PALESTRA REALIZADA PARA O I ENCONTRO NORDESTINO DO MOVIMENTO NACIONAL DA LUTA ANTIMANICOMIAL - TERESINA-PIAUÍ, 01 DE ABRIL DE 2006
1 - INTRODUÇÃO: MODERNIDADE E MEDIOCRIZAÇÃO DO HOMEM
A modernidade inaugura uma forma de vida em que nada permanece por muito tempo igual ao que fora, ou ao que é. Tudo muda o tempo todo. A força, que anima essa constante mudança, nas palavras de Marx, é a fome de dinheiro. Não é sem razão que, para ele, a burguesia é o agente vital dessa efervescência social, dessa agitação que nunca descansa. Movida pelo interesse de tudo fazer se transformar em mercadorias negociáveis, a burguesia cruzou fronteiras, atirou-se mar adentro e conquistou a América, a África, a China... Tal qual Midas, transformou o mundo todo numa imensa feira comercial; tudo em que tocava convertia-se em dinheiro. Tudo e todos, a quem encontrava pela frente, eram apanhados e atirados ao redemoinho do mercado mundial. Assim, a burguesia destruiu todos os laços naturais que prendiam os homens uns aos outros, “para deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do pagamento à vista”[1]. Marx narra essa odisséia de cobiça e de ganância da burguesia num tom de dramatização tão emocionante, que chega até mesmo a deixar o leitor revoltado. Das páginas do “Manifesto Comunista”, de onde relata essa odisséia, parece-se ouvir o barulho dos antigos valores se debatendo nas “águas geladas do cálculo egoísta”, tentando fugir das garras asfixiantes da burguesia. A dignidade pessoal e as numerosas liberdades, conquistadas duramente, foram transformadas num punhado de moedas de ouro, cujo valor passou a ser medido pelo peso que cada indivíduo carregava em seu bolso.
Se, no plano material, a burguesia arrancou o homem dos grilhões que o prendia à sua localidade de nascimento e o lançou ao mercado mundial, transformando-o num ser cosmopolita, que passou a ter o mundo como morada; no plano intelectual, o fez prisioneiro de um saber regionalizado, relativo e parcial. Preocupado com seus interesses particulares, o homem perdeu o gosto por uma forma de saber generalizante, voltado para compreender a totalidade do homem e do mundo em sua unidade[2]. É que a vida se tornou tão complicada, tão agitada, tão ativa, que pouco tempo ele pode dispor para se dedicar ao estudo de questões especulativas. Suas atividades mercantis absorvem quase toda sua vida. Tomado pelo desejo do sucesso fácil e pelo desfrute do presente, o homem passou a desprezar o estudo de tudo que não tem utilidade prática para seus negócios. Um saber desinteressado, como o é o da filosofia, não lhe é de nenhuma serventia. Com efeito, de que serve um conhecimento que tem em mira a unidade da totalidade das coisas do mundo, se ele não pode ser aplicado lucrativamente? De que serve um mundo povoado de eruditos pensadores, se eles não sabem construir máquinas que economizam trabalho nem conhecem métodos eficazes que encurtem os caminhos que levam à riqueza[3]?
É nesse contexto que a filosofia se vê obrigada a disputar espaços com as ciências, que se expandem e se diversificam na medida em que avança o desenvolvimento industrial por todo globo terrestre. A sociedade, que se torna mais complexa, mais dinâmica e com novos problemas, passa a demandar conhecimentos especializados até então inexistentes. No campo da produção, a organização do processo de trabalho e as previsões sobre a evolução do mercado criam a necessidade de uma nova ciência: a economia. A sociologia, a pedagogia e a administração nasceram para tratar dos problemas de formação, educação e vigilância dos trabalhadores. Para cuidar das questões de adaptação do trabalhador e do homem, em geral, à nova forma emergente de vida, a psicologia passou a fazer parte do universo do saber científico. Com o avanço do mercado mundial, a geografia se apresenta como uma ciência que tem como objeto de estudo instruir o homem produtor de mercadorias, para que possa dominar espaços no cenário da troca internacional[4].
Assim, as ciências, pouco a pouco, palmearam todas as dimensões da vida social. Recortaram e mapearam a realidade social, de acordo com a necessidade de conhecimento de cada uma delas. Mas, as coisas não pararam por aí. A delimitação dos campos de saber entre as ciências é apenas um lado desse processo de demarcação de lugar. No interior de cada ciência, assiste-se a um aprofundamento da especialização técnica, a ponto de os cientistas de uma mesma área de conhecimento não mais conseguirem se comunicar entre si. No lugar do cientista, que antes tinha uma visão de totalidade da sua ciência, surge o especialista, o perito. Em conseqüência, as ciências são transformadas numa forma de saber esmigalhado, em que cada especialista, cada vez mais, menos sabe de mais coisas[5].
A indigência cultural e política, que chega a beirar as raias da idiotia, é preço que a sociedade se vê obrigada a pagar por essa forma extremada de especialização do saber. É um preço muito alto! Decerto que sim. Mas, que fazer? Será possível recuperar o projeto moderno da razão, que acreditava na força libertadora do conhecimento? Parece que não. É com tristeza que hoje se vê multiplicar a produção de textos de leitura fácil e rápida. Os clássicos da filosofia, da economia política, da sociologia, todos estão nas bancas de revistas, para ser lidos em 90 minutos. A obra de uma vida toda, como as de Kant, Hegel, Marx, por exemplo, é condensada em poucas e ligeiras palavras. Alguns trechos de fácil compreensão são selecionados para o leitor citá-los e, assim, pousar de intelectual diante de uma platéia tão mal preparada quanto ele. Num mundo assim, em que quase todos se tornaram cegos, quem tem um olho é rei. Daí porque muitos escritores não precisam de muitos esforços para se tornarem conhecidos do público. Se têm a sorte de escrever o que as pessoas desejam ler, é meio caminho andado para a fama.
De tudo isso resulta claro que a especialização caminha de mãos dadas com a mediocrização da cultura. O amálgama dessa união é a fome da burguesia por dinheiro. Em sua ânsia de Midas, preocupou-se em dirigir o espírito humano para as artes úteis, fazendo-o a perder, pouco a pouco, o gosto pelas coisas que enobrecem a alma. Resultado: de um lado, criou especialistas ignorantes nas coisas do espírito; de outro, rebaixou-os à condição de indivíduos que só fazem uso de linguagens cifradas, acessíveis praticamente aos seus pares de gueto.
