trinta e cinco anos depois da publicação de “Formação do Brasil contemporâneo”, em 1977, no adendo de seu “A Revolução Brasileira”, ele escrevia que o Brasil é um

país que no contexto do mundo moderno - é para isso que sobretudo devemos atentar – não representa mais do que um setor periférico e dependente do sistema econômico internacional sob cuja égide se instalou e originalmente organizou como colônia a serviço dos centros dominantes do sistema. E em função dessa situação se estruturou econômica e socialmente. É certo que deixamos de ser, em nossos dias, o engenho e a “casa grande e senzala” do passado, para nos tornamos a empresa, a usina, o palacete e o arranha-céu; mas também o cortiço, a favela, o mocambo, o pau-a-pique, mal disfarçados, aqui e acolá, por aquele moderno em que minorias dominantes e seus auxiliares mais graduados se esforçam com maior ou menos sucesso por acompanhar aproximadamente, com o teor de suas atividades e trem da vida, a civilização de nossos dias[2].

E prossegue com seu exame da perspectivação do Brasil. Afirma que, apesar das

adaptações necessárias determinadas pelas contingências de nosso tempo, somos o mesmo passado. Senão quantitativamente, na qualidade. Na “substância”, diria a metafísica de Aristóteles. Embora em mais complexa forma, o sistema colonial brasileiro se perpetuou e continua muito semelhante. Isto é, na base, uma economia fundada na produção de matérias-primas e gêneros alimentares demandados nos mercados internacionais[3].

Em consequencia dessa base econômica, diz ele,

o que temos é uma ordem social que se caracteriza pelo extremo afastamento material e cultural, dentre si, das categorias sociais, com a grande massa da população reduzida a ínfimos níveis. O que se reflete, como conseqüência, e não podia deixar de ser, na mediocridade do conjunto, com exceção mínima dos reduzidos setores no ápice da pirâmide social[4].


Se vivo fosse, hoje, Caio Prado, certamente, não mudaria muita coisa do que escreveu em 1977; pelo menos, qualitativamente. O Brasil, que interrompeu o seu processo de industrialização a partir dos anos 80 do século passado, cada vez mais se prende ao mercado externo como produtor de bens primários e semi-manufaturados. Com efeito, a economia brasileira é a maior exportadora mundial de oito commodities agrícolas, tais como açúcar, café, suco de laranja, soja, carne bovina, carne de frango, fumo e etanol. É o maior produtor mundial de minério de ferro e de castanha-do-pará. Hoje, quase dois terços de suas exportações são do commodities (agrícolas, minerais e metálicos), oriundas de setores em recursos naturais. Os restantes 35% representam a participação de manufaturas; mesmo assim, com poucos itens de alta tecnologia, aptos a competirem em mercados internacionais mais dinâmicos. Com efeito, em 1989, 45,28% de sua pauta de exportação era de commodities primárias. De alta tecnologia, o país exportava apenas 10,88%. Quase 15 anos depois, em 2006, a participação dos produtos agrícolas subiu para 48,40% e a participação de produtos de alta tecnologia permaneceu baixa: subiu de 10,88%, em 1989, para 12,15%[5]. Comparada com a China, cuja pauta de exportação é composta por 93% de produtos manufaturados, o Brasil está longe de ingressar no rol das economias exportadoras de mercadorias intensivas em tecnologia. Na Índia, o percentual de manufaturados responde por 80% de suas exportações.

Como se pode perceber, o Brasil caminha a passos largos em direção a uma reprimarização de sua pauta de exportações. Em razão disso, perde qualquer controle sobre os preços de suas mercadorias exportadas, que dependem das bolsas de mercadorias ou da lei da procura e oferta a nível internacional. A diferença com Brasil agroexportador, que vai da colônia aos anos 30 do século passado, é que a partir daqueles anos, se instaura um modelo de acumulação “qualitativo e quantitativamente distinto” do que fora no passado e que passará a depender de uma realização interna crescente, para falar de acordo com Francisco de Oliveira[6]. Com efeito, hoje, o Brasil é uma economia relativamente fechada, que exporta apenas um pouco mais de 13% do seu Produto Interno Bruto (PIB), se comparado com outras economias, como a Coréia do Sul, que exporta cerca de 50% do seu PIB; o México, 40%.

Apesar de a economia brasileira, hoje, depender substancialmente do mercado interno para a realização de sua produção, mesmo assim, persistem profundas desigualdades sociais. Para se ter uma idéia das disparidades sociais, a parcela da riqueza produzida no país, que cabia à classe trabalhadora, em 2004, era pouco menos de 30%. Não há como negar: a dívida social, herdada do período colonial, continua a crescer. Hoje, as grandes cidades são cercadas de favelas, em que seus habitantes não têm direito a saúde, a educação, a moradia, etc. Não sem razão, o Brasil tem um baixo índice de desenvolvimento humano (IDH), ocupando a 70ª posição mundial. Na América Latina, seu IDH é mais baixo do que o do Chile, Argentina, Uruguaia, Cuba, México, Venezuela.

A concentração da renda e da riqueza no Brasil é um problema secular. De acordo com Pochmann, em pleno século XXI,

somente 5 mil clãs apropriam-se de 45% de toda a riqueza e renda nacional, embora o país tenha mais de 51 milhões de famílias. Se considerar somente a parcela da população que se concentra nos 10% mais ricos, verifica-se que 75% de toda a riqueza contabilizada são por ela absorvida. Em outras palavras, restam para 90% da população brasileira somente 25% da riqueza e da renda nacional[7].

Essa concentração da renda não é uma conseqüência das pelas políticas neoliberais, que tomaram conta do país nos últimos 20 anos. Muito pelo contrário. Ainda de acordo com Pochmann,

já no período da colônia portuguesa durante o século 18 havia 10% da população responsável pela absorção de cerca de 2/3 da riqueza. Mesmo com o abandono da condição colonial, passando para a situação de Independência nacional e pelo regime imperial, o país continuou a registrar uma incrível estabilidade no padrão excludente de repartição de renda e riqueza[8].

Em consequencia dessa brutal concentração de renda, mais de 30% das ocupações no Brasil dependem de trabalho prestado para as famílias ricas. Valendo-se mais uma vez de Pochmann, este constata que

20,5 milhões de famílias no Brasil possuem pelo menos um membro desenvolvendo atividades de prestação de serviços às famílias. Há o caso, por exemplo, de 4,3 milhões de famílias (7,3% do total) que possuem dois ou mais membros ocupados no trabalho para famílias. No ano de 1996, o universo de unidades familiares com a presença de um ou mais membros exercendo atividades de prestação de serviços às famílias era de 13,1 milhões, o que equivaleu a 30,6% do total. Em dez anos, a quantidade de famílias dependentes da prestação para famílias aumentou 56,5%[9].

Um verdadeiro retrato do Brasil dos barões do café e do açucar, que dependiam de uma enorme criadagem para servir a si e a sua família. Fenômeno que se reproduz no Brasil do século XXI. Atualmente, há famílias que contam até com 20 empregados, que vão desde o jardineiro, esteticista, passando pelo motorista, piloto de helicóptero, caseiros, personal trainers, guarda-costas etc.

É por tudo isso que “Formação do Brasil Contemporâneo” continua um livro atual. Apesar de todo progresso e desenvolvimento das forças produtivas, é nas páginas desse clássico que se devem buscar as raízes históricas do porquê de a sociedade brasileira ainda continuar a carregar, no seu seio, as cicatrizes abertas de um passado que resiste a ficar para trás. Daí a razão por que se deve voltar ao período colonial, para aí encontrar as razões da formação do Brasil contemporâneo, do Brasil que entrou no século XXI com um enorme passivo social. Mas, por que regressar a um passado tão longínquo - pergunta que Caio Prado não deixa de fazer a si mesmo. Porque é naquele período que o Brasil nasce e se constitui como nação, feita da fusão de matrizes raciais extremamente diferenciadas, que deu origem a um dos povos mais homogêneos do mundo, lingüística e culturalmente. Como ele mesmo o diz,

O Brasil contemporâneo se define assim: o passado colonial que se balanceia e encerra com o século XVIII, mais as transformações que se sucederam no decorrer do centênio anterior a este e no atual. Naquele passado se constituíram os fundamentos da nacionalidade: povoou-se um território semideserto, organizou-se nele uma vida humana que diverge tanto daquela que havia aqui, dos indígenas e suas nações, como também, embora em menor escala, da dos portugueses que empreenderam a ocupação do território. Criou-se no plano das realizações humanas algo de novo. Este “algo de novo” não é uma expressão abstrata; concretiza-se em todos os elementos que constituem um organismo social completo e distinto: uma população bem diferenciada e caracterizada, até etnicamente e habitando um determinado território; uma estrutura material particular, constituída na base de elementos próprios; uma organização social definida por relações específicas; finalmente, até uma consciência, mais precisamente uma certa “atitude” mental coletiva particular. Tudo isto naturalmente já se vem esboçando desde longa data. Os sintomas de cada um daqueles caracteres vão aparecendo no curso de toda nossa evolução colonial; mas é no termo dela que se completam e sobretudo se definem nitidamente ao observador[10].

Passado se prolonga no presente. Com razão, Caio Prado reconhece que o passado colonial ainda está presente no Brasil atual, isto é, de 1942,

e bem saliente; em parte modificado, é certo, mas presente em traços que não se deixam iludir. Observando-se o Brasil de hoje, o que salta à vista é um organismo em franca e ativa transformação e que não se sedimentou ainda em linhas definidas; que não “tomou forma”. É verdade que em alguns setores aquela transformação já se aprofunda e é diante de elementos próprios e positivamente novos que nos encontramos[11].

É durante o período colonial que se gesta, portanto, o Brasil contemporâneo. Voltar a ele não significa se ocupar com “devaneios históricos”, mas, sim, nele encontrar as raízes da formação da sociedade brasileira de hoje; escavacá-las para a investigar a seiva que circula e alimenta esse país chamado de Brasil. Daí o convite que Caio Prado dirige a seus leitores para acompanhá-lo e, assim, descobrirem como daquele período nasce um “novo”

“Organismo social completo e distinto” constituído no período anterior, [que] começa a se transformar, seja por força própria, seja pela intervenção de novos fatores estranhos. É então o presente que se prepara, nosso presente dos dias que correm. Mas esse novo processo histórico se dilata, se arrasta até hoje. E ainda não chegou a termo. É por isso que para compreender o Brasil contemporâneo precisamos ir tão longe; e subindo até lá, o leitor não estará se ocupando apenas com devaneios históricos, mas colhendo dados, e dados indispensáveis para interpretar e compreender o meio que o cerca na atualidade[12].

Com esse convite em mãos, o autor do presente texto espera contar com outros leitores, para acompanhá-lo na leitura que faz desse clássico de Caio Prado. Mesmo aqueles, que já se deliciaram com as lições desse banquete sobre os fundamentos da formação do Brasil contemporâneo, serão bem-vindos. FUNDAMENTOS DA FORMAÇÃO DO BRASIL CONTEMPORÊNEO


CRIATÓRIO DE GENTE[13]

A mestiçagem foi a argamassa que cimentou a formação do povo brasileiro. Fato largamente documentado e demonstrado por vários autores brasileiros, tais como Gilberto Freire, Darcy Ribeiro e Caio Prado, dentre outros. Para este último,

a mestiçagem, signo sob o qual se formou a etnia brasileira, resulta da excepcional capacidade do português em cruzar com outras raças. É a uma tal aptidão que o Brasil deveu a sua unidade, a sua própria existência com os característicos que são os seus. Graças a ela, o número relativamente pequeno de colonos brancos que veio povoar o território pôde absorver as massas consideráveis de negros e índios que para ele afluíram ou nele já se encontravam; pôde impor seus padrões e cultura à colônia, que mais tarde, embora separada da mãe-pátria, conservará os caracteres essenciais de sua civilização[14].

A mestiçagem antecede a própria colonização, isto é, a decisão de Portugal em estabelecer os primeiros núcleos de exploração de sua colônia americana. Começa com a prática do cunhadismo, um velho costume indígena, que consistia em oferecer a um estrangeiro uma moça índia como esposa. Assim que ele a esposasse, estabelecia relações de parentescos com todos os membros do grupo.

É com o cunhadismo que se inicia o criatório de gente mestiça no Brasil. Sem essa instituição, teria sido, diz Ribeiro,

impraticável a criação do Brasil. Os povoadores europeus que aqui vieram ter eram uns poucos náufragos e degredados, deixados pelas naus da descoberta, ou marinheiros fugidos para aventurar a vida nova entre os índios. Por si sós, teriam sido uma erupção passageira na costa atlântica, toda povoada por grupos indígenas[15].


