21/04/2007

Projeto Fome Zero: Uma Pedra no Meio do Caminho

O Projeto Fome Zero do Partido dos Trabalhadores parte de um princípio ético que afirma ser a alimentação um direito de todos. Um direito primordial, pois, segundo assim entendem os autores do Projeto, precede "a qualquer outra situação, de natureza política, ou econômica, pois é parte componente do direito à vida" [Projeto Fome Zero; p.14].
Mas, em que se funda esta exigência que entende o direito à alimentação como direito humano básico, isto é, como um direito à vida? - Na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Que o digam os mentores do Projeto, para quem "Direitos humanos são todos aqueles que os seres humanos têm, única e exclusivamente, por terem nascidos e por serem parte da espécie humana. São direitos inalienáveis e independe da legislação nacional, estadual ou municipal especifica. Eles foram firmados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada em 1948, pelos povos do mundo, por intermédio de seus chefes de Estado e de Governo [p.14].
Não é demais lembrar que a Declaração Universal se fundamenta na doutrina dos direitos naturais, segundo a qual os homens nascem livres e iguais. Dessa condição natural é derivado o poder político. E o que é mais importante, para falar de acordo com Locke, expoente maior desta doutrina, é a partir do direito de liberdade e igualdade que deve ser compreendido e julgado o poder político. Noutro tom: é a ética se fazendo política, concretizando-se e se exteriorizando institucionalmente.
Assumindo esta idéia de que a política tem que ser ética, o Projeto anuncia a possibilidade de construção de um mundo sem fome e sem miséria. Parte da convicção de que o mundo como é, não é o mundo desejável; o mundo como deveria ser. Apoiado nesta exigência ética, o Projeto acredita ser possível construir um caminho que possibilite a travessia, que separa o mundo esperado do mundo efetivo.
É uma travessia difícil. Por isso mesmo, vai depender de como os autores do Projeto definem as causas determinantes da fome. Afinal de contas, é deste diagnóstico que nasce o desenho de uma ação estratégica, voltada para alcançar o que é desejado: a realização incondicional do direito de todos brasileiros à alimentação. Só assim será possível cumprir o que a Declaração Universal prescreve no seu artigo 3º, qual seja: "todos indivíduos têm direito à vida, à liberdade e à segurança da própria pessoa".
Se é assim, como então o Projeto define as causas da Fome? Sem meias palavras, acredita-se que a questão da fome, no Brasil, reside na "insuficiência de demanda, decorrente da concentração da renda existente no país, dos elevados níveis de desemprego e subemprego existentes e do baixo poder aquisitivo dos salários pagos à maioria da classe trabalhadora; na incompatibilidade dos preços atuais dos alimentos com o baixo poder aquisitivo da maioria da sua população; e a terceira e não menos importante, na exclusão daquela parcela da população mais pobre do mercado, muitos dos quais trabalhadores desempregados ou subempregados, velhos, crianças e outros grupos carentes, que necessitam de um atendimento emergencial" [Projeto; p.81].

Não é preciso ir muito longe para perceber que as causas da fome assim definidas podem ser resumidas a uma questão de desfuncionalidade da economia. Realmente, analisando mais devagar a definição acima, salta à vista que o diagnóstico da fome reside numa ineficiência de demanda efetiva, que tem inibido uma maior produção de alimentos. Ora, a Economia ensina que o reverso da deficiência de demanda é a existência de recursos ociosos, possivelmente decorrente de uma má administração da política econômica, que não foi capaz de reduzir o desemprego e aumentar a renda dos agentes econômicos.
Portanto, desemprego, subemprego, baixo poder aquisitivo dos salários, incompatibilidade dos preços são desfuncionalidades que o Projeto atribui a insuficiência de demanda efetiva. Embora admitam que tais desfuncionalidades são estruturais, os autores do Projeto acreditam que elas podem ser eliminadas. Basta uma política econômica realista, voltada para promover o barateamento dos alimentos, aumentar a oferta de produtos agrícolas, para então incluir todos aqueles que até então permaneceram à margem do mercado.
Uma aposta extremamente otimista. Talvez por isto é recomendável alimentar certas dúvidas quanto aos resultados esperados. Principalmente quando se tem presente que o Projeto, conscientemente ou não, restringir a luta contra a fome à lógica de mercado, que é, precisamente, a causa maior deste flagelo social. Aliás, trata-se de um flagelo que ultrapassa as fronteiras do Brasil para abranger mais de um bilhão de pessoas no planeta terra. As estatísticas da distribuição da riqueza mundial não deixam dúvidas. Realmente, a despeito de toda a riqueza produzida pelo mercado, as 356 pessoas mais ricas do mundo são donas de um patrimônio que equivale a renda anual de quase metade da população mundial.
Esta concentração da riqueza não é de hoje. Não é um acidente histórico. Muito pelo contrário, trata-se de um fenômeno inerente à lógica do mercado. Prova disto oferece a história da colonização do mundo pelo capital. A África, por exemplo, começou a passar fome desde os tempos em que o capital mercantil sentiu fome de carne humana, para alimentar a produção de mercadorias nos canaviais e engenhos do Brasil e da América Central. De lá para cá, o exército de famintos e farrapos da raça negra só tem crescido. E o que dizer do Brasil? Desde o momento em que Pedro Álvares Cabral pisou em seu solo, decidiu-se a quem caberia a riqueza produzida em suas terras: ao colonizador, dono não só de fazendas, gados e prédios, como também dos índios e dos negros.
Estes exemplos tornam duvidosa qualquer política de combate à fome, que permaneça circunscrita dentro das fronteiras da lógica do mercado. Por isso, se não se quebrar a lógica mercantil, a exigência ética, de onde parte o Projeto de combate à fome, não passará de um mandamento moral, de uma aspiração que não vai além de um mero desejo.
Tem uma pedra no meio do caminho. Faz-se necessário removê-la. Mas isto só será possível quando a sociedade decidir cruzar a porta que dá acesso ao socialismo, e começar a estruturar uma forma de produção não mais fundada na lógica da mercadoria como mediação necessária das relações entre as pessoas.

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