Num mundo assim, que faz um economista numa platéia de médicos de almas? Que traz do seu gueto profissional que possa interessar a estes últimos? Pelas razões expostas até aqui, talvez, não muita coisa. Que fazer, então? Que tal considerá-lo como um paciente, que vem pedir conforto para apaziguar as dores do seu espírito, embrutecido pela mediocridade de uma vida sem sentido? Certamente, esta é a melhor opção. Afinal de contas, no divã do psicanalista, quem fala é o paciente. Este tem o privilégio da fala; aquele a do ouvidor atento, que sabe, com o seu silêncio irritante, provocar no seu paciente a necessidade de ele trazer à tona o que lhe aflige. Desta perspectiva, portanto, as barreiras da especialização poderão ser superadas, sem que nem um nem outro tenham que abandonar suas especializações. É assim que este conferencista-paciente pretende conduzir sua fala. Primeiramente, falando da admiração que tem pela mitologia grega e judaico-cristã, pela forma como ela expressa o sofrimento do homem. Em segundo lugar, agora, na condição de economista, como a economia trata do sofrimento e da felicidade, para concluir com uma rápida exposição do mundo como ele é e como nele ele se situa.
2. A ORIGEM MITOLÓGICA DO HOMEM: UM SER MARCADO PELA
TRAGÉDIA
2.1 - O SOFRIMENTO E A ESPERANÇA NO MITO DE PROMETEU E DE PANDORA[6]
Geralmente, a mitologia faz referência à condição original do homem como um ser imortal, habitante de um paraíso terreno, que cai em desgraça quando dele é expulso. É o caso do mito de Prometeu e Pandora. Descendente de Urano (Céu) e de Gaia (Terra), Prometeu pertencia à família dos Titãs, gigantes que habitaram a terra antes da criação do homem. Coube a ele e ao seu irmão, Epimeteu, criarem o homem. Com argila e água, moldaram bonecos semelhantes à imagem dos deuses. Para dar-lhes vida, Prometeu pediu à sua amiga Atena, deusa da sabedoria, que insuflasse vida naqueles corpos semi-animados. Com o seu sopro divino, os bonecos se fizeram homens, ergueram-se e se espalharam pelo mundo afora.
Assim, surgiram os primeiros seres humanos. Por muito tempo não souberam fazer uso do seu corpo, nem de suas habilidades naturais. Nasceram nus, vulneráveis, indefesos e sem armas. Não tinham conhecimento de como amolar as pedras, para utilizá-las como instrumento de trabalho; não sabiam pescar; tampouco fazer tijolos para construir abrigos. Viviam em cavernas profundas e escuras, sem saber se era dia ou noite.
Comovido com o sofrimento de suas criaturas, Prometeu desceu à terra para ensinar-lhes a arte de domesticar os animais, de fazer barcos para navegarem em busca de novas paragens e muitas outras coisas[7]. Ensinou-lhes tudo que era necessário para enfrentar as vicissitudes da vida. Em seguida, roubou uma centelha do fogo celeste e deu de presente aos homens. Estes puderam, então, usá-lo para trabalhar os metais e construir armas para se defenderem dos ataques das feras. Tornaram-se, então, criaturas mais inteligentes e conscientes.
Do alto do olimpo, Zeus observa a obra de Prometeu. Enciumado com o que via, resolveu castigá-lo, amarrando-o a um rochedo. Sem poder dormir nem descansar, o criador dos homens tinha seu fígado devorado diariamente por uma águia. Como era imortal, suas vísceras renasciam a cada dia, para que seu algoz pudesse continuar devorando-as dia após dia, até que aparecesse um homem puro e bom para morrer em seu lugar. Esse dia chegou. Passando por ali, Hércules se revolta com o que vê. Não pensa duas vezes. Com sua flecha mortal e certeira, acaba com o sofrimento de Prometeu.
Mas faltava ainda aparecer um homem bom e puro para morrer em seu lugar. Prometeu teve sorte. Quiron, um centauro, antes imortal, aceitou morrer por ele, pois tinha sido envenenado por Hidra. Com certeza, iria morrer. Por que não fazê-lo por uma boa causa? Fê-lo e Prometeu pôde se livrar da sua "cruz". Entretanto, a vaidade de Zeus não o deixaria completamente livre. Ele o obrigou a usar um anel feito de uma lasca da pedra em que estava preso, para que se lembrasse, por toda a vida, do seu castigo.
A vingança de Zeus, contra Prometeu, não pára por aí. Observando que entre as criaturas humanas faltava a mulher, chamou o deus das artes e ordenou-lhe que esculpisse uma mulher semelhante às deusas imortais. Em seguida, chamou todos os deuses do olimpo e os determinou que dessem a ela todos os dons: beleza, artimanha, mentira, persuasão, imprudência. Deu-lhe o nome de Pandora e a enviou de presente ao irmão de Prometeu: Epimeteu.
Pandora chega à terra trazendo com ela uma caixa lacrada. Não se sabe se propositadamente ou não, ao abrir a caixa, de dentro dela sai uma nuvem negra carregada de todas as maldições e pragas, que se espalharam por toda a terra, pelo ar e pelo mar. Pandora tenta fechá-la, mas já era tarde. O mal já se espalhara pelo mundo afora. A única coisa que restou no fundo da caixa foi a esperança, que lá permaneceu por toda a eternidade. Para que? Para dar ao homem forças para lutar contra as adversidades da vida? Ou, para fazê-lo aceitar, com resignação, o sofrimento? Uma coisa parece certa: o homem é um ser do sofrimento, não pode dele nunca se libertar.
2.2 – A MALDIÇÃO BÍBLICA[8]
Todo mundo conhece muito bem a história de Adão e de Eva. Ela é uma narração mítica que tenta explicar a origem do ser humano. Neste sentido, não está muito distante do mito de Prometeu e Pandora. Ambos tratam da criação do homem. Assim como Prometeu, Deus fez o homem de barro. Deu-lhe vida com o seu sopro divino. Achando por bem que não seria bom viver sozinho, de suas costelas fez sua companheira, Eva, mãe da humanidade. Em seguida, ordenou-lhes que crescessem e se multiplicassem.
Vivendo no paraíso, Adão e Eva podiam se alimentar de todos os frutos, exceto os da árvore da sabedoria. Ela guardava o segredo de que o homem é finito e incompleto. Quem dela provasse os seus frutos, cairia em desgraça, pois se descobriria que era imperfeito, defeituoso e, portanto, mortal.
Com essa proibição, Deus queria mostrar às suas criaturas que Ele era o senhor, o dono absoluto de tudo. Quem o contrariasse, conheceria a sua ira. Foi o que fez Eva. Não resistindo às tentações da serpente, provou do fruto proibido e, ardilosamente, convenceu Adão a fazer o mesmo. Resultado: perderam a inocência e com ela a imortalidade e todas as qualidades supra-humanas que Deus havia lhes dado.