São Paulo é o primeiro e mais importante núcleo de criação de mestiços, assentado na prática do cunhadismo. Para Ribeiro, tudo indica que esse criatório de gente começa antes da chegada de Cabral à costa brasileira. Nasce centrado

ao redor de João Ramalho e de seu companheiro Antônio Rodrigues. Parece especializar-se tanto no resgate de índios cativos para vender às naus que o ancoradouro dos navios que com ele traficavam passou a ser conhecido como Porto dos Escravos[16].

Para se ter uma idéia mais concreta da prática do cunhadismo para a criação do Brasil, Ramalho, fundador da paulistanidade, era capaz de levantar 5 mil índios de guerra, enquanto todo o governo português não conseguiria 2 mil. Foi com o seu apoio e de seus aliados, comenta Ribeiro, que os jesuítas puderam enfrentar seu pior inimigo: os calvinistas.

Outro núcleo de criação de gente, segundo Ribeiro,

foi o de Diogo Caramuru, pai heráldico dos baianos. Ele se fixou, em 1510, na Bahia, também cercado de numerosa família indígena. Conseguiu manter certo equilíbrio entre a indiada com que convivia cunhadalmente e os lusitanos que foram chegando. Converteu-se, assim, na base essencial da instalação lusitana na Bahia. Ajudou até mesmo os jesuítas e legou bens a eles em seu testamento[17].

Ribeiro fala ainda de um terceiro núcleo criatório de gente por meio da prática do cunhadismo: o de Pernambuco,

em que vários portugueses, associados com os índios Tabajara, produziram quantidades de mamelucos. Inclusive o celebre Jerônimo de Albuquerque, grande capitão de guerra na luta da conquista do Maranhão, ocupado pelos franceses[18].

Assim, a prática do cunhadismo criou um tipo de gente que passaria a ser os olhos, os braços e as pernas dos portugueses. É com essa gente, designada pela alcunha de mamelucos, que as entradas e bandeiras, partindo de São Paulo, desbravaram o Interior do país em busca de escravos índios e de ouro e diamantes, nos sertões de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso.

O cruzamento de brancos com índios tornou-se uma prática tão comum que até mesmo os jesuítas passaram a reconhecê-la e vê-la com bons olhos. É o que registra Ribeiro, para quem, o Padre Manuel da Nóbrega, numa carta de 1551, assinala que,

para Pernambuco não era necessário mandar mulheres nem meninos, por haverem muitas filhas de homens brancos e de índia da terra, “as quais todas agora casarão, com a ajuda do Senhor”. Eram as mamelucas, ingressando na história do Brasil, como suas mães primárias[19].

Com a chegada dos primeiros núcleos de escravos no Brasil, começa a criação de outro tipo de gente, o mulato, que iria somar aos mamelucos e, assim, criar um país feito de gente composta de três raças: os mamelucos, os mulatos e os brancos, que vieram de fora: os lusitanos.

Aí estão as raízes da formação da etnia brasileira. Sua matriz básica é constituída de mamelucos e mulatos. Dela, surgem, como assinala Ribeiro, diversos cruzamentos: branco com negro, mamelucos com negros, recruzado do branco com o mulato[20]. É dessa gente mestiça, produzida pelo colonizador português, que é feito o povo brasileiro. Daí a razão por que, para o autor de O Povo Brasileiro, o grande feito da obra colonial de Portugal, seu produto verdadeiro,

não foram os ouros afanosamente buscados e achados, nem as mercadorias produzidas e exportadas. Nem mesmo o que tantas riquezas permitiram erguer no Velho Mundo. Seu produto real foi um povo-nação, aqui plasmado principalmente pela mestiçagem, que se multiplica prodigiosamente como uma morena humanidade em flor, à espera do seu destino[21].











BRASILEIROS: EM BUSCA DE UMA IDENTIDADE


Espera, que ainda está muito longe de terminar. Muito longe! O Brasil é um país feito de gente que ainda hoje carrega na alma a cicatriz aberta da mão de seu torturador. Recrutado pelo colonizador do seu habitat, o índio e o negro, vivendo ainda num estado de quase barbárie, foram incluídos, como escravos, como simples instrumento de trabalho, numa civilização inteiramente estranha ao seu modo de vida. Nada mais se queria deles, a não ser seus braços e pernas, sua força bruta, para produzir riquezas para a metrópole colonizadora. Daí porque, como assim descreve Caio Prado,


a contribuição do escravo preto ou índio para a formação brasileira é, além daquela energia motriz, quase nula. Não que deixasse de concorrer, e muito, para a nossa “cultura”, no sentido amplo em que a antropologia emprega a expressão; mas é antes uma contribuição passiva, resultante do simples fato da presença dele e da considerável difusão do seu sangue, que uma intervenção ativa e construtora. O cabedal de cultura quer traz consigo da selva americana ou africana, e que não quero subestimar, é abafado, e se não aniquilado, deturpa-se pelo estatuto social, material e moral a que se vê reduzido seu portador. E aponta por isso apenas, muito timidamente, aqui e acolá. Age muito mais como instrumento corruptor da outra cultura, a do senhor branco que se lhe sobrepõe[22].


Caio Pardo não deixa de observar que a contribuição do índio e do negro para a formação da cultura brasileira teria sido mais significativa, se não tivessem sido incorporados à civilização como simples força motriz. Infelizmente, isto estava fora dos planos do colonizador, pois este não tinha, diz ele,

outro objetivo não houve que utilizar os recursos naturais do seu território para a produção extensiva e precipitada de um pequeno número de gêneros altamente remunerados no mercado internacional. Nunca se desviou de tal rumo, fixado desde o primeiro momento da conquista; e parece que não havia tempo a perder, nem sobravam atenções para empresas mais assentes, estáveis, ponderadas. Só se enxergava uma perspectiva: a remuneração farta do capital que a Europa aqui empatara. A terra era inexplorada, e seus recursos, acumulados durante séculos, jaziam à flor do solo. O trabalho para tirá-los de lá não pedia grandes planos nem impunha problemas complexos: bastava o mais simples esforço material. É o que se exigiu de negro e de índio que se incumbiram da tarefa[23].

É sobre os ombros do trabalho escravo que se estrutura a organização do processo de trabalho no Brasil. A este respeito, Caio Prado cita Alberto Torres, que, apesar de seu conservadorismo, é obrigado a reconhecer que

a escravidão foi uma das poucas coisas com visos de organização que este país jamais possuiu ... Social e economicamente, a escravidão deu-nos, por longos anos, todo o esforço de toda ordem que então possuímos, e fundou toda a produção material que ainda temos[24].


As consequências da centralidade do trabalho escravo sobre o processo de formação da sociedade brasileiras não são pequenas. Como único setor de peso da economia, a escravidão abriu um imenso abismo entre os extremos da escala social: quem não fosse escravo nem senhor era obrigado a viver como gente pobre, composta de indivíduos sem eira nem beira. De acordo com Louis Couty, um observador dos problemas da escravidão e da lavoura de café, no Brasil, esse estudioso estrangeiro estimava uma população de 12 milhões de habitantes no último quartel do século XIX, metade constituída de gente que vivia ao deus-dará. Segundo Caio Prado, estes deserdados eram formados

sobretudo de pretos e mulatos forros ou fugidos da escravidão; índios destacados de seu habitat nativo, mas ainda mal ajustados na nova sociedade em que os englobaram; mestiços de todos os matizes e categorias, que, não sendo escravos e não podem ser senhores, se vêem repelidos de qualquer situação estável, ou pelo preconceito ou pela falta de posições disponíveis; até brancos, brancos puros (...), arrastando-se na indigência; os nossos poor whites, detrito humano segregado pela colonização escravocrata e rígida que os vitimou[25].

Parte dessa massa de desclassificados do sistema colonial é composta de indivíduos, que passam a vegetar e a perambular nos rincões mais afastados do “mundo civilizado”. Vivem miseravelmente entregues ao deus-dará, embrutecidos e moralmente degredados. Quem são essas vítimas da colônia? Uma grande parte vem da população amazônica. Como explica Caio Prado, são os

tapuias que deixaram de ser silvícolas, e não chegaram a ser colonos; os caboclos, índios puros ou quase puros de outras partes da colônia, em situação mais ou menos idêntica, isolados do mundo civilizado que os cerca e rejeita, e reconcentrados numa miserável economia naturalista que não vai além da satisfação de suas imperiosas necessidades vitais. A eles se equiparam negros e pardos que, excluídos da sociedade ativa, procuram imitar a vida daqueles filhos do continente. Quando fugidos da escravidão, são os quilombolas, que às vezes se agrupam e constituem concentrações perigosas para a ordem social, e são a preocupação constante das autoridades: os temíveis “quilombos”. Numa tal situação arredada da civilização encontramos também brancos mais ou menos puros, que expelidos os fugidos dela aproveitam a vastidão do território para se abrigarem no deserto[26].

O mosaico social desses excluídos pelo sistema colonial ainda não está completo. Noutro ladrilho encontram-se estampados os chamados agregados, formados, segundo Caio Prado, por aqueles indivíduos que,

nas cidades, mas sobretudo no campo, se encostam a algum senhor poderoso, em troca de pequenos serviços, às vezes até unicamente de sua simples presença, própria a aumentar a clientela do chefe e inflar-lhe a vaidade, adquirem o direito de viver à sua sombra e receber dele proteção e auxílio. São então os chamados agregados, os moradores dos engenhos, cujo dever de vassalos será mais tarde proclamado e justificado, em Pernambuco, num momento difícil e de aguda crise política[27].

Finalmente, para completar esse quadro tosco, feito de reboco de gente imprestável para a sociedade ativa, assenta-se o último ladrilho, estampado com as sobras dessa gente desclassificada pela colônia. Na pena de Caio Prado, são

os desocupados permanentes, vagando de léu em léu à cata do que se manter e que, apresentando-se a ocasião, enveredam francamente pelo crime. É a casta numerosa dos “vadios”, que nas cidades e no campo é tão numerosa, e de tal forma caracterizada por sua ociosidade e turbulência, que se torna umas das preocupações constantes das autoridades e o leimotive de seus relatórios (...)[28].


Essa massa de desclassificados, que crescerá com o tempo, são os candidatos que irão, no futuro, quando o país ingressar na era da industrialização tardia, compor a chamada superpopulação relativa (SPR) do capital industrial, no sentido de que toda a produção do valor passa a ser submetida a relações capitalista de produção[29]. Um imenso reservatório de força de trabalho, que transborda, em muito, a camada daqueles que Marx denomina de aptos para o trabalho, isto é: o chamado exército industrial de reserva[30]. Um imenso reservatório de força de trabalho, que guarda uma singularidade histórica toda especial; muito diferente dos seus consortes da Europa ocidental, formados durante a era da acumulação primitiva do capital[31]. Diferentemente destes últimos, aqueles não são produtos de um processo de expropriação de suas terras; mas sim, produtos de uma miscigenação de raças, que não encontravam espaço social dentro da colônia. Isto não quer dizer que não foram vitimas de um violento processo de expropriação. Muito pelo contrário, trata-se de uma forma de expropriação que, no caso dos escravos negros, é uma expropriação que ocorre além-mar, quando são arrancados de seu habitat natural e trazidos para a colônia lusitana, acorrentados e amontoados nos porões dos navios negreiros.

Quanto aos índios, estes não conheciam a propriedade privada, como os camponeses europeus. O processo de expropriação de suas terras se dá mediante a sua escravização, ou via miscigenação, em que a prática do cunhadismo jogou papel fundamental na ocupação do Brasil, como visto antes. Bem diferente do que se passou, por exemplo, nos Estados Unidos e no Canadá, como assim constata Caio Prado, para quem, naqueles países,

nunca se pensou em incorporar o índio, fosse a que título, na obra colonizadora do branco; as tentativas de aproveitamento do trabalho indígena não passaram aí de ensaios logo abandonados. E fora o comércio de peles, fornecidas por eles em troca de mercadorias européias, para nada mais utilizaram-nos os colonos. Ou antes, eles tiveram um papel, mas de aliados de um ou outro partido, nas lutas que franceses e ingleses sustentaram entre si durante dois séculos nas colônias setentrionais da América (...). Tanto que mais tarde quando, eliminados os franceses, os ingleses ou seus sucessores norte-americanos ficaram sós em campo, o problema do índio ficou reduzido simplesmente ao da expulsão deles de territórios necessários à expansão colonizadora[32].