Como castigo, Deus os expulsou do paraíso e os jogou no mundo. O pecado, por terem provado do fruto proibido, danificou a sua natureza, antes perfeita e ordenada. Perderam sua inteligência divina, tornando-os seres limitados e passivos de erro. Foram condenados, por toda a eternidade, a trabalhar para poderem viver. Seus corpos, invadidos pelas paixões, conheceram a angústia e o sofrimento, que se arrastam até dos dias de hoje.
O sofrimento, advindo com o pecado mortal de Adão e Eva, tem fim: vem com a promessa redentora de uma vida eterna ao lado de Deus. Esperança alimentada e renovada batismo. Por meio dele, Ele perdoa suas criaturas e as faz herdeiras do reino do céu. Mas, enquanto esse dia não chega, os homens terão que tirar da terra, com o suor do seu próprio rosto, o seu sustento, e a lutar contra todas as mazelas de uma vida, que só pode ser vivida com trabalho. Essa é a maldição bíblica, à qual todos estão presos e condenados pelo resto de suas vidas.
3. TRABALHO: REINO DO SOFRIMENTO E DA FELICIDADE, SEGUNDO
A ECONOMIA POLÍTICA
3.1 - INTRODUÇÃO: ACERTO DE IDÉIAS
Prometeu foi castigado, porque ensinou a suas criaturas a arte de fazer uso do fogo para construir abrigos, dominar as feras e aperfeiçoar o mundo, moldando-o segundo as suas necessidades. Seu castigo foi, portanto, ter ensinado aos homens a arte de trabalhar, de se fazerem livres pela obra de sua atividade consciente. Isso contrariou profundamente Zeus, que os queria como servos para adorá-lo e venerá-lo com festas e oferendas graciosas.
É diferente o que aconteceu com Adão e Eva. Foram condenados a trabalhar, porque não quiseram viver gratuitamente da ociosidade do paraíso, oferecida por seu Criador. Desobedeceram-no. Por isso foram castigados a viver do suor do seus rostos, por toda a sua existência.
Que reviravolta! Na mitologia grega, que narra o mito de Prometeu e Pandora, o trabalho aparecia como a porta que levaria os homens a construir um mundo humano cheio de riqueza e prazeres[9]. No mito cristão, o trabalho aparece como o cárcere no qual os homens devem pagar pelo pecado mortal de seus pais de criação: Adão e Eva. Seja como for, o trabalho está presente nesses dois mitos: num, como salvação; noutro, como eterna condenação.
Essa ambigüidade é reproduzida pela Economia Política. Para uma corrente desta ciência, o trabalho é um castigo do qual os homens jamais poderão dele se libertar. Mas, nem todos estão eternamente condenados a trabalhar. Poucos conseguem ser absolvidos desse castigo maldito. Infelizmente, a grande maioria não tem como dele se libertar. É obrigada a pagar um preço muito alto, que se inflaciona à medida que a civilização progride.
Para outra corrente, embora o homem não possa viver sem trabalhar, o trabalho não é apenas uma coisa negativa. Ele é animado por uma dialética interna, que produz desrealização e realização. Vale dizer: se o trabalho pode condenar o homem a uma vida de sofrimento e de dor, só ele, e por meio dele, poderá encontrar as portas da felicidade.
Para explorar essa dupla dimensão do trabalho, é chegada a hora de abandonar as lições da mitologia, para navegar por outras águas: as da Economia Política.
3.2 - A ECONOMIA POLÍTICA BURGUESA E O TRABALHO COMO CASTIGO
Adam Smith, considerado por muitos como o verdadeiro pai da Economia Política, é quem melhor expressa a idéia do trabalho como um castigo. Quem conhece sua teoria do valor, sabe que ele parte de um hipotético mundo ideal, onde a liberdade, a igualdade e a propriedade reinam de forma absoluta[10]. Liberdade! Pois os agentes da produção são livres para sair de uma atividade e entrar noutra sem nenhuma restrição. Igualdade! Pois todos são proprietários, que trocam equivalentes por equivalentes. Igualdade e liberdade, pois todos vivem num mundo [1] onde não existe propriedade privada da terra nem acúmulo de capital em mãos de particulares. Nestas circunstâncias, o valor do que produzem se determina pela quantidade de trabalho necessária à produção de cada mercadoria; [2] sendo assim, a remuneração que cada produtor recebe é proporcional ao valor de sua mercadoria, pois na inexistência de classes sociais, o valor do produto é igual ao valor do trabalho despendido em sua produção; [3] nestas condições, ninguém estaria disposto a abrir mão do produto do seu trabalho se, em troca, não recebesse outro de igual valor; [4] conseqüentemente, a troca se faz obedecendo ao princípio de equivalência; permutam-se valores de iguais magnitudes.
Só que no mundo real, no mundo de homens de carne e osso, as coisas não são assim[11]. Existem classes sociais, propriedade privada, exploração. Adam Smith sabia muito bem disso, pois afirma em alto e bom som que o trabalhador é obrigado a criar um valor suficiente para pagar o seu salário e ainda o lucro do capitalista[12].
Mas, se Adam Smith reconhece que o trabalhador não só paga o seu salário, como também o lucro do capitalista, como pode continuar afirmando que a propriedade é produto do trabalho pessoal, como o era no estado de natureza? Sua resposta não é nada convincente. Simplesmente afirma que o lucro, criado pelo trabalhador, é uma recompensa ao trabalho passado, acumulado pelo capitalista. Este pode exigir do trabalhador um valor maior do que o salário que lhe paga, porque, em tempos muito remotos, acumulou uma poupança que hoje emprega para oferecer trabalho a quem não fez o mesmo que ele. Neste sentido, o excedente criado pelo trabalhador é visto, pelo Autor da Riqueza das Nações, como um castigo contra aqueles que, no passado, não quiseram se submeter ao sacrifício de economizar para o futuro[13]. Por isso, para ele, a invasão da propriedade é uma injustiça contra aqueles que passaram a vida a trabalhar, sacrificando o consumo presente, em prol de um futuro melhor[14]. Quem viveu entregue aos prazeres e confortos imediatos da vida, não tem direito de invadir a propriedade de quem a adquiriu com tanto sacrifício, talvez com o trabalho penoso de tantas gerações[15]. Quem não teve coragem e disposição para sacrificar o presente em prol do amanhã, é obrigado a recompensar aqueles que não temeram a fadiga do trabalho e do desconforto de adiar o consumo.