Por isso, como observa Caio Prado, nota-se que até hoje,

como sempre foi no passado, as relações com os índios são nos Estados Unidos de poder soberano para poder soberano, e são fixadas em tratados. Daí aliás a competência do governo federal para tratar de assuntos relativos aos índios, com exclusão dos Estados, como tem sido invariavelmente decidido pela Suprema Corte. Os índios, localizados em determinados territórios, não são americanos, mas juridicamente constituem uma forma de nação autônoma[33].

O caso da colonização lusitana foi outro. O negro e o índio escravos eram vistos, pelo colonizador, apenas como força motriz, para alimentar e pôr em movimento a economia colonial. Às sobras, constituídas daquela gente mestiça, sem nada o que esperar da vida, só lhes restavam duas alternativas: uma, migrar para as cidades, para aí construir seus casebres nas morrarias ou nos terrenos baldios, distantes das áreas habitadas pelos ricos e grupos sociais mais favorecidos. Quem não conseguisse viver como agregado das famílias ricas, na condição de serviçais, era obrigado a cair na criminalidade ou na mendigação.

A outra alternativa não era muito diferente. Muitos, para não morrer de fome, restava a opção de buscar a proteção dos poderosos e mandões locais, para lhes servir como jagunços. Um tipo de agregado, que tinha como função a proteção seus donos em suas querelas com seus inimigos. Quando não isso, muitos eram recrutados pelas autoridades constituídas da colônia para formar as tropas milicianas, compostas, como não podia deixar de ser, por criminosos, vadios e por outros elementos incômodos de que as autoridades queriam livrar-se.

Numa população assim constituída, não poderia surgir nenhum nexo moral capaz de unir as pessoas num todo social coeso, no sentido em que Caio Prado empresta à expressão “nexo moral”, isto é, em seu

sentido amplo de conjunto de forças de aglutinação, complexo de relações humanas que mantém ligados e unidos os indivíduos de uma sociedade e os funde num todo coeso e compacto[34].

Muito pelo contrário, como o diz em seguida,

a sociedade colonial se definirá antes pela desagregação, pelas forças dispersivas; mas elas são em nosso caso as da inércia; e esta inércia, embora infecunda, explica suficientemente a relativa estabilidade da estrutura colonial: para contrariá-la e manter a precária integridade do conjunto, bastaram os tênues laços materiais primários, econômicos e sexuais, ainda não destacados de seu plano original e mais inferior, que se estabelecem como resultado imediato da aproximação de indivíduos, raças, grupos díspares, e não vão além deste contacto elementar. É fundada nisto, e somente nisto, que a sociedade brasileira se manteve, e a obra da colonização pôde progredir[35].


As conseqüências políticas dessa desagregação social tiveram efeitos danosos na formação da classe trabalhadora. Nunca se criou no Brasil um sentimento de solidariedade forte e persistente de classe, capaz de unir todos deserdados da colonização, para lutar por seus direitos. É exemplar o caso dos negros, que se viam, e ainda se vêem, muito mais como pobres excluídos do que como raça. Nesse sentido, Ribeiro reconhece, com propriedade, que o racismo brasileiro é um racismo de cor, que pode ser superado por aqueles que ascendem na escala social. Esse autor exemplifica esse tipo de racismo num diálogo de um artista negro, o pintor Santa Rosa, com um jovem, também negro, que lutava para ascender na carreira diplomática. Queixa-se das dificuldades por que passava. Comovido com sua sorte, o pintor responde-lhe: “compreendo perfeitamente o seu caso. Eu também fui negro”.

Anedota ou não, é fato que

cada negro de talento extraordinário realiza sua própria carreira, como a de Pelé, a de Pixinguinha ou a de Grande Otelo e inumeráveis outros esportista e artistas, sem encontrar uma linguagem apropriada para a luta anti-racista. O assimilacionismo, como se vê, cria uma atmosfera de fluidez nas relações inter-raciais, mas dissuade o negro para sua luta específica, sem compreender que a vitória só é alcançável pela revolução social[36].

Somado a esse fato, se se considerar que aquele contingente de agregados, criado pela economia colonial, cresceu a ponto de, em 2006, responder por mais de 30% do total de ocupados do país, é de se esperar que os laços de solidariedade de classe sejam, como sempre foram, bastantes frágeis. Com efeito, essa enorme massa de ocupados, que sobrevive prestando serviços às famílias abastadas, não gesta uma identidade de classe, para, assim, lutar por seus direitos[37]. Está muito mais identificada com o estilo de vida das famílias, para quem trabalha como serviçais, do que como trabalhadores integrantes de uma classe social criada pelo capital.

Não sem razão, os grandes acontecimentos históricos desse país chamado Brasil ocorreram sem a participação ativa da população. Com exceção da Revolução de 30, cujo desfecho se dá com o golpe de 1964, a proclamação da Independência, da República e outros acontecimentos de menor vulto foram muito mais recebidos pelo povo do que feitos por ele.

INERCIA SOCIAL E MOVIMENTOS INSURRECIONAIS

Se assim é, como se explica, então, a erupção de vários movimentos contestatório, de conflito raciais e até mesmo classista? Que dizer dos chamados movimentos nativistas, tais como a revolta de Beckman (1684-85), a guerra dos emboabas (1707-09), a guerra dos mascates (1710-14), a revolta de Vila Rica (1720), a conspiração mineira (1789), a conspiração baiana (1798), os diversos levantes dos escravos, não são uma prova de que a sociedade colonial foi permeada por conflitos, que opunham tanto senhores de engenho e fazendeiros contra a burguesia comercial, como pobres contra ricos, negros contra brancos? Muitos desses conflitos tinham um caráter de classes, como é o caso da guerra dos mascates em que os senhores de engenhos, endividados e na iminência de ver suas propriedades penhoradas, rebelaram-se contra os comerciantes, notadamente de origem lusitana; de outro, de natureza racial, em que Palmares é o caso exemplar do enfrentamento inter-racial.

Não é, portanto, duvidosa a tese defendida por Caio Prado, para quem a sociedade colonial se define antes pela desagregação, pelas forças dispersivas, marcadas pela inércia, da qual dependeu a relativa estabilidade da estrutura colonial? Como formas desagregadas e tão díspares poderiam conduzir a independência política do Brasil, que poria por terra o sistema colonial?

Essa aparente contradição tem explicação. Caio Prado a expõe nas últimas 30 páginas do seu clássico Formação do Brasil Contemporâneo. Porém, antes de investigar como ele enfrenta essa questão, Ribeiro traz elementos que ajudam a entender as razões por que tais movimentos não lograram êxito. Ainda que tenha ocorrido algum tempo depois da independência política do país, a Cabanagem (1834-40) traz lições que vão ao encontro da tese defendida pelo autor de Formação do Brasil Contemporâneo. Referindo-se a esse conflito, gestado entre os índios distribalizados da Amazônia, Ribeiro assinala que

foi a única luta que disputou, sem saber, a própria etnia nacional, propondo fazer uma outra nação, a dos cabanos, que já não eram índios, nem eram negros, nem lusitanos e tampouco se identificavam como brasileiros[38].

Assim, aconteceu com todos os movimentos insurrecionais antes e depois da emancipação política do Brasil. São movimentos liderados por aglutinações de gentes que ainda não haviam criado uma identidade étnica, isto é, brasileira; gentes, como dirá Caio Prado, que não poderiam criar nenhum nexo moral, capaz de uni-las num todo social coeso. Levantes feitos por gentes tão dispares não poderiam resultar em vitórias consequentes. Com efeito, gentes assim, tão díspares, formada por índios que não mais se identificavam como tais nem com seus colonizadores; por negros “desafricanizados”, mas que também não tinham ainda uma identidade própria; não eram ainda capazes de propor e levar a cabo um projeto alternativo de sociedade. Daí a razão por que a luta dos negros e dos índios contra seus opressores estaria condenada ao fracasso. Com mais razão ainda, se se considerar que eram ainda “formações protobrasileiras”, aculturadas e que, por isso, lhes seria impossível reconstituir suas antigas formas de vida: a do índio, deixadas para trás quando foram arrancados de suas aldeias e suas mulheres transformadas em sacos de depósito de sêmen do colonizador, para criação de mamelucos; a do negro, obrigados a atravessar o Atlântico, para servir unicamente de força motriz, para a produção de riquezas. O drama da luta empreendida por essa gente, como salienta Ribeiro,

era a situação paradoxal de quem pode ganhar mil batalhas sem vencer a guerra, mas não perder nenhuma. Isso foi o que sucedeu com todos os quilombos, inclusive com o principal deles, Palmares, que resistiu por mais de um século, mas afinal caiu, arrasado, e teve o seu povo vendido, aos lotes, para o sul e para o Caribe[39].

É o mesmo destino reservado aos cabanos, muito tempo depois. Mais uma vez Ribeiro coloca os pingos nos “is”, quando registra que sua derrota era inevitável. Muito embora “sua revolta, secularmente acumulada contra a opressão e discriminação, constituísse razão suficiente para desencadear a guerra”, diz o autor de O Povo Brasileiro, isto

não era suficiente para propor e levar a cabo, depois de cada vitória, um projeto alternativo de ordenação social para as gentes díspares que engajavam na luta libertária. Tal como os negros dos quilombos, apesar do seu primitivismo, as populações lideradas pelos cabanos estavam já contaminadas de civilização. A mesma civilização que para eles representava pestes mortíferas, escravidão e opressão, representava também o único modo praticável de articular-se comercialmente com os provedores dos bens de que já não poderia prescindir, como as ferramentas, anzóis, o sal, a pólvora[40].

A guerra dos mascates, que opõe, de um lado, os senhores de engenhos, e de outro, a classe dos comerciantes, uma verdadeira réplica da tradicional rivalidade de nobres e burgueses que enche a história da Europa, teria fôlego curto. Ainda que tivesse um caráter nacional, uma vez que os proprietários de engenhos se reconheciam como brasileiros e os comerciantes (os mascastes) como lusitanos, nenhuma dessas duas classes estavam dispostas a mudar radicalmente as feições do sistema colonial. Os comerciantes queriam apenas receber suas dívidas; os proprietários, endividados até o pescoço, desejavam preços mais favoráveis para o açúcar e para a compra de escravos. Mesmo assim, como esclarece Caio Prado, a luta entre comerciantes e a nobreza proprietária,

com o tempo se aprofundará, e se alastra com a participação de outros grupos. A monopolização das posições comerciais praticadas em benefício dos reinóis, vai atingir outras classes da população nativa da colônia, fechando-lhes as portas para possíveis colocações, já de si tão escassas. A luta acabará envolvendo todo mundo, levantando contra os “mascates”, “pés-de-chumbo” ou “marinheiros”, (é como pejorativamente se designavam os portugueses) a oposição geral dos colonos nativos do Brasil[41].

Se assim o foi, poder-se-ia enfileirar esses movimentos insurrecionais, muitos deles de cunho separatistas, no fio da História, para dizer que eles redundariam, inevitavelmente, na emancipação política do Brasil? Depois de conhecida sua evolução histórica, pode-se concluir que, em tais acontecimentos, estaria inscrita, a priori, a independência política da colônia luso-americana? Tal presunção é mesmo que admitir que o destino fatal e necessário de uma colônia é tornar-se politicamente independente da metrópole e que isto já estava incluído desde o dia em que Cabral se abalançou mar adentro e aportou na Terra de Vera Cruz. Seria a História, portanto, a grande ordenadora do destino do dos homens?

CAIO PRADO E SUA CONCEPÇÃO DE HISTÓRIA

Caio Prado partilha dessa concepção linear e fatal da História? Claro que não. Ele é um marxista que conhece muito bem a concepção de História de Marx. Como este pensador, entende que a História universal não existiu sempre; considerada como História universal ela é sempre resultado e nunca surge sem uma consciência que se torna prática[42]. Para que não restem dúvidas, numa carta dirigida a Arnold Ruge, setembro de 1844, Marx afirma que sua crítica se inscreve nas dores do presente: “Se construir o futuro é traçar planos para a eternidade”, diz ele, “não é nosso negócio, o que temos de realizar no presente não pode ser mais claro; ou seja, a crítica radical de toda ordem existente”[43].

É assim que Caio Prado entende a evolução do Brasil desde a colônia até sua independência política. Rigorosamente estribado na concepção de História de Marx, entende a Independência como resultado e não de forma a priori, como se ela já estivesse desde sempre para sempre contida e imanente nos acontecimentos históricos, que a antecederam. Com efeito, para o autor de Formação do Brasil Contemporâneo,

até às vésperas da Independência e entre aqueles mesmos que seriam seus principais fatores, nada havia que indicasse um pensamento separatista claro e definido. O próprio José Bonifácio, que seria o patriarca da Independência, o foi apesar dele mesmo, pois sua idéia sempre fora unicamente a de uma monarquia dual, uma espécie de federação luso-brasileira[44].