Mas, o castigo do trabalhador não pára por aí. Na medida em que avança a civilização, suas energias físicas e mentais se atrofiam. Ele não só se esgota fisicamente, como arruína sua capacidade mental e intelectual. Nele, o homem se degrada quanto mais se especializa na arte de produzir coisas. Com efeito, que deve se esperar de um homem que passou a vida toda fazendo cabeças de alfinetes? Não muita coisa, é a resposta do Autor da Riqueza das Nações[16]. Quando um operário gasta quase toda sua existência dessa maneira, seu pensamento se torna tão pobre e embotado, que é incapaz de participar de alguma conversação racional, por mais simples que seja. Seu trabalho diário, sempre o mesmo, com suas operações repetitivas, cria em seu corpo certos hábitos fixos, que não mais consegue deles se desfazer. Ele não pertence mais a si mesmo, mas à profissão em que trabalha.
Assim, à medida em que avança a divisão do trabalho, o operário se torna mais fraco, mais bitolado; tão ignorante quanto possa ser uma criatura humana. A modernidade, que prometia por abaixo todas as barreiras do atraso e abrir espaços para o surgimento de um homem novo, cosmopolita, livre e senhor do mundo, não cumpriu com sua promessa. Pelo contrário, aprisionou-o num local fixo do qual não pode mais sair. No meio do movimento universal de constante transformação, tornou-o imóvel. A arte avançou, sem dúvida. Fez progresso, mas às custas do trabalhador, que retrocedeu.
Essa é a situação em que cai, inevitavelmente, a maioria da sociedade, diz Adam Smith. Sua desgraça é a de não poder contar com a sorte de Prometeu, para libertá-la das correntes desse sofrimento sem fim. Mas, para que lamentá-lo, diria Smith, se a infelicidade é o preço do progresso.
3.3 - MARX E A DILAÉTICA INTERNA DO TRABALHO: PROGRESSO E MISÉRIA
Para Adam Smith, o lucro tem um estatuto natural, pois entende que é produto de uma certa acumulação primitiva pessoal de capital[17]. Com efeito, para ele, aqueles que trabalharam e acumularam tornaram-se proprietários das terras e do capital; os que esbanjaram e dissiparam os frutos do seu trabalho, amargam o pecado de ter de trabalhar para os primeiros, em troca de um salário. Se é assim, os donos do capital e das terras têm todo o direito de exigir dos seus trabalhadores uma recompensa, na forma de lucro, pelo suor que derramaram para construir o seu patrimônio. Portanto, a apropriação privada do lucro não constitui nenhuma exploração. Pelo contrário, é um justo direito daqueles que tanto se sacrificaram no passado para, hoje, propiciar os meios de subsistência àqueles que não fizeram o mesmo que eles.
Daí a sua resignação diante dos efeitos desumanizadores da divisão do trabalho. Contra esse estado de coisas, argumentaria Smith, nada se pode fazer, pois entende que o mundo que é, é o mundo que deveria ser. Portanto, não há outra saída para os trabalhadores que não a de se conformarem com o seu destino. O mundo é assim mesmo, diria ele; sempre o foi e assim será.
Marx pensa muito diferente de Adam Smith. Para ele, o mundo que é, não é o que deve ser. Produto da História, ele poderá assumir novas configurações, isto é: novas instituições sociais, econômicas e políticas. O homem é um ser da História. Portanto, aberto para o que ainda não é, mesmo que o futuro projetado por ele não aconteça como foi pensado e planejado. Conseqüentemente, a sociedade produtora de mercadorias, como pensava o Autor da Riqueza das Nações, não estava inscrita na natureza do homem desde sempre para sempre. Ela é resultado de um longo processo de transformações econômicas, de guerras, de conquistas, de lutas religiosas, de reformas jurídicas...
Mas atenção! Não se pode esquecer que o homem é um ser histórico com necessidades naturais, pois é parte viva da natureza. Como qualquer outro animal, tem necessidade de comer, dormir, procriar etc. Entretanto, diferentemente dos outros animais, que se identificam imediatamente com sua atividade vital, ele dela se distingue, porque sua atividade vital é objeto da sua vontade e da sua consciência. Por isso, ela é, para ele, atividade livre[18]. Sendo assim, a satisfação de suas necessidades ocorre como ato da sua liberdade. É assim, portanto, que ele constrói o seu mundo e o conforma segundo às suas necessidades históricas.
Mas o homem só se afirma como tal mediante a sua ação sobre a natureza. O trabalho é a mediação pela qual ele transforma o meio natural em um “mundo artificial”, isto é: apropriado à realização de suas necessidades. Desse modo, ele não só transforma o mundo objetivo ao seu redor, como também a si próprio. Assim, constrói e conquista a sua humanização.
Mas, se, por um lado, o trabalho é mediação pela qual o homem se humaniza; por outro, é por meio dele que ele se transforma numa besta, num ser espiritualmente pobre e embrutecido. Isto assim acontece porque toda atividade produtiva só se realiza no interior e por meio de uma determinada forma de produção, histórica e socialmente definida. Com efeito, o homem não é uma andorinha. Para transformar a natureza, precisa do concurso de outros homens, com os quais estabelece certas relações sociais. Portanto, ao mesmo tempo em que o trabalho é uma atividade natural, que transcende a história, é também uma atividade particular, histórica.
A atividade produtiva é, portanto, animada por uma dialética interna, que pode ser traduzida num processo de realização-desrealização do homem. Nas sociedades produtoras de mercadorias, esse processo é levado as últimas conseqüências, numa direção extremamente assimétrica, na qual os efeitos negativos do trabalho superam, em muito, sua dimensão humanizadora e libertadora. E não poderia ser diferente, pois num mundo em que a finalidade da produção é o lucro, o capital só transforma a natureza em meios de consumo se tal transformação for lucrativa. A farinha de trigo não será transformada em pães, se o seu preço não for vantajoso para o seu produtor. O trabalhador não encontrará emprego, se o comprador de sua força de trabalho não conseguir obter lucro com o seu trabalho. Qualquer ameaça aos negócios é motivo para paralisar as máquinas, deixar a terra sem exploração, retirar as mercadorias de circulação, fechar empresas, entre outros expedientes do gênero.
Visto que a finalidade da produção é o lucro, os capitalistas são obrigados a se engolfar numa luta de vida ou morte para obter fatias crescentes do mercado. Para tanto, são obrigados a desenvolver novos métodos de produção, mediante a incorporação de novas tecnologias ao processo de trabalho. Em conseqüência, a demanda por novas máquinas, mais equipamentos e maiores instalações passa a crescer, em termos relativos, mais rapidamente do que a procura por trabalhadores. A lógica desse processo é simples: a economia de trabalho supera os gastos com a compra de novos equipamentos. Se não fosse assim, as empresas não se sentiriam motivadas a inovar os seus processos de produção.
A substituição do trabalhador pela máquina tem como resultado a produção de uma superpopulação relativa, que é condenada à ociosidade forçada. Parte dessa superpopulação passa a existir sob a forma de uma população flutuante, que se amplia e se contrai de acordo com os movimentos da acumulação. Como o processo de inovações tecnológicas não pode cessar, a tendência é o crescimento do volume dos desempregados. Vale dizer, quanto mais avança o processo de acumulação, mais cresce o número de desempregados.
Além dos desempregados urbanos e rurais, cujo volume flutua com o movimento da acumulação, uma parcela da superpopulação relativa vive praticamente na miséria. Neste segmento, estão os trabalhadores que não encontram ocupações estáveis; vivem de atividades extremamente irregulares. Seus irmãos de sorte mais próximos são a camada de trabalhadores que habita a esfera do pauperismo. Nesta condição, estão órfãos e crianças indigentes, que erram pelas esquinas das cidades oferecendo pequenos serviços em troca de algumas moedas. Dividindo o mesmo espaço, vivem os degradados, maltrapilhos, aleijados, doentes: todo tipo de gente que não encontra a "felicidade" de ser explorada pelo capital.
Essa é a lei geral da acumulação capitalista. De um sistema que, para produzir lucros, depende da exploração do trabalho. E o faz ao modo "vampiresco", roubando a vida do trabalhador, pois precisa desta para reviver, uma vez que é feito de trabalho morto, de trabalho acumulado. Sendo assim, só pode voltar à vida ao matar o vivo, "chupando trabalho vivo". Por isso, o capital não tem a menor consideração pela saúde e duração de vida do trabalhador, a não ser quando é coagido pela sociedade a fazê-lo. À degradação física e mental, morte prematura, tortura do sobretrabalho, o capital responde: "para que lamentar esse tormento, se ele aumenta nosso lucro"?
4. O MUNDO COMO ELE É
Esse é o preço que a ação civilizadora do capital cobra da humanidade. Um mundo de homens feitos objetos que, na pena de Graciliano Ramos, aparecem como bichos; coisas nascidas para serem usadas. É assim mesmo que o personagem central do romance São Bernardo, Paulo Honório, vê aqueles que passaram a vida toda trabalhando para ele. Bichos!
as criaturas que me serviram durante anos eram bichos. Havia bichos domésticos, como o Padilha, bichos do mato, como Casimiro Lopes, e muitos bichos para o serviço do campo, bois mansos. Os currais que se escoram uns aos outros, lá em baixo, tinham lâmpadas elétricas. E os bezerrinhos mais taludos soletravam a cartilha e aprendiam de cor os mandamentos da lei de Deus[19].
Num mundo em que o indivíduo só existe enquanto produtor de mercadoria, os homens viram bichos, os bichos viram gente. Foi assim, desde os tempos em que a indústria têxtil nascente, ávida por lã para a produção de tecidos, cerca os campos agrícolas e expulsa seus moradores para a cidade. É quando a Inglaterra, nos dizeres de Thomas More, vira um país onde "os carneiros comem homens".
De lá para cá, as coisas não mudaram muito. De novo é Graciliano Ramos quem dá seu testemunho pela boca de Paulo Honório. Maldizendo-se dos prejuízos sofridos, pragueja que
na pedreira perdi um. A alavanca soltou-se da pedra, bateu-lhe no peito, e foi a conta. Deixou viúva e órfãos miúdos. Sumiram-se: um dos meninos caiu no fogo, as lombrigas comeram o segundo, o último teve angina e a mulher enforcou-se[20].
Comovido com a desgraças de seus trabalhadores, gente que nunca morre direito, Paulo Honório proibiu a aguardente para diminuir a mortalidade e aumentar a produção. Que alma bondosa!
Assim era também a alma dos representantes do capital mercantil, que desembarcam na América Latina, lá pelos idos do século XVI. Sob o signo da cruz, cravado no cabo de suas espadas, abriram o caminho para que o capital pudesse realizar a sua missão civilizadora nesse continente de pagãos. Acontece que de boas intenções o caminho do inferno está cheio! Que o diga Eduardo Galeano, para quem
há dois lados na divisão do trabalho: um em que alguns países especializam-se em ganhar, e outro em que se especializaram em perder. Nossa comarca do mundo, que hoje chamamos de América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se abalançaram pelo mar e ficaram os dentes em sua garganta (...). Para os que concebem a história como uma disputa, o atraso e a miséria da América latina são resultados de seu fracasso. Perdemos, outros ganharam. Mas acontece que aqueles que ganharam, ganharam graças ao que nós perdemos[21].
Atravessando o Atlântico e rumando para os lados do Oriente, lá está o continente africano. Suas riquezas e maravilhas, que outrora atiçaram a cobiça do capital, transformaram-se numa floresta de braços esqueléticos suplicantes por algumas migalhas de pão. Outrora terra de guerreiros bravios, hoje, a África é um continente de farrapos humanos.
O mundo todo dividiu-se entre miseráveis e ricos. Segundo as estatísticas da Revistas Fortune, 350 pessoas no mundo detêm uma riqueza equivalente ao patrimônio de três bilhões de pessoas. E diz mais: a fortuna pessoal de BilL Gate daria para comprar 12 países da América Latina. O resultado não poderia ser outro: um bilhão de pessoas estão desempregados no mundo todo.
5. A FELICIDADE MORA NA COMUNIDADE
É possível ser feliz num mundo assim? Claro que não. Num mundo onde as pessoas se transformaram em coisas, onde a imensa maioria da classe trabalhadora não se afirma no trabalho, não desenvolve livremente suas energias físicas e mentais, mas se esgota e arruína seu espírito; num mundo em que o trabalhador só se sente em si fora do trabalho, enquanto nele se sente fora de si, pois só se percebe livremente ativo nas suas funções animais - comer, beber, procriar etc - enquanto nas funções humanas é reduzido a um animal; num mundo, assim, ninguém pode ser feliz.
Obviamente comer, beber, procriar etc. são funções genuinamente humanas. Entretanto, quando transformadas em finalidades últimas e exclusivas, já não são mais verdadeiramente humanas. Portanto, a felicidade não pode ser reduzida unicamente a ter uma vida cheia de riqueza e de conforto. Como já dizia Aristóteles, se a felicidade é identificada com o prazer, com a riqueza, a humanidade se converteria numa massa de seres viventes comparáveis aos animais[22]. Diria mais: uma vida dedicada tão somente a ganhar dinheiro seria vivida sob a compulsão, e aí o homem já não seria mais humano.
Mas o que é felicidade? Segundo Aristóteles, ser feliz é viver uma vida comunitária, na qual todos possam se sentir partes integrantes, participando ativamente nos assuntos da cidade[23].