Em seguida, acrescenta que

a explicação de que é a “idéia” da Independência que constitui a força propulsora da renovação que se operava no seio da colônia parece pelo menos arriscada[45].


Se para o autor de Formação do Brasil Contemporâneo, antes da Independência não havia nenhum pensamento separatista claro e definido, como se explica então esse acontecimento histórico? Questão que se complica mais ainda, quando se tem presente que, para aquele autor, os acontecimentos que antecedem a separação do Brasil de sua metrópole, divergem consideravelmente. É por isso que, para Caio Prado,

(...) veremos brancos lutar com pretos e mulatos contra o preconceito de cor (Inconfidência baiana); mulatos e pretos, com os brancos, a favor dele; portugueses contra a metrópole, e brasileiros a favor ... Isto num momento para mudarem de posição respectiva logo em seguida, e de novo mais tarde ... É este aliás o espetáculo em todas as situações análogas, em qualquer época ou lugar; e cuja aparente ilogicidade se procura explicar ingenuamente, generalizando casos muitos particulares e no conjunto insignificantes, em termos individuais e morais (...)[46].

Essa aparência ilógica e incongruente dos fatos, diz Caio Prado em seguida,

não só torna difícil sua interpretação, como constitui a razão da dubiedade e incertezas que estão nos próprios fatos, e que nenhum artifício de explicação pode desfazer. Os fatos claros em seu conjunto, e definidos, só vêm em seguida, quando tais situações amadurecem. Inútil procurá-los antes, torcendo os acontecimentos ao gosto particular do observador. E mesmo depois daqueles primeiros fatos decisivos, quanto não decorrerá até que o processo se complete inteiramente com a solução de todas as contradições para se repetir e renovar noutras que se vão formando e surgem incessantemente? É o movimento eterno da História, do Homem e de todas as coisas, que não pára e não cessa, e de que nós, com os pobres instrumentos de compreensão e de expressão que possuímos, não apanhamos e sobretudo não podemos reproduzir senão numa parcela ínfima, cortes desajeitados numa realidade que não se define estática, e sim dinamicamente[47].



Essas duas últimas citações não poderiam sintetizar melhor a concepção de História de Caio Pardo. Como Marx, entende que a História presente e futura não é a meta da História passada. Como o diz nas citações referentes às notas de número 45 e 46, os fatos que antecederam a Independência não podem ser tomados a priori, como se eles, inevitavelmente, trouxessem o selo daquele acontecimento neles impressos e com endereço certo. É inútil, diz o autor de Formação do Brasil Contemporâneo, “procurá-los antes, torcendo os acontecimentos ao gosto particular do observador”. Com efeito, como de acontecimentos, no mais das vezes contraditórios entre si, em que brancos e mulatos lutam contra pretos, pretos e mulatos contra brancos, portugueses contra a metrópole, brasileiros a favor dela, pode-se de tais acontecimentos inferir a ideia de que a Independência estava neles inscrita? Quem se aventura a fazê-lo, cai na incoerência e no idealismo, em artifícios especulativos, como diria Marx em Ideologia Alemã, para quem, seria descabido atribuir à descoberta da América um propósito de que tal acontecimento permitiu o “desencadeamento da Revolução Francesa”.

É assim mesmo que Caio Prado analisa os diversos levantes insurrecionais antes da eclosão final da Independência. Pressupor, a priori, que todos esses levantes desaguariam nas margens do Ipiranga, onde D. Pedro I e suas tropas esperam pelo seu transbordamento, é de um simplismo intelectual lamentável,

que não só restringe consideravelmente o objeto da pesquisa, como a desvia do seu verdadeiro sentido. O final da cena, ou antes, o primeiro grande acontecimento de conjunto que vamos presenciar será, não há dúvida, a independência política da colônia. Mas este final não existe ainda antes dela, nem está “imanente” no passado; ele será apenas a resultante de um concurso ocasional de forças que estão longe, todas elas, de tenderem, cada qual só por si, para aquele fim. Alguns, possivelmente; todas certamente não. Mas como concorrem sem exceção, e tem cada qual seu papel, nenhuma pode ser despreza[48].


DERROCADA DO SISTEMA COLONIAL E A INDEPENDÊNCIA POLÍTICA DO BRASIL


Mas há uma evolução histórica, ainda que não marcada por uma necessidade férrea, tal como se “Deus escrevesse certo por linhas tortas”, e que, assim, estaria determinado, desde o princípio, o destino dos homens, ainda que dele não tenham consciência e nem poderiam tê-lo. Não. Os homens não são cavaleiros errantes, digladiando-se entre si, em que a História seria o grande palco em que eles se oferecem como oblatas, para que a razão consuma seu plano final de um dia realizar e efetivar a liberdade humana. Se os homens não pudessem ser cúmplices do seu destino, se não poderiam forjá-lo; a política seria uma atividade miserável, desnecessária.

Caio Prado tem plena consciência disso. A despeito da incongruência dos movimentos insurrecionais, é preciso encontrar neles um sentido, uma direção, ainda que nem todos os autores em cena tenham consciência clara das consequências de suas ações. É preciso ir além desse cipoal de acontecimentos, descer até suas raízes, para aí encontrar o sentido daquela evolução. E é justamente isto que faz o autor de Formação do Brasil Contemporâneo, quando afirma que

naquela tremenda desordem colonial esboçava-se uma reação. Fruto das mais variadas situações, como todas as reações que vêm das profundezas, e levada por outros tantos impulsos diversos, ela se esboçava e ia precisando os seus contornos. Um denominador comum somará e identificará todas aquelas situações: mal-estar generalizado que de alto abaixo perpassa a sociedade colonial e lhe tira estabilidade e equilíbrio. Mal-estar econômico e social de raízes profundas, que no caso particular da cada indivíduo ou grupo se explicará por esta ou aquela circunstância especial e imediata, mas que em última análise derivará de qualquer coisa de mais fundamental e geral: o próprio sistema da colonização brasileira[49].


Mas, de onde vem esse mal-estar econômico e social de que fala Caio Prado, na citação anterior? Como nele encontrar o sentido da evolução econômico-social e política do Brasil colonial? Concedendo-lhe a palavra, explica que

o fio condutor que na complexidade dos fatos com que temos de lidar nos conduzirá ao mais íntimo da sociedade colonial para nele descobrirmos a origem de tais “forças”, que se manifestam exteriormente sobretudo por aquele mal-estar generalizado que assinalei acima e que atinge toda a colônia, é a mesma infra-estrutura econômica descrita nos primeiros capítulos deste trabalho. Achamo-nos aí, vamos repeti-lo, em presença de uma economia constituída na base da exploração, e exploração precipitada e extensiva dos recursos naturais de um território virgem, para abastecer o comércio internacional de alguns gêneros tropicais e metais preciosos de grande valor comercial. É esta, em última análise, a substância de nossa economia colonial, a própria explicação e definição da obra colonizadora que Portugal aqui realizou. Tal base, com o desenvolvimento da população, com o concurso de outros fatores vários, se torna, através do tempo, restrito e incapaz de sustentar a estrutura que sobre ela se formara. Suficiente de início, e ainda por muito tempo para prover aos fins precípuos da colonização – a ocupação do território, o aproveitamento dele com relativo equilíbrio econômico e social; para promover, enfim, o progresso das forças produtivas -, aquela base acabou por se tornar insuficiente para manter a estrutura social que sobre ela se constituirá e se desenvolvera; e a isto se chegou sem que fosse preciso a intervenção de fatores estranhos, mas pelo simples desdobramento natural do processo de colonização[50].


Decomposição inevitável porque, como o diz o autor de Formação do Brasil Contemporâneo algumas páginas antes, decorre do próprio processo de colonização, que

produziu seus frutos quando reuniu nesse território imenso e quase deserto, em 300 anos de esforços, uma população catada em três continentes, e como ela formou, bem ou mal, um conjunto social que se caracteriza e identifica por traços próprios e inconfundíveis; quando devassou a terra, explorou o território e nele instalou aquela população; quando finalmente remeteu por cima do oceano, para os mercados da Europa, caixas de açúcar, rolos de tabacos, fardos de algodão, barras de ouro e pedras preciosas. Até aí construiu; mas ao mesmo tempo, e a par dessa construção, foi acumulando um –passivo0 considerável. Não por “erros”, seja a nossa apreciação moral ou de capacidade, mas por contingências que não poderia ter obviado, e que só com o tempo se revelariam vícios profundos e orgânicos: a incorporação apressada de raças e culturas tão diferentes entre si, o trabalho servil, a dispersão do povoamento, tantos outros elementos que caracterizam a colonização e a constituem. Tudo isso que fora em seu tempo inevitável, necessário e por isso mesmo “acertado”, revela agora bem claramente, três séculos depois do início da colonização, seu lado negativo (...): daí o aspecto de decomposição em que se apresenta então a nossos olhos o sistema colonial brasileiro[51].


Exaustão de terras por processos bárbaros de cultura ou por devastações predatórias e esgotamento dos depósitos minerais acabou por esterilizar as fontes mais acessíveis e lucrativas de riqueza da colônia. A “galinha de ovos de ouro” da metrópole portuguesa já não rendia tanto como rendeu nos dois primeiros séculos de colonização, primeiro, produzindo caixas e mais caixas de açúcar, depois, toneladas de ouro e de pedras preciosas, que enchiam os cofres do tesouro português. Vista como sempre foi, um negócio estritamente financeiro do rei de Portugal, sua colônia americana passou a acumular enormes prejuízos; tornara-se insolvente.

Diante dessa realidade palpável a olhos nus, não faltou quem levantasse a voz para reformar o sistema colonial. Muitos enxergavam os males de então à forma de como tinha sido praticada a exploração da colônia. Propunha o restabelecimento dela em sua pureza original. Outros iam um pouco mais longe e sugeriam reformas substanciais na política colonial. Mas, como fazê-lo, se, para a política portuguesa, a colônia era um simples negócio financeiro? Com efeito, para Portugal, não havia no Brasil

uma sociedade ou uma economia de que se ocupar, fosse embora em função dos interesses portugueses, mas tão-somente “finanças” a cuidar[52].


Esta era a maior razão que impedia qualquer tipo de reforma do sistema colonial, pois este sistema não podia ser outra coisa senão simples setor, uma mera empresa comercial do rei de Portugal. O sistema entrava em colapso e por isso suas contradições internas vêm à tona. É delas que brotam aqueles conflitos insurrecionais, como dirá Caio Prado,

conflitos que agitam a sociedade, e donde brotará também a síntese delas [contradições internas, F.T] que porá termo a tais conflitos, fazendo surgir um novo sistema ao anterior, é aí que encontraremos as forças motoras que renovarão os quadros econômicos e sociais da colônia[53].

É a partir dessas contradições internas que Caio Prado encontra o sentido e a direção da evolução do sistema colonial, que chega ao fim com a separação da colônia de sua metrópole portuguesa. Mas isso não significa que os conflitos saíram de cena com a Independência; eles se renovam e voltam à cena, porém em novas formas e bases. Afinal, as contradições nunca são eliminadas, mas, sim, geram novas condições dentro das quais se movem e passam a se reproduzir em novas bases[54].

Mas, quais são as contradições internas que brotam no seio do sistema colonial e que levariam à sua derrocada? Segundo Caio Prado, a primeira,

porque é a que representa maior papel e atinge as classes influentes e dominantes da ordem colonial, tem por conteúdo a cisão que se verifica entre proprietários – senhores de engenho, lavradores, fazendeiros - , de um lado, comerciantes do outro (...). O que aguça o conflito é a insolvabilidade crônica dos débitos comerciais na colônia, resultante da crise mais ou menos intensa em que se debate a produção brasileira, em particular a do açúcar, no correr do século XVIII, e que, em última análise provém das condições de uma economia débil, mal estruturada e conduzida, e visceralmente ligada a um mercado exterior precário e incerto[55].


Outra contradição do sistema colonial e de natureza étnica, resultado, como assinala Caio Prado,

da posição deprimente do escravo preto, e em menor proporção, do indígena, o que dá no preconceito contra todo indivíduo de cor escura. É a grande maioria da população que é aí atingida, e que se ergue contra um sistema que além do efeito moral, resulta para ela na exclusão de tudo quanto de melhor oferece a existência da colônia[56].


É assim que Caio Prado analisa a derrocada do sistema colonial, que resultaria na independência política do Brasil. Independência que traz no seu seio um enorme passivo social e que ainda hoje está longe de ser eliminado. Como poderia? A ideologia assimilacionista ainda bate forte no peito do negro, que se vê como alguém a esperar de uma oportunidade para ascender na escala social, em que a esfera do esporte, notadamente o futebol, esta aberta para quem nasceu para driblar a vida com uma bola nos pés, ou com mãos, no voleibol ou no basquete. Assim, também, vivem os agregados sociais, que preferem imitar o estilo de vida a quem servem como serviçais do que se reconhecerem como trabalhadores assalariados, improdutivo para o capital, é verdade, mas, ideologicamente, extremamente importante como amortecedor de tensões e conflitos sociais. É esse o Brasil que vem da colônia, que se torna politicamente independente, vira república, industrializa-se, mas nem por isso foi capaz de fechar a cicatriz do torturador lusitano impressa na alma desse povo miscigenado; cicatriz que ainda continua aberta e sangrando. Muito pelo contrário, como visto na introdução, o país parece caminhar na direção de uma recolonização de sua economia, com sua transformação num grande canavial e em campos de produção de soja e de criação de gado de corte, para o mercado internacional.
[1] Professor de Economia Política da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e Professor titular da Universidade de Fortaleza (UNIFOR)
[2] Prado Júnior, Caio. A Revolução Brasileira. – São Paulo: Brasiliense., 2004., ed. 7., p. 239/40.
[3] Idem,Ibidem., p. 240.
[4] Idem,Ibidem., p. 240.
[5] Ver Dias, Rodnei Fagundes e Pinheiro, Bruno Rodrigues. Análise da pauta de exportações brasileiras com base nos critérios da UNCTAD para os anos de 1989-1996-2006: como tem sido a inserção brasileira no comércio internacional. – Curso de mestrado da Universidade Federal da Bahia (artigo), in www.nec.ufba.br, 19/08/09.
[6] Oliveira de, Francisco. A Economia Brasileira: Crítica à Razão Dualista. – Petrópolis: Editora Vozes Ltda., 1987.
[7]Pochmann, Marcio. Qual desenvolvimento?: oportunidades e dificuldades do Brasil contemporâneo. – 1.ed. – São Paulo: Publisher Brasil, 2009., p.114.
[8] Idem,Ibidem., p. 114.
[9] Idem,Ibidem., p. 149.
[10] Prado Júnior, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. – São Paulo: Brasilense, 2007., p. 10.
[11] Idem,Ibidem., p. 11.
[12] Idem,Ibidem., p. 10.
[13] Expressão tomada de empréstimo a Ribeiro, Darcy. O povo brasileiro: evolução e o sentido do Brasil. – São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
[14] Prado Júnior, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo., op. cit., p. 107.
[15] Idem,Ibidem., p. 83.
[16] Idem,Ibidem., p. 83.
[17] Idem,Ibidem., p. 85.
[18] Idem,Ibidem., p. 85.
[19] Idem,Ibidem., p. 90.
[20] Idem,Ibidem., p. 151.
[21] Idem,Ibidem., p. 68.
[22] Prado Júnior, Caio., Formação do Brasil Contemporâneo., op. cit., p. 272.
[23] Idem,Ibidem., p. 273.
[24] Torres, Alberto. O Problema Nacional. – Rio de Janeiro, 1914, apud Prado Júnior, Caio., Formação do Brasil Contemporâneo., op. cit. p. 341, nota número 1.
[25] Idem,Ibidem., p. 282.
[26] Prado Junior, Caio. Formação ..., op. cit.p. 282/83.
[27] Idem,Ibidem., p. 283.
[28] Idem,Ibidem., p. 283.
[29] Marx, Karl. O Capital: crítica da economia política. – São Paulo: Nova Cultural, 1985. 3.ed., Livro II. Vol. III., p. 39:”As duas formas que o valor-capital adota dentro de suas fases de circulação são as de capital monetário e capital-mercadoria; sua fase corresponde à fase de produção é a do capital-produtivo. O capital que no transcurso de seu ciclo global adota e volta a abandonar essas formas, e em cada uma cumpre a função que lhe corresponde, é o capital industrial – industrial, aqui, no sentido de que abarca todo ramo da produção conduzido de modo capitalista”.
[30] A superpopulação relativa (SPR) é composta de trabalhadores, aptos a ingressarem no mercado de trabalho, nas fases de crescimento acelerado da economia, e que Marx denomina de população flutuante. A outra é constituída da população latente, que só se torna visível, quando a produção capitalista se apodera do campo e passa a recrutar a população rural. A terceira forma é composta por aquela parcela da SPR, classificada com a categoria de população estagnada. E finalmente, a ultima categoria é formada por aqueles que habitam a esfera do pauperismo. São o lumpemproletariado, composto de parte apta para o trabalho, quando encontra; a outra, são os órfãos e crianças indigentes; e finalmente, os degradados, maltrapilhos e incapacitados para o trabalho [Ver Marx, Karl. O Capital: op. cit. – 2.ed., especialmente capítulo XXIII].
[31] Idem,Idem., Livro I, capítulo XXIV.
[32] Prado Júnior, Caio. Formação..., op. cit., p. 90/91.

[33] Idem,Ibidem., p. 91, nota de pé de página número 15.
[34] Idem,Ibidem., p. 345.
[35] Idem,Ibidem., p. 345.
[36] Ribeiro, Darcy., op. cit., p. 226.
[37] Segundo Pochmann, esse enorme contingente de ocupados está vinculado “à condição de agregado social, [que passa] a depender da própria concentração de renda, seja para o exercício de serviços mais simples (jardinagem, passeadores de cães, manicures, segurança, limpeza, entre outros), seja para serviços mais sofisticados (condicionamento físico e alimentar, assistência pessoal, acompanhamentos individuais, embelezamento, entre outros). Quanto maior e mais sofisticado o processo de concentração da renda no país, maiores tornaram-se as oportunidades de expansão e das ocupações vinculadas à condição de agregado social” [Pochmann, Marcio. Op. cit., p. 143. p. 143].
[38] Ribeiro, Darcy., op. cit., p. 322.
[39] Idem,Ibidem., p. 220.
[40] Idem,Ibidem., p. 322.
[41] Caio Prado, Júnior., op. cit., p. 297.
[42] Em sua crítica a Hegel, Marx, em A Ideologia Alemã, escrita em parceria com Engels, acentua que “até agora toda concepção histórica ou desconsiderou de cabo a rabo esta base real da história, ou a considerou como algo acessório, simplesmente, que nada tem a ver com o desenvolvimento histórico. Isto faz com que a história seja escrita sempre com base em uma escala situada fora dela; a produção real da vida se revela como algo pré-histórico, enquanto a história se manifesta como algo separado da vida usual, algo extra e supraterrâneo (...). A filosofia hegeliana da história é a última conseqüência, levada a sua “expressão mais pura”, de toda essa historiografia alemã, que não gira em torno dos interesses reais, nem sequer dos interesses políticos, mas sim em torno de pensamentos puros, que mais tarde São Bruno representará numa série de “pensamentos” que se devoram uns aos outros, até que, por último, neste entredevorar-se uns aos outros, a “autoconsciência” morre; e por este mesmo caminho marcha, de um modo mais conseqüente contudo, São Max Stirner, que, voltando-se totalmente de costas para a história real, tem necessariamente de apresentar todo o processo histórico como uma simples história de “cavaleiros”, bandidos e fantasmas, de cujas visões apenas ele mesmo lograr se salvar, naturalmente, através do “anti-sagrado” [Marx, Karl. A ideologia alemã: Crítica da novíssima filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stiner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas, 1845-1846. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007., p. 63/64].
[43] Marx, Karl, apud Bensaïd, Daniel. Marx,o intempestivo: grandezas e misérias de uma aventura crítica. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.,p. 70.

[44] Idem,Ibidem.,p.364.
[45] Idem,Ibidem., p.365.
[46] Caio Prado, Júnior. Formação ... op. cit., p. 369.
[47] Idem,Ibidem., p. 369/70.
[48] Idem,Ibidem., p. 357.
[49] Idem,Ibidem., p. 356.
[50] Idem,Ibidem., p. 359.
[51] Idem,Ibidem., p. 356.
[52] Idem,Ibidem., p. 363.
[53] Idem,Ibidem., p. 366.
[54] Esse é o método dialético que Marx aplica à economia. N’O Capital, escreve que "(...) o processo de troca das mercadorias encerra relações contraditórias e mutuamente exclusivas. O desenvolvimento da mercadoria não suprime essas contradições, mas gera a forma dentro da qual elas podem mover-se; Esse é, em geral, o método com o qual as contradições reais se resolvem. É uma contradição, por exemplo, que um corpo caia constantemente em outro e, com certa constância, fuja dele. A elipse é uma das formas de movimento em que essa contradição tanta se realiza como se resolve” [Karl Marx, O Capital: crítica da economia política. São Paulo, Nova Cultural, 1985. Livro I, vol. I, p. 93].
[55] Prado Junior, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo, op. cit., p. 366.
[56] Idem,Ibidem., p. 367.

RACIONALIDADE E FETICHISMO NO MARXISMO WEBERIANO

APRESENTAÇÃO
RACIONALIDADE E FETICHISMO NO MARXISMO WEBERIANO


1. MARX: FETICHISMO, REIFICAÇÃO E DOMINAÇÃO DE CLASSES

É com História e Consciência de Classe (HCC), de Lukács, que nasce o assim chamado “marxismo-weberiano”, que iria inspirar outros teóricos que sofreram a influência de suas ideias, todos objeto de discussão na segunda parte do presente texto. Adiante-se apenas que esses teóricos incorrem num certo sincretismo de idéias, quando procuram conciliar a teoria de Marx com a de Weber. Principalmente, quando procuram identificar ou conjugar fetichismo e racionalidade, dois fenômenos distintos tanto para o autor de O Capital como para o de Economia e Sociedade.

Para Weber, a racionalidade é um processo de intelectualização da vida, que começa com a desmagificação da religião, isto é, com o fim da magia nas práticas religiosas, e alcança seu ápice com a racionalização científica. Parteira da sociedade moderna, a racionalidade começa a engatinhar seus primeiros passos com o surgimento da religião judaica, para se afirmar definitivamente com a emergência das ciências modernas; um processo histórico milenar, que trazia em suas entranhas as sementes germinativas que iriam possibilitar a criação do capitalismo moderno, que só pôde transformar-se e se afirmar, como forma dominante da sociedade, porque se desenvolveu no seio de um modo racional de vida.

Se assim é, para Weber, não é o capitalismo que cria uma forma de vida que retira dos indivíduos o poder de governar suas própria vida, mas sim, a racionalidade na medida em que ela possibilita o desenvolvimento de uma organização burocrática da sociedade, ao criar um sistema de distribuição de tarefas, na qual um trabalhador, seja da economia privada ou do Estado, não passa

de um elo individual, encarregado de realizar tarefas especializadas, de um mecanismo que se move sem cessar e somente pode ser parado ou posto em movimento no seu ponto culminante, mas (normalmente) em nenhum outro, o que lhe prescreve um percurso essencialmente já determinado[1].

Não sem razão, para Weber, a burocracia

desenvolve sua peculiaridade específica, bem-vinda ao capitalismo, com tanto maior perfeição quanto mais se “desumaniza”, vale dizer, quanto mais perfeitamente consegue realizar aquela qualidade específica que é louvada como sua virtude: a eliminação do amor, do ódio e todos os elementos sentimentais, puramente pessoais e, de modo geral, irracionais, que se subtraem ao cálculo, na execução das tarefas eficazes. Em vez do senhor das ordens mais antigas, movido por simpatia pessoal, favor, graça gratidão, a cultura moderna exige para o aparato externo em que se apóia o especialista não-envolvido pessoalmente e, por isso, rigorosamente “objetivo”, e isto tanto mais quanto ma ela se complica especializa (...). Sobretudo é só ela que costuma criar para a jurisdição o fundamento para a realização e um direito conceitualmente sistematizado e acional, na base de “leis”, tal como o criou pela primeira vez, com alta perfeição técnica, a época imperial romana tardia[2].

Não é o capital, portanto, que usurpa a vontade das pessoas e as obriga a submeter-se a sua lógica de valorização, mas, sim, a burocracia que, para Weber, proporciona ao sistema o poder de forçar os homens a agir e a pensar conforme regras e procedimentos padronizados, previamente estabelecidos. Afinal, para ele,

a burocracia é de caráter “racional”: regra, finalidade, meios, impessoalidade “objetiva” dominam sua atitude. Por isso, seu surgimento e sua divulgação tiveram por toda parte efeito “revolucionário” naquele mesmo sentido especial (...), que caracteriza o avanço do racionalismo, em geral, em todas as áreas[3].