Mas, por que só em comunhão o homem pode ser feliz? Não é preciso ir muito longe para encontrar a resposta. Com efeito, se ser feliz é viver em conformidade com a razão, e a razão ama a harmonia, então, ser feliz é fazer parte de um todo orgânico, em que seus elementos vivem todos em função de um mesmo fim. Daí porque, para Aristóteles, no mundo dos homens, a comunidade tem primazia sobre o indivíduo. Na ordem natural das coisas, diz ele, a cidade tem precedência sobre cada um de seus elementos constitutivos, pois o todo deve necessariamente anteceder as partes que o compõem[24]. Fora da comunidade, diria ele, o indivíduo poderia ser comparado a uma peça isolada do jogo de gamão; não teria nenhuma função[25]. Com efeito, de que serviria a mão separada do corpo? Fora do todo, as partes perdem sua unidade, perdem sua união e coesão. Portanto, a perfeição só existe no todo, no qual as partes estão articuladas em função de um mesmo fim. Se é assim, só na comunidade, nesta totalidade viva, os homens podem alcançar o bem supremo: a felicidade.
Marx, herdeiro da concepção grega de homem, não discordaria de Aristóteles. Ambos estão de acordo quanto ao fato de que o homem é um ser da comunidade. Entretanto, há diferenças entre eles. Se, para o filósofo grego, a política é a mediação pela qual os homens alcançam a felicidade; para Marx, esta mediação está no trabalho. É em sua atividade transformadora da natureza, e somente por meio dela, que o homem constrói uma vida verdadeiramente feliz. Ser da necessidade que é, o homem, em primeiro lugar, precisa dominar a natureza, transformá-la e adaptá-la para satisfazer suas carências. É neste sentido que o trabalho aparece como processo de autogênese do homem. Mundo criado pelos homens, eles somente poderão ser considerados verdadeiramente humanos, quando construírem uma forma de vida em que todos possam viver livremente associados; quando puderem desenvolver livremente suas faculdades físicas e intelectuais; quando o trabalho deixar de ser um meio de ganhar a vida e se transformar num fim em si mesmo. Esse é o mundo pressuposto por Marx, com o qual ele sonha e, especulativamente, antecipa na últimas páginas dos Manuscritos Econômico-filosóficos:
Suponhamos que o homem é homem e que a sua relação ao mundo é humana. Então, o amor só poderá permutar-se com o amor, a confiança com confiança, etc. Se alguém deseja saborear a arte, terá de tornar-se uma pessoa artisticamente educada; se alguém pretende influenciar os outros homens, deve tornar-se um homem que tenha um efeito verdadeiramente estimulante e encorajador sobre os outros homens. Cada uma das suas relações ao homem – e à natureza – tem de ser expressão definida, correspondendo ao objeto da vontade, da sua vida individual real. Se alguém amar, sem por sua vez despertar amor, isto é, se o seu amor enquanto amor não suscitar amor recíproco, se alguém através da manifestação vital enquanto homem que ama não se transforma em pessoa amada, é porque o seu amor é impotente e uma infelicidade[26].
Mas esse mundo está tão longe! Quem vai libertar os homens desse imenso manicômio, sem paredes, grades e cadeados? Quem vai libertá-los dessa sociedade de homens deformados, de corações amiudados, com enormes lacunas no cérebro, tal qual Paulo Honório, do romance São Bernardo, de Graciliano Ramos? De tanto se deixarem perder nas coisas, já não parecem mais humanos. Transformaram-se num grande aleijão humano, com enormes narizes, bocas enormes e dedos enormes. Quem vai, então, libertá-los? Será que o vigário de Sabóia, do romance Emílio, de Rousseau, não teria a resposta? Afinal de contas, ele se livrou de um mundo de dúvidas e incertezas, de dores e de sofrimento, arrancando do fundo da sua alma, lá escondida e desfigurada pelo tempo, a certeza de que tinha consciência; tábua de salvação da humanidade, que nunca abandona o homem, por mais embrutecido e embestado que tenha se tornado. Mas Rousseau não parece tão seguro. Pela boca do seu personagem, o vigário de Sabóia, deixa escapar seu ceticismo. Tem dúvida de que o homem possa ainda usar de sua consciência, pois, de tanto mandá-la embora, diz ele, “já não nos fala, já não nos responde e, depois de tão longos desprezos por ela, é tão difícil chamá-la de volta quanto custou bani-la”[27].
Que tal Kant? Será possível esperar de sua filosofia lições para mudar o mundo? Como Rousseau, ele via a sociedade de sua época como um mundo povoado pelo tédio no estilo de vida dos que não fazem quase nada, a não ser comer, beber, procriar e dormir. Mas tinha uma fé inquebrantável na razão. Acreditava que o mundo de falsos brilhos, em que todos aparentam ser o que não o são, trazia em suas entranhas a cura dos males do homem. A razão um dia viria à tona e reinaria de forma absoluta. Vã esperança! De tão falso, esse mundo não precisa mais da hipocrisia; esta jogou fora as vestes da simulação, e já não se veste mais com o véu da aparência; tornou-se cínica.
Que pena! o imperativo da consciência e o da razão, parece, foi definitivamente soterrado. Mas, para que lamentar! Num mundo estruturalmente imoral, não dá mesmo para acreditar no aperfeiçoamento moral do homem. Lições de Marx, que jogou sobre os ombros da classe trabalhadora o destino redentor da humanidade. Mas, onde estais, trabalhadores? O socialismo real, que alimentava a esperança de quem ainda não tinha chegado lá, desmoronou com a queda do muro de Berlin. Os partidos de esquerda perderam o seu colorido de classe e já não falam mais a linguagem do trabalho. Os sindicatos se transformaram em agências de emprego e renda. Quem vai, pois, salvar o homem desse imenso manicômio social?
[1] Marx, Karl & Engels, Friedrich. Manifesto Comunista. - São Paulo: Editorial Boitempo, 1998. p. 42: "Onde quer que tenha conquistado o poder, a burguesia destruiu as relações feudais, patriarcais e idílicas. Rasgou todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal aos seus 'superiores naturais', para deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do ´pagamento à vista ' Afogou os fervores sagrados da exaltação religiosa, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, conquistadas duramente, por uma única liberdade sem escrúpulos: a do comércio ".
[2] Segundo Habermas, a filosofia de Kant guarda um nexo interno com a modernidade. O conceito kantiano de razão mostra a unidade do pensamento filosófico mantém-se apenas no plano formal. Em suas próprias palavras, "no conceito kantiano de uma razão formal e em si diferenciada está delineada uma teoria da modernidade. Esta é caracterizada pela renúncia à racionalidade substancial da interpretação do mundo da tradição religiosa e metafísica e, por outro, pela confiança numa racionalidade procedural, à qual nossas concepções justificadas, seja no domínio do conhecimento objetivador, seja no discernimento moral prático ou do juízo estético, tomam sua pretensão de validade" [Habermas, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. - Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989., p. 20].