Com a promessa de voltar mais adiante à discussão da problemática entre racionalidade e “fetichismo”, em Weber, o que foi discutido até então basta para anunciar que ele pensa muito diferente de Marx. Com efeito, para este pensador, não é a racionalidade que transforma o capitalismo num sistema opressor, mas, sim, o capital, que, em seu movimento de autovalorização, impõe sua lógica a toda sociedade, transformando os indivíduos em meros agentes de sua “vontade”. Isto assim acontece porque o fetichismo é expressão de uma forma de sociabilidade na qual as relações sociais passam a ser mediadas pelas coisas, a ponto de os homens se tornarem suporte dessas relações, criadas por eles mesmos. Uma forma de sociabilidade, como o diz em seus apontamentos de 1857-1858, os Grudrisse, em que

a própria relação dos objetos, a operação humana com os mesmo, se converte numa operação de um ente exterior ao homem e superior a ele. Por causa desses mediadores estranho – no lugar de ser o próprio homem o mediador para os homens – o homem considera a sua vontade, sua atividade, sua relação com os demais, como uma força independente dele[4].

Essa inversão é própria de uma época em que a igualdade entre os homens assume “a força de um preconceito popular”, isto é, de um tempo em que a troca de mercadorias se constitui como relação social básica, que obriga os indivíduos a reconhecerem-se reciprocamente como iguais, pois só existem uns para os outros unicamente na condição de donos de mercadorias. Por isso, as necessidades humanas, sejam “provenientes do estômago ou da fantasia”, somente podem ser satisfeitas por meio da compra e venda de mercadorias. Assim tem de ser, pois, no capitalismo, o “valor de troca é primeiro com relação ao valor de uso”.

Obviamente, Marx não desconhece a existência da troca antes do capitalismo. Para ele, pode haver circulação de mercadorias e circulação de monetária numa sociedade que tenha como objetivo a produção de valores de uso. No Livro III, de O Capital, afirma que

a circulação de dinheiro e a de mercadorias podem servir de intermediários a ramos de produção com as mais diversas organizações, essencialmente dirigidas, por sua estrutura interna, para a produção de valores de uso[5].

Mas, nessas formas pré-capitalistas de produção de mercadorias, o dinheiro não podia ainda se transformar em capital. Que o diga Marx, para quem o dinheiro, entes da emergência do modo de produção capitalista,

Já aparecia em tempos remotos como comprador dos chamados serviços, sem que D se transformasse em capital-dinheiro ou sem que mudasse o caráter geral da economia[6].

Não há dúvidas de que, para Marx, pode haver circulação de mercadorias e de dinheiro em modos de produção voltados para a produção de valores de uso. Mas nesse caso, o produto do trabalho dos indivíduos não pode adquirir ainda, com exclusividade, a forma mercadoria, no sentido de que é produzido já como valor destinado ao mercado. É o que ele diz, quando sublinha que, nesse contexto histórico,

o produto aí só se torna mercadoria por meio do comércio. Aí é o comércio que leva os produtos a se transformarem mercadorias; não é a mercadoria produzida que, movimentando-se, forma o comercio[7] (p. 378).

Se os produtos do trabalho só se transformam em mercadorias pela ação do comércio, o mercado não é ainda um mercado capitalista, no sentido de que ele seria o único espaço pelo qual e por meio do qual se determina a sociabilidade. Conseqüentemente, a circulação monetária não transforma o dinheiro em capital. Ela é unicamente um instrumento que possibilita a mudança de lugar, ou de esferas na economia, dos produtos, pois o dinheiro só pode funcionar como capital, isto é, como expressão da relação de capital, se as determinidades dessa relação estão postas na realidade efetiva. Essas determinidades, que são, por um lado, a existência das classes, e, por outro, a presença da força de trabalho como mercadoria, não existem ainda numa sociedade dominada pela produção de valores de uso. Na ausência dessa condição, o dinheiro não pode se transformar em capital. Não é o dinheiro, como diz Marx,

que por sua natureza, estabelece essa relação; é antes a existência dessa relação que pode transmutar uma simples função monetária numa função de capital[8].

Se assim é, não se pode falar de fetichismo/reificação das relações sociais antes da existência do modo de produção de mercadorias. Pressupor que Marx parte das formas antidiluvianas do capital, para daí rastrear o seu desenvolvimento histórico, até alcançar a sociedade capitalista, não passa de um simplismo teórico ingênuo. É desconhecer que O Capital não é uma narrativa histórica da gênese do capitalismo, pois uma coisa é fazer uma análise da gênese histórica de um objeto historicamente dado; outra, bem diferente, é buscar compreender a realidade imanente desse objeto. E mais: uma análise da gênese histórica das categorias de O Capital não só não está em desacordo com o método de Marx[9], como também, admiti-la, é cair em certas aporias. A mais grave delas é a que pressupõe que os três primeiros capítulos do Livro I se referem a uma sociedade mercantil simples, cujo objetivo seria a produção de valores de uso, para atender às necessidades dos seus produtores. Nada disso! Nesses capítulos, Marx expõe as determinações da circulação simples como aparência do sistema capitalista e não como uma forma pré-capitalista de produção. Aparência e essência são momentos constitutivos do capital e não realidades históricas distintas. Se Marx houvesse tomado a circulação simples, aparência do sistema, como se fora expressão de uma sociedade mercantil simples, de uma sociedade pré-capitalista, não poderia ter apresentado, no primeiro capítulo, as determinações do trabalho abstrato, categoria central em torno da qual gira a compreensão da Economia Política[10], isto é: do modo de produção capitalista. Fora do capitalismo não há trabalho abstrato[11].

Ora, na circulação simples o que reina é unicamente as leis da produção de mercadorias, segundo as quais todos os possuidores de mercadorias percebem a troca unicamente como troca de valores equivalentes. Se é assim, como se poderia explicar a origem da mais-valia, que é a expressão das leis de apropriação capitalista? Noutras palavras, como de uma troca de valores iguais pode surgir um excedente econômico, que passa a ser apropriado pela classe capitalista?

Para responde essa questão, Marx passa a investigar a dialética interna da mercadoria, que converte as leis de produção de mercadorias em leis de apropriação capitalista, sem ferir, obviamente, o princípio da troca de equivalentes. A tarefa que tem pela frente é a de demonstrar como a acumulação de capital converte aquelas leis da circulação simples em seus contrários imediatos. Sem isto, não teria como apreender plenamente o real sentido do processo de fetichização/reificação das relações sociais.

Mas isto exige uma série de mediações, que demanda do leitor certa dose de paciência, pois a pressa pode levá-lo a tirar conclusões precipitadas sobre o real sentido daquele processo. O conceito de fetichismo não se encontra pronto e acabado tal como Marx o expõe na seção 4 do primeiro capítulo de O Capital, que ele intitula de “O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo”. Seu real sentido só pode ser compreendido quando se chega ao fim da apresentação do processo por meio do qual a dialética interna da mercadoria transforma as leis da produção de mercadorias, isto é, da circulação simples, em leis de apropriação capitalista.

O ponto de partida para se compreender essa dialética interna da mercadoria, que transforma as leis da produção de mercadorias em leis de apropriação capitalista, é a circulação simples, objeto de investigação da primeira seção de O Capital, do Livro I. É aí que Marx expõe as determinações da aparência do modo de produção capitalista, na qual tudo o que reina é unicamente Liberdade, Igualdade, Propriedade e Bentham. Liberdade! Pois, escreve Marx,

comprador e vendedor de uma mercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são determinados apenas por sua livre-vontade. Contratam como pessoas livres, juridicamente iguais. O contrato é o resultado final, no qual suas vontades se dão uma expressão jurídica em comum. Igualdade! Pois eles se relacionam, um com o outro, apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade! Pois cada um dispõe apenas sobre o seu. Bentham! Pois cada um dos dois só cuida de si mesmo. O único poder que os junta e leva a um relacionamento é o proveito próprio, a vantagem particular, os seus interesses privados. E justamente porque cada um só cuida de si e nenhum do outro, realizam todos, em decorrência de uma harmonia preestabelecida das coisas ou sob os auspícios de uma previdência toda esperta, tão-somente a obra de sua vantagem mútua, do bem comum, do interesse geral[12].

Nesse mundo de Liberdade, Igualdade e Propriedade, o capitalismo aparece como se fora um sistema que obedece às leis gerais da produção simples, da produção de mercadorias, como se a sua finalidade fosse a satisfação das necessidades de consumo dos indivíduos e não a valorização do valor, a produção da mais-valia. Acontece que não é a aparência, isto é, o reino da circulação simples, que determina o capitalismo como tal, mas, sim, a sua essência, na qual aquelas determinações da circulação simples aparecem invertidas: a liberdade transforma-se em não-liberdade; a igualdade, em não-igualdade e a propriedade, em não-propriedade, isto é: na apropriação gratuita do trabalho alheio.

Para analisar essa interversão das leis da circulação simples, isto é, da produção de mercadorias em leis de apropriação capitalista, Marx convida seus leitores para, com ele, “abandonarem” aquela esfera ruidosa, na qual “o livre cambista vulgaris extrai concepções, conceitos e critérios para seu juízo sobre a sociedade do capital e do trabalho assalariado”. Formulado o convite, juntos, preparam-se para acompanhar o capitalsita e o trabalhador

ao local oculto da produção, em cujo limiar se pode ler: No admittance except on business. Aqui há de se mostrar não só como o capital produz, mas também como é produzido, o capital. O segredo da fabricação de mais-valia há de finalmente desvendar[13].


Da aparência até a essência do sistema, em cuja porta de entrada está escrito que “não se permite a entrada a não ser a negócios”, é um longo caminho. Começa no capítulo V, do Livro I, Vol.I, até chegar ao capítulo XXI e XXII, do mesmo Livro, Vol.II. Só aí, então, o leitor poderá compreender como Marx desvenda o segredo da mais-valia e, assim, desmistifica todas as ilusões da esfera da circulação simples, que aparece aos olhos do observador imediato como um verdadeiro éden dos direitos naturais do homem, em que todos se julgam livres, porque se relacionam entre si por meio de contratos; iguais, porque todos são proprietários de mercadorias e, como tais, assim se reconhecem reciprocamente. A única diferença que aí reconhecem esses possuidores é, no máximo, diz o autor de O Capital,

uma diferença material, que se expressa nas formulas juridicamente equivalentes: Do ut des, do ut faciais, facio ut des, e facio ut facias {Dou para que dês, dou para que faças; faço para que des, e faço para que faças}[14].

Essa consciência jurídica, tanto do trabalhador quanto do capitalista, desvanece-se quando o processo de produção é apreendido da ótica de sua renovação contínua, em que o fim de cada ciclo do capital constitui o ponto de partida para um outro, numa escala crescente, pois parte da mais-valia do ciclo anterior é reinvestida no seguinte e assim por diante. Como consequência

o intercâmbio de equivalentes, que apareceu como a operação original, se torceu de tal modo que se troca apenas na aparência, pois, primeiro, a parte do capital que se troca por força de trabalho nada mais é do que uma parte do produto do trabalho alheio, apropriado sem equivalente, e segundo, ela não somente é reposta por seu produtor, o trabalhador, como este tem de repô-la com novo excedente. A relação de intercâmbio entre capitalista e trabalhador torna-se portanto apenas mera aparência pertencente ao processo de circulação, mera forma que é alheia ao próprio conteúdo e apenas o mistifica. A contínua compra e venda da força de trabalho é a forma. O conteúdo é que o capitalista sempre troca parte do trabalho alheio já objetivado, do qual se apropria incessantemente sem equivalente, por um quanto de trabalho vivo alheio[15].


Quer dizer, então, que a produção de mais-valia anula o princípio da troca de equivalentes? Se a resposta que se espera for positiva, a troca deixará de ser uma relação social, reconhecida por todos os possuidores de mercadorias, para se transformar numa relação fraudulenta ou de pilhagem, em que todos estariam expostos à violência alheia. Além disso, a mais-valia não seria mais concebida teoricamente e, em conseqüência, Marx não poderia demonstrar a sua teoria da exploração, porque assim não teria como distingui-la do roubo. E mais: tudo isso resultaria na anulação das leis jurídicas e teóricas dos possuidores de mercadorias. Noutras palavras, toda a análise que Marx faz da circulação simples não teria nenhum sentido teórico e prático.

A resposta que se encontra em Marx é muito diferente do que supostamente se poderia esperar. A produção da mais-valia não anula o princípio da troca de equivalentes. As leis da produção de mercadorias permanecem válidas a despeito de sua conversão em leis de apropriação capitalista. Nada melhor do que deixar que o próprio Marx o diga. Em suas próprias palavras, esclarece:

por mais longa que seja a seqüência das reproduções periódicas e acumulações precedentes pelas quais tem passado o capital que hoje funciona, este conserva sempre sua virgindade original. Enquanto em cada ato de troca - considerado isoladamente - são mantidas as leis do intercâmbio, o modo de apropriação pode experimentar um revolucionamento total sem que seja afetado, de forma alguma, o direito de propriedade adequado à produção de mercadorias. Este mesmo direito vigora tanto no início, quando o produto pertence ao produtor e este, trocando equivalente por equivalente, pode enriquecer apenas mediante o seu próprio trabalho, como também no período capitalista, em que a riqueza social em proporção sempre crescente torna-se propriedade daqueles que estão em condições de apropriar-se sempre de novo do trabalho não-pago de outros[16].


Nessa passagem, Marx não poderia ter sido mais claro. A conversão das leis de produção de mercadorias em leis de apropriação capitalista não anula o princípio da troca de equivalentes. A mais-valia é uma relação social, como mostra o trecho citado, que exige tanto a troca de equivalentes como a de não-equivalentes. Só assim, ele pôde demonstrar a teoria da exploração e, dessa forma, distingui-la do simples roubo.

Mas, como numa mesma relação de exploração podem subsistir dois princípios imediatamente contrários - o de equivalência e o de não-equivalência?

A resposta não é tão difícil. É bastante ter presente que, na produção de mercadorias, comprador e vendedor defrontam-se como pessoas independentes. Suas transações são atos isolados, em que cada um se reporta ao outro na condição de possuidor de mercadorias, conseqüentemente, como indivíduos preocupados unicamente com a realização de seus interesses privados. A cada um não importa se suas relações de compra e venda são mediadas por outros atos de compra e venda. O que lhes importa é trocar suas mercadorias por outras de igual valor. Isto acontece até mesmo quando alguém compra uma mercadoria pagando-a com o dinheiro do seu próprio vendedor. É o caso do roubo. Se alguém paga as mercadorias que comprou com o dinheiro roubado de seu vendedor, desde que este não saiba quem o roubou, se as vende por seu real valor, está realizando uma troca de equivalente.

Não é diferente o que se passa com a troca entre capital e trabalho. Para cada ato isolado de compra e venda da força de trabalho vige o princípio da troca de equivalente. Quando o trabalhador vende sua mercadoria força de trabalho, recebendo em troca um equivalente de valor, o consumo dessa mercadoria passa a pertencer ao seu comprador, que pode fazer com que ela produza um valor maior do aquele que por ela pagou. Mas isto acontece na esfera do consumo, que não tem mais nada a ver com a esfera da circulação em que se defrontaram como vendedores e compradores de uma mercadoria, segundo as regras do princípio da equivalência. Se o capitalista utiliza a mais-valia, que extraiu do consumo da mercadoria que comprou, para contratar um novo trabalhador, o primeiro não tem nada a reclamar, pois vendeu sua mercadoria por seu real valor. Isto em nada fere o princípio da troca de equivalentes, pois a mais-valia, extraída do consumo da força de trabalho, é propriedade do capitalista. "Ela jamais pertenceu ao outro", diz Marx. E continua:

se adianta para a produção, ele faz, exclusivamente, como no dia em que pela primeira vez pisou no mercado, adiantamentos de seu próprio fundo. Que desta vez, esse fundo se origine do trabalho não-pago de seus trabalhadores, não altera absolutamente nada da coisa. Se o trabalhador B é ocupado com a mais-valia que o trabalhador produziu, então, primeiro, A forneceu esta mais-valia sem que se tenha deduzido um real do justo preço de sua mercadoria, e, segundo, B não tem absolutamente nada a ver com esse negócio. O que B exige e tem o direito de exigir é que o capitalista lhe pague o valor de sua força de trabalho.[17]

Agora, tudo se esclarece de vez. O princípio de equivalência vige quando as trocas são apreendidas como atos entre indivíduos; o de não-equivalência, quando se considera o processo capitalista em seu fluxo ininterrupto de renovação; ou seja, quando se passa do mundo da experiência vivida pelos indivíduos para o das classes sociais. Com isto, instaura-se uma contradição entre o mundo da aparência e o da essência do sistema. Porque contraditória, essa relação não pode ser abandonada a si própria; ela exige, por isso, uma forma social para se desenvolver e realizar-se. Esta forma é o Estado. Sua função é zelar e fazer valer, através da lei, o desenvolvimento das relações de troca entre capitalistas e trabalhadores, que se operam por meio de uma série de contratos jurídicos privados. Como guardião dessas relações de troca, o Estado considera os indivíduos como nômades e, como tais: detentores de direitos iguais.

Mas como essa igualdade se converte em não-igualdade, o Estado, como o seu guardião, só pode afirmar aquela igualdade “negando” a desigualdade das classes. Nesse sentido, essa instituição é o exercício da violência de uma classe contra a outra. Entretanto, essa violência aparece mistificada sob a forma de contraviolência. Como assim? Ora, o Estado, na condição de guardião da igualdade dos contratantes, tem como função impedir a violação dos contratos. Quaisquer danos impostos por uma das partes à outra é uma transgressão da lei, que é reparada impondo-se uma pena ao seu transgressor. Nesse sentido, a violência do Estado contra o transgressor acontece através de e por meio da lei. Trata-se, portanto, de uma violência, que é violência legalizada, e que, por isso, tem como objetivo corrigir as injustiças cometidas pelos contratantes uns contra os outros. A violência é, portanto, contraviolência, na medida em que esta última se realiza para anular uma violência cometida contra o direito.

Por isso, o desvelamento do segredo da mais-valia, realizado por Marx, permanece ocultado, pois a atuação do Estado, como guardião da identidade dos contratantes, apaga todo e qualquer vestígio da troca de não-equivalentes. Esta não pode, portanto, ser dissipada, mas, tão-somente, elucidada. Nenhuma boa teoria do conhecimento seria capaz de arrancar da mente dos indivíduos as “falsas” concepções que teriam sobre a sociedade do capital. Tais concepções não são falsas por falta de esclarecimento, mas, sim, porque a essência do sistema, em que a mais-valia é produzida, aparece à superfície da sociedade, como essência “negada”, isto é: a troca de não equivalentes aparece como uma troca de equivalentes. Compreende-se, assim, porque a forma salário é, em si mesma, aparência que dissimula o tempo de trabalho não pago por trás do pagamento supostamente integral do trabalho. Como diz Marx, essa forma extingue

todo vestígio da divisão da jornada de trabalho, em trabalho paga e trabalho não pago. Todo trabalho aparece como trabalho pago. Na corvéia distingui-se espacial e temporalmente, de modo perceptível para os sentidos, o trabalho do servo para si mesmo e seu trabalho forçado para o senhor da terra. No trabalho escravo, parte da jornada de trabalho em que o escravo apenas repõe o9 valor de seus próprios meios de subsistência, em que, portanto, realmente só trabalha para si mesmo, aparece como trabalho para seu dono. Todo o seu trabalho aparece como trabalho não pago. No trabalho assalariado, ao contrário, mesmo o mais-trabalho ou trabalho não pago aparece como trabalho pago. Ali a relação de propriedade oculta o trabalho do escravo para si mesmo; aqui a relação dinheiro oculta o trabalho gratuito do assalariado[18].

O fetichismo não é, portanto, um mero disfarce. Ele não desaparece pelo simples fato de Marx demonstrar que a troca de não-equivalente é, na verdade, uma troca de não-equivalentes. Assim tem de ser, pois o comprador e o vendedor da força de trabalho não se confrontam como classes, mas, sim, como comerciantes individuais, ambos ancorados na lei de intercâmbio de mercadorias. Por isso, o capitalista pode afirmar

seu direito como comprador, quando procura prolongar o mais possível a jornada de trabalho e transformar onde for possível uma jornada de trabalho em duas. Por outro lado, a natureza específica da mercadoria vendida implica um limite de seu consumo pelo comprador, e o trabalhador afirma seu direito como vendedor, quando quer limitar a jornada de trabalho a determinada grandeza normal. Ocorre aqui, portanto, uma antinomia, direito contra direito, ambos apoiados na lei do intercâmbio de mercadorias. Entre direitos iguais decide a força[19].

A mistificação reside, portanto, nas relações sociais de produção. Por isso, não se pode ignorar que o fetichismo não só carrega consigo a mistificação, mas também a ideologia da dominação. Nenhuma teoria é capaz de fazê-lo desaparecer, pois não se trata apenas de um fenômeno da consciência, mas, sim, da existência de um modo de produção em que suas relações sociais aparecem necessariamente de forma mistificada. Não se trata, portanto, de um fenômeno que atua na cabeça dos indivíduos, porque estes estão possuídos de uma falsa consciência do mundo, como alguém que acredita que os homens se afogam porque têm na mente a noção de gravidade. Não. O fetichismo não é uma mera ilusão; muito pelo contrário, resulta das próprias condições sociais, de sua autoprodução.

Ao desvendar, portanto, o segredo da mais-valia, Marx nada mais fez do que revelar porque a exploração aparece necessariamente como um fenômeno ocultado e que assim deve permanecer até que as armas da crítica sejam apropriadas pela da crítica das armas.

2. WEBER: RACIONALIDADE E “REIFICAÇÃO”

De tudo o que foi dito até então, cabe acrescentar que o fetichismo tem como conseqüência a reificação do homem. Quando Marx afirma que no capitalismo as relações humanas são mediadas pelas coisas e que nelas reside a vontade dos homens, está a dizer que são essas coisas que dirigem a sua atividade. Tem-se aí, a um só tempo, um processo de fetichização e reificação. De fetichização! Pois as coisas, entes inanimados, ganham vida perante os homens. De reificação! Pois, os homens são transformados em objetos na medida em que não são mais donos de sua vontade; tornam-se escravos das coisas.

Essa transformação dos homens em objeto e das coisas em sujeito decorre do fato de que o capital é, antes de tudo, sujeito pleno, que deve a si mesmo a sua existência. Suas formas imediatas de sua existência, a mercadoria e o dinheiro, nada mais são do que seus predicados, pois o capital só é capital por meio do movimento em que assume a forma dinheiro, para logo abandoná-la e assumir a forma mercadoria, para que esta se transforme em mais dinheiro, para, em seguida, adquirir novamente a forma mercadoria, num ciclo ininterrupto, em que o ponto de partida e o de chegada só se diferenciam quantitativamente. Como dirá Marx, a mercadoria e o dinheiro

funcionam apenas como modo de existência do próprio valor, o dinheiro o seu modo geral, a mercadoria o seu modo particular, por assim dizer apenas camuflado, de existência. Ele passa continuamente de uma forma para outra, sem perder-se nesse movimento, e assim se transforma num sujeito automático. Fixadas as formas particulares de aparição, que o valor que se valoriza assume alternativamente no ciclo de sua vida, então se obtêm as explicações: capital é dinheiro, capital é mercadoria. De fato, porém, o valor se torna aqui sujeito de um processo em que ele, por meio de uma mudança constante das formas de dinheiro e mercadoria, modifica a sua própria grandeza, enquanto mais-valia se repele de si mesmo enquanto valor original, se autovaloriza. Pois o movimento, pelo qual ele adiciona mais-valia, é seu próprio movimento, sua valorização, portanto autovalorização. Ele recebeu a qualidade oculta de gerar valor por ele é valor. Ele pare filhotes vivos ou ao menos põe ovos de ouro[20].

Como portador consciente desse movimento, o possuidor do dinheiro torna-se capitalista. Como tal, ele é obrigado a sujeitar-se a esse movimento insaciável de valorização do valor, que usurpa as qualidades humanas do seu possuidor, para transformá-lo em seu mero representante. A vontade do capitalista reside, pois, no capital. Assim, o morto, o capital, ganha vida própria, enquanto o vivo, o capitalista, torna-se mero objeto, suporte de um movimento sobre o qual não tem domínio. Nisto consistem, portanto, o fetichismo do capital e sua conseqüente reificação do homem.

Que diria Weber de tudo isso? Teria ele uma teoria do fetichismo/reificação, uma vez que entende o capitalismo moderno como uma forma de sociedade em que o “sistema” cria “para si mesmo, por via da seleção econômica, os sujeitos econômicos – empresários e operários – de que necessita”? Uma forma de vida, diria mais, em que “aquele que em sua conduta de vida não se adapta às condições do sucesso capitalista, ou afunda ou não sobe”, como assim escreve nas páginas da Ética Protestante e o Espírito do capitalismo, objeto de discussão da primeira parte do presente texto.

Se é a economia capitalista moderna que seleciona os sujeitos econômicos de que precisa, nela, os indivíduos não têm domínio sobre sua atividade, não são eles quem decide suas vidas, mas, sim, o sistema econômico. Tudo indica que é assim mesmo que Weber pensa. Em Economia e Sociedade escreve que os indivíduos, na maioria dos casos, agem sem ter consciência do sentido visado em suas ações. O agente da ação, diz ele,

mais o “sente”, de forma indeterminada, do que o sabe ou tem “clara idéia” dele [do sentido]; na maioria dos casos, age instintivamente ou habitualmente. Apenas ocasionalmente e, no caso de ações análogas em massa, muitas vezes só em poucos indivíduos, eleva-se à consciência um sentido (seja racional, seja irracional) da ação. Uma ação determinada pelo sentido efetivamente, isto é, claramente e com plena consciência, é na realidade apenas um caso limite[21].

Qual é a razão desse automatismo das ações dos indivíduos, que agem sem que tenham consciência do sentido de suas ações? Qual é a força que os obriga a agir como verdadeiros autômatos? O capital como objeto-movimento e que por isso mesmo se tornou sujeito, como assim entende Marx? Categoricamente, claro que não. Para Weber, o conceito de capital só pode ser apreendido em termos subjetivos. Com efeito, o autor de Economia e Sociedade define o capital em termos contábeis, como uma conta de lucros e perdas, pela qual os investidores estimam seus ganhos prováveis. Como ele mesmo o diz,

denomina-se capital a importância estimada em dinheiro, verificada a fim de elaborar no cálculo de capital a importância estimada em dinheiro, verificada a fim de laborar no cálculo de capital um balanço dos meios de aquisição disponíveis para os fins de empreendimento. Lucro e perda são, respectivamente, o aumento e a diminuição da importância estimada, verificado no balanço final, em relação à importância do balanço inicial[22].

Weber define, portanto, capital como uma soma monetária de bens, que o capitalista investe com o objetivo de obter lucro, ou como o diz, como uma atividade aquisitiva orientada pelas oportunidades de ganhar novos poderes de disposição sobre bens e serviços. Como apropriadamente observa Fausto,

se, para Marx, o capital é um universo concreto, e mais precisamente um objeto-movimento (um processo que se tornou Sujeito), para Weber, “capital” é uma noção que precisa ser clarificada se quisermos objetivá-la. Em primeiro lugar, ele fala antes de “conta capital” (Kapitalrechnung) do que capital, o que já implica uma subjetivação do conceito. “O que se quer dizer (bedeutet) quando se fala em ‘poder do capital’ (Kapitalmacht)? Que aqueles que dispõem (die Inhaber) do poder de disposição sobre os meios de ganho (Erwerbsmittel) e as chances econômicas, utilizáveis enquanto bens de capital numa empresa que visa o lucro (Erwerbsbetrieb), graças a esse poder de disposição e graças à orientação da economia pelos princípios do cálculo capitalista que visa o lucro, ocupam uma posição de força em relação a outros”. Vê-se que a definição do “capital” implica uma redução do objeto ao sujeito (o possuidor). O que quer dizer: só traduzido em termos subjetivos o “capital” é objetivável[23].


Se, para Weber, o capital não é pensado como processo que se tornou sujeito, é-se obrigado a voltar à questão que perguntava como entender o porquê de os indivíduos não terem domínio sobre suas ações; isto é, não serem donos de sua vontade, uma vez que agem como verdadeiros autômatos. A resposta só pode ser encontrada à luz de sua teoria da racionalidade. É com base nela que ele define o capitalismo como mundo desencantado, como um mundo que é produto de um processo de racionalização, que começa com a desmagificação da religião, isto é, com o fim da magia nas práticas religiosas, e culmina com a racionalização científica. A partir de então, o que não se ajusta às medidas de calculabilidade e de utilidade passa a ser considerado suspeito para a razão técnica. Tudo o que não se ajusta à racionalidade técnico-científica é desterrado para o domínio da religião e da poesia. Não sem razão, ao descrever as condições prévias que possibilitaram o surgimento do capitalismo, dentre elas, destaca

(1)“a técnica racional, isto é, contabilizável até o máximo, e, portanto, mecanizada, mas com referência aos custos de transporte dos bens; (2) Direito racional, isto é, direito calculável. Para que a exploração econômica capitalista proceda racionalmente precisa confiar em que a justiça e a administração seguirão normas seguirão determinada pautas[24].


É essa racionalidade técnico-científica que despoja os homens da capacidade de atribuir sentido ao seu agir, transformando-os em verdadeiros autômatos. Não é, portanto, o capital, processo em movimento, que se tornou sujeito, que converte os homens em suporte de sua “vontade” desse objeto semovente, mas, sim, as ciências, das quais esse objeto-movimento se serve para empreender sua contabilidade de custos e receitas esperadas.

Diferentemente, portanto, do que entende Marx, para Weber, é a racionalização técnico-científica que submete a natureza e os homens a um mundo padronizado, regido por métodos e regras técnicas, que os obrigam a segui-las caso desejem dispor das coisas e suas utilidade. Quem não se sujeitar a esse poder das ciências, melhor faria buscar conforto para sua alma nos braços da Igreja, se é que nela ainda poderá encontrar respostas para suas aflições. Melhor faria se abraçasse o destino de sua época, pois a intelectualização e a racionalização crescentes da vida são um processo sem volta, irreversível, pois o “trabalho científico está ligado ao curso do progresso”, não tem fim. Como conseqüência, a magia e a metafísica religiosa foram exorcizadas para o reino do irracional. A intelectualização científica e a sua conseqüente racionalização passaram a assumir as rédeas da vida dos homens, pois, como diz Weber em A Ciência como Vocação, o conhecimento científico significa,

antes, que sabemos ou acreditamos que, a qualquer instante, poderíamos, bastante que o quiséssemos, provar que não existe, nenhum poder misterioso e imprevisível que interfira com o curso de nossas vidas; em uma palavra, que podemos dominar tudo, por meio da previsão. Equivale isso a despojar o mundo da magia. Para nós não mais se trata , como para o selvagem que acredita na existência daqueles poderes, de apelar a meios mágicos para dominar os espíritos ou exorcizá-los, mas de recorrer à técnica e à previsão. Tal é o significado essencial da intelectualização[25].

Agora, tudo se esclarece de vez. Para Weber, não é o capital que transforma os homens em meros suporte de relações sobre as quais eles não têm domínio, mas, sim, a racionalização técnico-científica, que transcende a esfera da economia e passa a dominar todas as dimensões da vida humana. Como apropriadamente reconhece Löwith, Weber

não encara o capitalismo como uma força autonomizada de relações, meios e “forças de produção”, para, com base nela entender ideologicamente todo o resto; mas, segundo Weber, o capitalismo só pôde transformar-se na força determinante da vida humana por desenvolver-se, por sua vez, no âmbito de um “modo racional de vida”. A “racionalidade”, tomada como fio condutor da compreensão, não se resume, portanto, em ser racionalidade de alguma coisa, racionalidade de uma área (que como “determinante”, também influência outras áreas da vida), mas é entendida por Weber, apesar de seu procedimento científico especializado (do tipo de uma atribuição causal reversível de determinados “fatores”), como um todo original e que não comporta alternativas, como um todo que caracteriza uma “postura de vida”, um “modo de vida” peculiar, como ethos ocidental (...). O capitalismo como tal, no seu significado econômico, não pode, por isso, ser encarado como origem autônoma da racionalidade; muito antes uma racionalidade no modo de vida – como motivação original religiosa – faz também o capitalismo, no sentido econômico, transformar-se numa força dominante da vida[26].

Löwith não poderia ter sido mais claro. O capitalismo somente pôde se transformar numa força social dominante, porque se desenvolveu no seio de um modo racional de vida. É, portanto, a racionalidade, noção bem mais ampla do que a de capital, que transforma os agentes sociais, capazes de investir seus atos de sentido, em meros suportes de um mecanismo (a burocracia), que funciona sozinho. Se se pode falar de fetichismo/reificação em Weber, é preciso acentuar que se trata de um fenômeno que não está ligado ao capital como objeto semovente, que se transformou em sujeito. Não se trata, por conseguinte, de um fenômeno que carrega consigo a dominação de classes, como assim entende Marx.

3. RACIONALIDADE E FETICHISMO NO MARXISMO WEBERIANO

Que diriam de tudo isso os chamados marxistas weberianos? Quando procuram conciliar a teoria da racionalidade de Weber, para apreenderem a teoria do fetichismo/reificação de Marx, levam na devida conta de que se trata de dois pensadores, que acentuam de forma radicalmente diferente esse mesmo fenômeno? Esse sincretismo teórico não acaba por escamotear o que é mais importante na teoria do fetichismo, que é a dominação de classes?


.................]
.....................
......................




Os autores


[1] Weber, Max. Weber, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. – 4.ed. – Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999. Vol. II., p.222.
[2] Idem.Ibidem., p.213.
[3] Idem.,Ibidem.,p.233.
[4] Marx Karl, Elementos fundamentales para la Crítica de La Economia (Grundrisse), 1957-1958, apud Rosdolsky, Gênesis y estrucutura de El Capital de Marx: estúdios sobre los Grundrisse. - Buenos Aires, Siglo Veintuino Editores., p. 158.
[5] Marx, Karl, apud Teixeira, Francisco José Soares. Pensando com Marx: uma leitura crítico-comentada de O Capital. – São Paulo: Editora Ensaios, 1995., p. 211.
[6] Idem,Ibidem., p. 211.
[7] Idem,Ibidem., p. 212.
[8] Idem,Ibidem., p. 212.
[9] Teixeira, Francisco José Soares. Sobre a Crítica Dialética de O Capital: uma anticrítica. In Revista Crítica Marxista, numero 8. – São Paulo: Xamã Editora, 1999.
[10] Marx, Karl. O Capital: crítica da economia política. – 3. ed. – São Paulo: Nova Cultural, 1988. Livro I. Vol.I., p. 49: “A mercadoria apareceu-nos, inicialmente, como algo dúplice, valor de uso e valor de troca. Depois mostrou-se que tazmbém o trabalho, à medida que é expresso no valor, já não possui as mesmas características que lhe advêm como produtor de valores de uso. Essa natureza dupla da mercadoria foi criticamente demonstrada pela primeira vez por mim. Como esse ponto é o ponto crucial em torno da qual gira a compreensão da Economia Política, ele deve ser examinado mais de perto”.
[11] Fausto, Ruy. Marx: Lógica & Política. – São Paulo: Brasiliense, 1983., Tomo I., p.93: “O privilegio do trabalho simples está ligado a uma determinação essencial ao sistema (ao sistema plenamente desenvolvido). Na realidade, o trabalho simples é posto ou criado pela grande indústria (com a qual se passa ao capitalismo em sentido específico). É o capitalismo em sentido específico que constitui o trabalho simples (o capitalismo manufatureiro já havia “simplificado” o trabalho). Nas outras formações, ou o trabalho simples era secundário – a produção medieval urbana, por exemplo, é a do virtuose – ou ela não era posta pelo sistema, que significa que o trabalho simples fora do capitalismo é coisa diversa do trabalho simples como categoria do capitalismo (...)”.
[12] Marx, Karl. O Capital., op. cit., Livro I. Vol.I., p. 141.
[13] Idem,Ibidem., p. 140/41.
[14] Idem,Ibidem., Livro I.,Vol.II., p. 130.
[15]Idem ibidem; p. 166.
[16]Idem ibidem; p. 169.
[17]Idem ibidem; p. 168.
[18] Marx, Karl. O Capital., op. cit. Livro I. Vol.II., p. 130.
[19] Idem,Ibidem. Vol.I., p. 181.
[20] Idem,Ibidem., p.126.
[21] Weber, Max. . Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. – ed. 4 – Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1998. Vol. I., p.12.
[22] Idem,Ibidem., p. 56.
[23] Fausto, Ruy. Dialética, Estruturalismo, Pré (pós) – Estruturalismo, in Dialética marxista, dialética hegeliana: a produção capitalista como circulação simples. – Rio de Janeiro: Paz e Terra; São Paulo: Brasileiense, 1997. – (Oficina de filosofia., p. 151.
[24] Weber, Max. História Geral da Economia. – São Paulo: Editora Mestre Jou., p. 251.
[25] ___, A Ciência como Vocação. – São Paulo: Editora Cultrix LTDA., p. 30/31.
[26] Löwith, Karl. Max Weber e Karl Marx, in Max Weber & e Karl Marx. – São Paulo: Editora Hucitec, 1997., p.19/20.