Habermas apresenta mais claramente essa teoria da modernidade em Kant, na seguinte passagem: "Com a análise dos fundamentos do conhecimento, a crítica da razão pura assume também a tarefa de criticar o abuso de uma faculdade cognitiva que, em nós, está talhada à medida dos fenômenos. Kant coloca no lugar do conceito substancial de razão da tradição metafísica o conceito de uma razão que se dividiu em seus elementos e cuja unidade de agora em diante só tem caráter formal. Com efeito, ele separa do conhecimento teórico as faculdades da razão prática e do poder de julgar e assenta cada uma delas em fundamentos próprios [Idem, ibidem., p. 18].
[3] Para uma análise do processo tendencial de mediocrização da cultura, ver Tocqueville de, Alexis. A democracia na América: sentimentos e opiniões. - São Paulo: Martins Fontes, 2000; Vol. II.
[4] Para uma análise do processo histórico de surgimento das ciências, ver Japiassú, Hilton. Introdução às Ciências Humanas: Análise de Epistemologia Histórica. - São Paulo: Editorial Letras & Letras, 1994.
[5] Bosi, Alfredo. Dialética da Colonização. – São Paulo: Companhia das Letras, 1992., p. 352: “Um engenheiro de produção assaz renomado entre os seus pares dizia-me com o desplante cândido dos néscios que a psicanálise é a última superstição do século XIX, opinião confortada por uma doutora em comportamento sexual de ratos engaiolados, a qual asseverava que Freud escreveu cantos para babás ansiosas. No outro canto do salão (era uma festa acadêmica), uma sissuda titular de Semiótica lançava do alto dos seus sememas um anátema contra as Ciências Exatas que, ao seu ver, não passariam de hábeis arranjos binários. Mais de um jornalista mal egresso da sua pós-graduação decretava o inglório passamento de Hegel e Marx atribuindo a caausa mortis de ambos a golpe de automação. Em geral, uns e outros abonavama-se com citações de um autor japonês tido como genial que já constatara o fim da História, o óbito das ideologias e a entrada na era pós-utópica”.
[6] A narração do mito de Prometeu e Pandora tomou como referência o texto de Schwab, Gustav. As Mais Belas Histórias da Antiguidade Clássica. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. Contou também com texto tirados de sites da Internet, dentre eles o de Sérgio Pereira Alves, Psicólogo Clínico Junguiano.
[7] Para uma análise da função da técnica no mito de Prometeu, ver Vernant, Jean-Pierre. Mito e Pensamento Entre os Gregos: estudo de psicologia histórica. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
[8] A narração do mito de Adão e Eva é uma composição da imaginação deste autor, alimentada por restos de memórias que o ensinaram que o mundo é uma criação de Deus e que todos os homens e mulheres são descendemos de Adão e Eva. Composição que se valeu de histórias "por assim ouvi dizer" que assim foi. Não conta, portanto, com nenhum embasamento teológico adquirido por quem passou a vida dedicado ao estudo da Bíblia.
[9] Dependendo da versão que se tome do mito de Prometeu, seja a de Hesíodo, a de Platão ou a de Ésquilo, uma coisa é certa: o trabalho está presente em todas estas três narrativas. Em Hesíodo, a atividade produtiva aparece como uma benção divina, de prosperidade e de fecundidade. Em Platão, mesmo que se considere que, para ele, o trabalho é uma atividade servil, na narrativa que faz do mito de Prometeu, a arte do trabalho e do aperfeiçoamento do homem está presente. Em Ésquilo, o trabalho recebe uma grande importância. Seja como for, e em que pesem as diferenças entre eles, acredita-se que o trabalho, mesmo que se considere como uma atividade servil, desempenha uma importante função na vida do homem. Daí a razão porque este autor atreve-se a diferenciar o trabalho na mitologia grega e no mito religioso de Adão e Eva. Acredita-se que o trabalho tem funções opostas num e noutro mito.
[10] Smith, Adam. A Riqueza das Nações: investigação sobre sua natureza e suas causas – São Paulo: Nova Cultural, 1985. Vol. I. p. 77: "No estágio antigo e primitivo que precede ao acúmulo de patrimônio ou capital e à apropriação da terra, a proporção entre as quantidades de trabalho necessárias para adquirir os diversos produtos parece ser a única circunstância capaz de fornecer alguma norma ou padrão para trocar esses objetos uns pelos outros (...).Nessa situação, todo o produto do trabalho pertence ao trabalhador ; e a quantidade de trabalho normalmente empregada em adquirir ou produzir uma mercadoria é a única circunstância capaz de regular ou determinar a quantidade de trabalho que ela normalmente deve comprar, comandar ou pela qual deve ser trocada".
[11] Para uma análise mais profunda de como Smith efetua a passagem do estado de natureza para o mundo real, ver meu livro Trabalho e Valor: contribuição para uma crítica da razão econômica. - São Paulo: Cortez, 2004.
[12] Smith, Adam. Op. cit. Vol.I. p. 77: “No momento em que o patrimônio ou o capital se acumulou nas mãos de pessoas particulares, algumas delas naturalmente empregarão esse capital para contratar pessoas laboriosas, fornecendo-lhes matérias-primas e subsistência a fim de auferir lucro com a venda do trabalho dessas pessoas ou com aquilo que esse trabalho acrescenta ao valor desses materiais. Ao trocar o produto acabado por dinheiro ou por trabalho, ou outros bens, além do que pode ser suficiente para pagar o preço dos materiais e os salários dos trabalhadores, deverá resultar algo para pagar os lucros do empresário pelo seu trabalho e pelo risco que ele assume ao empreender esse negócio”.
[13] Daí a sarcástica ironia de Marx, para quem a acumulação primitiva de capital desempenha um papel semelhante ao pecado original na Teologia. Em suas próprias palavras, “em tempos muitos remotos, havia, por um lado, uma elite laboriosa e sobretudo parcimoniosa, e, por outro, vagabundos dissipando tudo o que tinham e mais ainda [Marx, Karl. O Capital: crítica da economia política. – São Paulo: Nova Cultural, 1985. Livro I, Vol.I. p. 261].
[14]Smith, Adam. Op. cit. Vol. II. p. 164: “Os homens podem viver juntos em sociedade, com um grau aceitável de segurança, embora não haja nenhum magistrado civil que os proteja da injustiça [...]. Entretanto, a avareza e a ambição dos ricos e, por outro lado, a aversão ao trabalho e o amor à tranqüilidade atual e ao prazer, da parte dos pobres, são as paixões que levam a invadir a propriedade [...] adquirida com o trabalho de muitos anos, talvez de muitas gerações sucessivas”.
[15] Idem, Ibidem. Vol. II. p.164: “A fartura dos ricos excita a indignação dos pobres, que muitas vezes são movidos pela necessidade e induzidos pela inveja a invadir a posse daqueles [proprietários]. Somente sob a proteção do magistrado civil, o proprietário dessa propriedade valiosa [...] pode dormir à noite com segurança”.
[16] Idem, Ibidem. Vol. II, p. 213/214: "... a ocupação da maior parte daqueles que vivem do trabalho, isto é, a maioria da população, acaba restringindo-se a algumas operações extremamente simples, muitas vezes a uma ou duas [...]. O homem que gasta toda sua vida executando algumas operações simples, cujos efeitos também são, não tem nenhuma oportunidade para exercitar sua compreensão ou para exercer seu espírito inventivo no sentido de encontrar meios para eliminar dificuldades que nunca ocorrem. Ele perde naturalmente o hábito de fazer isso, tornando-se geralmente tão embotado e ignorante quanto possa ser uma criatura humana. O entorpecimento de sua mente o torna tão somente incapaz de saborear ou ter alguma participação em toda conversação racional, mas também de conceber algum sentimento generoso, nobre ou terno, e, conseqüentemente de formar algum julgamento justo até mesmo acerca de muitas obrigações da vida privada [...]. Assim, a habilidade que ele adquiriu em sua ocupação específica parece ter sido adquirida às custas de suas virtudes intelectuais, sociais e marciais".
[17] Teixeira, Francisco José Soares. Trabalho e Valor em Smith e Marx . - Fortaleza: Editara da Universidade Estadual do Ceará, 1992..
[18] Marx, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. – Lisboa: Editora 70, p. 165: “Sem dúvida, o animal também produz. Faz um ninho, uma habitação, como as abelhas, os castores, as formigas, etc. Mas só produz o que é estritamente necessário para si ou para as suas cria; produz apenas numa só direção, ao passo que o homem produz universalmente; produz unicamente sob a dominação da necessidade física imediata, enquanto o homem produz quando se encontra livre da necessidade física e só produz verdadeiramente na liberdade de tal necessidade; o animal apenas se produz a si, ao passo que o homem reproduz toda a natureza; o seu produto pertence imediatamente ao seu corpo físico, enquanto o homem é livre perante o seu produto”
[19] Ramos, Graciliano. São Bernardo. - Rio de Janeiro: Record, 2001., p. 185.
[20] Idem, Ibidem., p. 38.
[21] Galeano, Eduardo. As veias abertas da América Latina. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981., p. 13.
[22] Aristóteles não é um partidário desavisado do estoicismo. Para ele, “a felicidade também requer bens exteriores, pois é impossível, ou na melhor das hipóteses não é fácil, praticar belas ações sem os instrumentos próprios. Em muitas ações usamos amigos e riquezas e poder político como instrumentos, e há certas coisas cuja falta empana a felicidade - boa estirpe, bons filhos, beleza - pois o homem de má aparência, ou mal nascido, ou só no mundo e sem filhos, tem poucas possibilidades de ser feliz, e tê-la-á ainda menores se seus filhos e amigos forem irremediavelmente maus ou se, tendo tido bens filhos e amigos, estes tiverem morridos” [Aristóteles. Ética a Nicômacos. – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001; p.27, 1096 (b)].
[23] Idem, Ibidem. p. 24/25; 1098(a): “dizer que a felicidade é o bem supremo parece um truísmo, e necessitamos de uma explicação ainda mais clara quanto ao que ela é. Talvez possamos chegar a isso se determinarmos primeiro qual é a função do homem. Com efeito, da mesma forma que para o flautista, um escultor ou qualquer outro artista e, de um modo geral, para tudo o que tem uma função ou atividade, consideramos que o bem e a perfeição residem na função, um critério idêntico parece aplicável ao homem, se ele tem uma função. Teriam, então, o carpinteiro e o curtidor de couros certas funções e atividades, e o homem como tal, por ter nascido incapaz, não teria uma função que lhe fosse própria? Ou deveríamos presumir que, da mesma forma que o olho, o pé, e me geral cada parte do corpo têm uma função, o homem tem também uma função independente de todas essas? Qual seria ela então? Até as plantas participam da vida, mas estamos procurando algo peculiar ao homem. Excluamos, portanto, as atividades vitais de nutrição e crescimento. Em seguida a estas haveria a atividade vital da sensação, mas também desta parecem participar até o cavalo, o boi e todos os animais. Resta então a atividade vital do elemento racional do homem; uma parte deste é dotado de razão e de pensar. Como a expressão atividade vital do elemento racional tem igualmente duas acepções, deixemos claro que nos referimos ao exercício do elemento racional, pois parece que este é o sentido mais próprio da expressão. Então, se a função do homem é uma atividade da alma por via da razão e conforme a ela, e se dizemos que uma pessoa e uma pessoa boa têm uma função do mesmo gênero (...), se este é o caso (e afirmamos que a função própria do homem é um certo modo de vida, e este é constituído de uma atividade ou de ações da alma que pressupõem o uso da razão, e a função própria do homem bem é o bom e o nobilitante exercício dessa atividade ou prática destas ações, se qualquer ação é bem executada executado de acordo com a forma de excelência adequada) - se este é o caso, repetimos, o bem para o homem vem a ser o exercício ativo das faculdades da alma de conformidade com a excelência, e se há mais de uma excelência, de conformidade com a melhor e mais completa entre elas. Mas devemos acrescentar que tal exercício ativo deve estender-se por toda a vida, pois uma andorinha não faz verão (nem faz um dia quente); da mesma forma um dia só, ou um curto lapso de tempo, não faz um homem bem-aventurado e feliz”.
[24] Aristóteles. Política. - Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1977; p. 15: "Na ordem natural a cidade tem precedência sobre a família e sobre cada um nós individualmente, pois o todo deve necessariamente ter precedência sobre as partes; com efeito, quando todo corpo é destruído pé e mão já não existem, anão ser de maneira equívoca, como quando se diz que a mão esculpida em pedra é mão, pois a mão nessas circunstâncias para nada servirá e todas as coisas são definidas por sua função e atividade, de tal forma que quando elas já não forem capazes de perfazer sua função não se poderá dizer que são as mesmas coisas; elas terão apenas o mesmo nome".
[25] Idem, Ibidem. p. 15: "homem é por natureza um animal social, e um homem que por natureza, e não por mero acidente, não fizesse parte de cidade alguma, seria desprezível ou estaria acima da humanidade (...), e se poderia compará-lo a uma peça isolada do jogo de gamão.
[26] Marx, Karl. Manuscritos Econômico-filosóficos., Op. cit., p. 234/35.
[27] Rousseau, Jean-Jacques. Emílio, ou, da Educação. – São Paulo: Martins Fontes, 1999; p. 393.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário