21/04/2007

ALCA: O Avesso da CEPAL

" ... nossa tarefa máxima deveria ser o combate a todas as formas de pensamento reacionário".
Antônio Cândido
Resumo:
Este artigo trata da questão sobre a Alca, destacando sua gênese, desenvolvimento e conseqüências sociais, econômicas e políticas sobre os países latino-americanos. A análise é conduzida a partir de uma sociologia comparativa entre esta instituição e a Cepal.

1. A ALCA E A GLOBALIZAÇÃO: DUAS FACES DE UMA MESMA MOEDA

Dezembro de 1994. Naquele ano, o presidente Clinton recebia em Miami os trinta e três representantes do "continente" latino-americano. Ausente, somente Cuba, por razões conhecidas: o bloqueio econômico imposto àquela ilha pelos Estados Unidos. Neste acontecimento, o anfitrião do encontro propôs a criação de um mercado comum latino-americano, que deveria congregar todos os países ali reunidos. Nascia assim a ALCA - Área de Livre Comércio das Américas.
A ALCA não poderia ter surgido em melhor ocasião. Ela é filha de um tempo carregado de significações histórica, social e política. Nasce numa época em que a ideologia liberal ainda celebrava a queda do muro de Berlim e o fim das economias socialistas. A ALCA acontece, portanto, numa conjuntura em que a derrocada do socialismo real iria agir como uma poderosa força para fortalecer o sentimento de que o mercado é uma instituição "natural", que não só não pode ser eliminado, como também é incompatível com um controle crescente por parte do Estado.
Além de todas essas transformações, é importante destacar que a ALCA emerge num tempo em que o poder de mobilidade espacial do capital praticamente eliminou quase todas as barreiras nacionais. Esse poder é hoje tão espetacular que há quem se apresse em decretar o fim da geografia, pelo menos do ponto de vista do capital.
Mas isto ainda não é tudo. A ALCA é contemporânea de uma época em que o capitalismo atinge os limites de sua expansão histórica[i]. Prova disto é o fato de que, hoje, o "crescimento econômico" se faz muito mais por meio da centralização dos capitais existentes do que pela criação ou expansão de novas unidades de capitais. De acordo Chesnais, mais de 60% dos investimentos se dão sob a forma de fusão de capitais. Além disto, o crescimento da produção de descartáveis revela que a valorização do capital não se dá mais através da criação de novos mercados. Ao invés de ampliar o número de consumidores, o capital reduz o período de vida útil das mercadorias, obrigando os consumidores a repô-las em prazos cada vez menores. A crescente financeirização da economia passa a dispensar cada vez mais a produção de valores de uso como suporte para valorização do valor.
Nesse contexto, a correlação de forças entre capital e trabalho torna-se extremamente assimétrica, de tal sorte que não só é difícil manter as conquistas históricas da classe trabalhadora, como também avançar com elas, no sentido de criar novos empregos, relações estáveis de trabalho... Conseqüentemente, elevar o poder de compra dos salários. Que o diga Celso Furtado:

hoje, mesmo na Europa, não se vê horizonte para uma relativa harmonia baseada no pleno emprego. Para manter o nível de agressividade das economias capitalistas tornou-se necessário abandonar as políticas de emprego. O aumento de produtividade se desassociou de efeitos sociais benéficos. Esta é a maior mutação que vejo nas economias capitalistas contemporâneas[ii].

Nesta conjuntura, os donos do capital passam a rejeitar abertamente qualquer compromisso de classe, que implique alguma influência política sobre os investimentos privados e a distribuição de renda. É o que faz notar Przeworsky, ao reconhecer que, pela primeira vez em muitas décadas, a direita possui um projeto histórico próprio: libertar a acumulação de todas as cadeias impostas pela democracia[iii].

Não sem razão, Przeworsky afirma sem nenhum receio que o mundo passa por uma verdadeira revolução burguesa; uma revolução que pretende impor unilateralmente a vontade do capital sobre todas as sociedades do mundo. Mas, até que ponto isto seria possível? É uma pergunta que Przerworsky faz a si próprio, para responder que a experiência chilena demonstra que sim, quando acompanhada de uma brutal repressão, da destruição das instituições democráticas e da liquidação de todas as formas de atividade política. Ao menos no Chile - concorda a maioria dos observadores - tal reestruturação da sociedade não teria sido possível sob condições democráticas, sem a ditadura militar. Mas será ela possível sem a destruição da democracia formal, sem uma chilenização das democracias capitalistas[iv]?

Independentemente de a ALCA vir a se concretizar plenamente, uma coisa já é certa: dentre as resoluções aprovadas pela Organização Mundial do Comércio [OMC] chama a atenção a que dispõe sobre as disputas comerciais entre os parceiros do mercado internacional. De acordo com essa resolução, um país que atue em favor de seus interesses empresariais pode contestar as leis, as políticas e os programas de outro país e derrubar suas leis internas. Afinal de contas, o capital se define como um valor, cujo objetivo é a auto-valorização. Enquanto tal, não lhe importa a localização geográfica; esta deve ser contingente. O que conta, isto sim, é a sua mobilidade, seu poder de se deslocar de uma atividade para outra, para explorar as melhores vantagens de investimento. Por isso, os entraves públicos institucionais devem ser destruídos, pois só assim, como entende o arquiteto da teoria clássica do mercado internacional, David Ricardo, cada país poderá aplicar seu capital e seu trabalho à atividade que lhe seja mais benéfica. Essa busca de vantagem individual está admiravelmente associada ao bem universal do conjunto dos países. Estimulando a dedicação ao trabalho, recompensando a engenhosidade e propiciando o uso mais eficaz das potencialidades proporcionadas pela natureza, distribui-se o trabalho de modo mais eficiente e mais econômico, enquanto, pelo aumento geral do volume de produtos difunde-se o benefício de modo geral e unem-se a sociedade universal de todas as nações do mundo civilizado por laços comuns de interesse e de intercâmbio[v].

Para realizar essa comunhão universal de interesses de que fala David Ricardo, cada país deve se especializar na produção daqueles bens que produz com menores custos. Só assim todos poderão sair ganhando com o comércio internacional. É a teoria das vantagens comparativas. É ela que sustenta a formulação da proposta de criação da ALCA. Realmente, seus defensores advogam o livre jogo das forças de mercados, para aumentar e otimizar os ganhos do intercâmbio de bens e serviços no mercado internacional. Mais do que isto: os patrocinadores da ALCA querem convencer o mundo de que a liberdade de mercado, com cada país produzindo de acordo com sua vocação natural, é a única saída para superar o atraso e, assim, participar dos benefícios do progresso técnico. A abertura dos mercados nacionais é pré-requisito necessário para sua integração em uma única e mesma malha de comércio.
A derrubada das fronteiras nacionais é o dever de casa que todos precisam fazer. Aqueles que não o fizerem correm o risco de ser ignorados pelo crescimento econômico que a "globalização" e, somente ela, pode propiciar. A ALCA e a globalização caminham de mãos dadas: elas se implicam mutuamente, de tal sorte que não se pode falar de uma sem se remeter à outra.

2. A cepal e sua crítica à teoria das vantagens comparativas

Quem disse que a globalização dos mercados latino-americanos, proposta pela ALCA, é condição necessária para que o Brasil possa romper com o atraso econômico e, assim, vencer a miséria e a pobreza de parcelas expressivas da população?
Essa questão não é nova. Ela estava no centro das preocupações enfrentadas pela Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), que vem a público no ano de 1949. Como a ALCA, a CEPAL nasceu para pensar as relações entre o centro e a periferia capitalistas para, partindo desta investigação, recomendar políticas econômicas voltadas para superar a miséria e o atraso em que viviam as economias periféricas.
Mas, há uma grande divergência na leitura que estas instituições fazem da realidade latino-americana. Os defensores da ALCA, fechando os olhos às diferenças que separam as economias ricas das economias pobres, advogam a abertura indiscriminada das fronteiras econômicas dos paises latino-americanos. Acreditam, pois, que ficar de fora do mercado mundial equivale a renunciar ao crescimento e ao desenvolvimento econômicos.
Os cepalinos também apostaram nos benefícios que o mercado internacional poderia trazer para os países latino-americanos. Entretanto, diferentemente dos teóricos da ALCA, os cepalinos acreditavam que os dividendos do progresso trazidos pelo mercado externo eram basicamente apropriados pelas economias ricas. Se não fossem repensadas as relações entre o centro e a periferia, as economias pobres não só continuariam a perder com o comércio mundial, como jamais poderiam superar a sua condição de atraso e subdesenvolvimento.
Eram duas as razões alegadas pelos cepalinos, para explicar a apropriação desigual dos ganhos do mercado internacional entre o centro e a periferia. As economias periféricas eram basicamente economias agroexportadoras, assentadas em estruturas agrárias fortemente monopolizadas por grandes latifundiários, que impediam o crescimento da produtividade. Ora, a troca entre uma economia primário-exportadora, de baixa produtividade, e uma economia industrializada, com elevada produtividade, será sempre uma relação favorável às economias industrializadas. Daí porque os frutos do progresso se repartiriam de maneira desigual entre o centro e a periferia capitalistas.
Além disso, os cepalinos tinham presente que a demanda de produtos primários pelas economias industrializadas tenderia a cair com o desenvolvimento histórico do capitalismo. Isto assim acontece porque a demanda de bens primários tende a diminuir à medida que a renda da população cresce. De acordo com o jargão dos economistas, os produtos primários têm baixa elasticidade-renda. Vale dizer: a parcela da renda destinada ao consumo ou procura de bens primários, proporcionalmente, cresce menos do que a parcela alocada na compra de bens manufaturados e serviços. Conseqüentemente, era de se esperar que uma porção cada vez menor dos acréscimos de renda dos consumidores do centro seria destinada à compra de alimentos e outros produtos primários.
Daí as objeções da CEPAL contra a abertura indiscriminada das economias latino-americanas que, se deixadas entregues ao jogo das livres forças de mercado, nunca superariam sua condição de subdesenvolvimento, permanecendo essencialmente agrárias. Mais do que isto, sua relação com o mercado externo permaneceria extremamente desigual, porque fundada numa troca de mercadorias com níveis diferentes de produtividade. De acordo com a teoria da troca desigual, de Arghiri Emmanuel, os países da periferia davam mais trabalho em troca de menos trabalho. Ou seja: o intercâmbio entre centro e periferia não obedece ao princípio da troca de equivalentes. Não sem razão, os teóricos da CEPAL acreditavam que a dinâmica da economia mundial tenderia a aprofundar o desenvolvimento desigual entre o centro e a periferia. Os diferenciais de produtividade entre essas duas economias trabalhavam em favor dos países centrais, que poderiam tirar vantagens dos incrementos de sua produtividade e, assim, apropriarem-se desigualmente dos ganhos do comércio externo.
Para superar esse estado de coisas, a CEPAL recomendava uma política deliberada de desenvolvimento industrial, ao mesmo tempo em que defendia uma reforma agrária, visando uma melhoria na alocação dos recursos produtivos, para assim impedir a evasão dos ganhos de produtividade. Para tanto, como apropriadamente faz notar Guido Mantega, a CEPAL exigia a decidida participação do Estado na economia, enquanto principal promotor do desenvolvimento e responsável pelo planejamento das modificações que se faziam necessárias. Assim, o Estado é tido como o centro racionalizador da economia, com a incumbência de intervir até mesmo como agente econômico direto, promovendo a necessária infra-estrutura para a expansão industrial e a canalização dos recursos nacionais para as novas atividades prioritárias. E aqui a CEPAL estava propondo medidas intervencionistas que faziam arrepiar os adeptos do liberalismo econômico do Fundo Monetário Internacional, preocupados com possíveis restrições ao comercio internacional, altamente lucrativos para os países centrais, e ao livre trânsito financeiro. Na verdade, a maior intervenção estatal e o planejamento significavam o fortalecimento das economias locais e um maior poder de barganha em face aos banqueiros internacionais, que lucravam com a fraqueza e o subdesenvolvimento periférico[vi].

É bem diferente o que hoje pensam os defensores da ALCA. Para estes, o que está em jogo é a liberdade de mercado, portanto, a eliminação do poder de regulação do Estado. E não poderia ser diferente, pois num mundo globalizado, sem fronteiras, diriam eles, não há mais lugar para reservas de mercados; para proteção de empresas domésticas. Informados pela doutrina do livre mercado, aqueles teóricos argumentam que a proteção de mercados nacionais só traz desvantagens para a sociedade, que tem que arcar com os custos da ineficiência e desperdícios de recursos. Se é assim, a dedução lógica que se segue desta tese só pode ser a seguinte: a proteção das economias nacionais traz mais prejuízos do que benefícios para a sociedade. Viva a liberdade de mercado!

3. A alca e a cepal: dois discursos conflitantes

Por que o discurso da ALCA é tão radicalmente diferente daquele defendido pelos cepalinos? Não seria talvez pelo fato de que os conceitos e as formas da economia cepalina foram superadas pelo tempo? Se isto é verdade, então, as preocupações da CEPAL já não satisfazem as interrogações do presente? Novos tempos, novas exigências! Será isto mesmo? Será que o mundo mudou tanto assim, a ponto de exigir o fim da economia política da CEPAL?
De alguma forma, a seção precedente antecipou a resposta às questões acima formuladas. Cabe aqui apenas desdobrar o que está implícito no discurso anterior.
Como ponto de partida da argumentação, é obvio que a economia brasileira, hoje, é bem diferente do que ela era há cinqüenta anos atrás, quando foi criada a CEPAL. Talvez seja esta razão por que aqueles dois discursos são tão diferentes. Entretanto, as mudanças pelas quais passou a economia brasileira foram muito mais quantitativas do que mesmo qualitativas. Como há cinqüenta anos atrás, o Brasil continua sendo ainda basicamente um exportador de produtos primários, a despeito da diversificação de sua pauta de exportação. A reforma agrária, mais do que nunca, permanece apenas como uma exigência moral, na cabeça da elite brasileira; não saiu do papel. Os desequilíbrios setoriais e regionais entre as economias latino-americanas e a dos Estados Unidos se agravaram. Para se ter uma idéia dos diferenciais de produtividade que separam essas duas economias, a economia norte-americana é hoje 23 vezes mais produtiva do que a média das economias latino-americanas.
Essas diferenças são mais gritantes quando se compara os Produtos Interno Bruto. Os Estados Unidos respondem por 80% do PIB do território abrangido pela ALCA. E o que é mais grave: a participação do Brasil no comércio mundial caiu de 1,3%, para 0,84%. Ora, eram justamente essas desigualdades de que falava a CEPAL. Os problemas infraestruturais permanecem de pé. A dependência externa não diminui, pelo contrário, aumentou e assumiu novas determinações.
Se é assim, então, como se explica que o discurso da CEPAL seja tão diferente daquele defendido pelos que advogam a criação da ALCA?
A razão de tal diferença só pode ser uma: são dois discursos que respondem a diferentes interesses. Realmente, o discurso dos cepalinos emerge com a pretensão não só de explicar a realidade de sua época, mas, acima de tudo, julgá-la e, assim, antecipar teoricamente um horizonte possível para uma práxis transformadora do mundo de então. Esse pensamento é, portanto, normativo, pois nasce como razão crítica de sua época.
É bem diferente o que se passa com o discurso dos teóricos da ALCA. Estes não pretendem mais transformar a sociedade. Seu interesse é ensinar as pessoas a se adaptarem ao existente e aceitar seus valores e representações como evidências inquestionáveis de um mundo que não tem mais futuro. Trata-se, portanto, de um pensamento pragmático; de um pensamento que não mais pergunta pelo que pode ser diferente do que é; de um pensamento meramente propositivo.
Para os defensores da ALCA, portanto, o que está em jogo não é mais a construção de uma nova economia, como assim pensava a CEPAL. Por isso, são contra as políticas que defendem uma concepção de Estado, enquanto instituição universal e enquanto mediação necessária para construir um mundo novo, diferente do existente. No lugar do fortalecimento do poder disciplinador e regulador do Estado, pregam a fragmentação e a privatização das funções públicas, ao mesmo tempo em que também louvam a erosão da ordem constitucional universal e geral. Contra a concepção de um Estado autônomo soberano, aceitam a sua submissão à irracionalidade dos mercados financeiros, que obriga os estados-nações a leiloar o patrimônio público em troca de alguns investimentos.
Conclusão: para os defensores da ALCA o que importa não é mais a construção de um mundo novo diferente do existente. Acreditam que o futuro fez-se presente; portanto, não há mais espaço para a história. Dessa forma, o que está em jogo hoje é a aceitação do existente, do que é em contraposição do que deveria ser. Neste sentido, o pensamento contemporâneo é um pensamento pragmático, voltado para o presente imediato. Trata-se de uma forma de pensamento que recusa a compreensão da realidade, para se aferrar às certezas imediatas produzidas pela práxis de todos os dias dos boletins estatísticos do movimento da bolsa e outros papéis. É bem diferente o que pensavam os teóricos da CEPAL. Para estes o que estava em jogo era a elaboração de uma teoria que desse conta das características singulares das economias latino-americanas. O que estava em jogo era, portanto, produzir uma teoria que explicasse as razões do atraso e do subdesenvolvimento da periferia capitalista. Seu grande mérito foi, por conseguinte, mostrar que os efeitos das transações internacionais eram ampliar o fosso que separava as economias centrais das economias periféricas. Assim, a tese da deterioração do intercâmbio tornou-se, como bem faz notar Mantega, a pièce resistence da teoria cepalina, confrontando-a diretamente com a Teoria das Vantagens Comparativas, sobre a qual, hoje, se apóiam os teóricos da ALCA, para justificar sua defesa da liberdade de mercado.

4. Alca, ciência, ideologia e luta de classes

Para os teóricos da ALCA, o pensamento cepalino pertence ao passado, a um tempo em que predominava a produção de massa: produtos e serviços muito semelhantes. Num mundo assim, dizem os novos filisteus, praticamente não havia concorrência. Era um mundo em que as empresas não tinham porque se preocupar em ganhar clientes. Nem teriam motivos para perder tempo em atrair novos consumidores, se para estes era indiferente comprar da empresa A ou da empresa B. Afinal de contas, ambas produzem o mesmo produto, com as mesma características, com as mesmas condições de pagamento etc.
Esse mundo ficou para trás; coisa do passado. As novas tecnologias, cada vez mais avançadas, e a derrubada das fronteiras entre os mercados nacionais sacudiram a ordem cultural, social e econômica, na qual viviam os teóricos da CEPAL. O que passa a valer, doravante, não é mais o que permanece, mas, sim, o que muda constantemente, o que aparece e desaparece sem deixar vestígio do que fora. Nada pode durar muito. Num mundo assim, berram os defensores da ALCA, ninguém pode saber o que virá amanhã. Conseqüentemente, a palavra de ordem que todos devem obedecer é uma só: competir para não ser engolido pelos outros.
Mas o que os teóricos da ALCA não dizem é o que está por trás de sua defesa intransigente da abertura dos mercados nacionais. Sua insistência em defender a abertura indiscriminada das economias latino-americanas é, na verdade, uma cortina de fumaça, para esconder o caráter de classe de suas idéias. Um projeto de classe articulado pelas principais potências do mundo.
Isto é muito claro quando se tem presente que a ALCA é produto da globalização. Em A Mundialização do Capital, Chesnais demonstra o caráter de classe da globalização, quando esclarece que se trata de um fenômeno que tem como conseqüência a perda, para a esmagadora maioria dos países capitalistas, de boa parte de sua capacidade de conduzir um desenvolvimento parcialmente autocentrado e independente; o desaparecimento de certa especificidade dos mercados nacionais e a destruição, para muitos Estados, da possibilidade de levar adiante políticas próprias, não são conseqüência mecânica da globalização, intervindo como processo externo , sempre mais coercitivo, impondo a cada país, a seus partidos e a seus governos uma determinada linha de conduta. Sem a intervenção política ativa dos governos Thatcher e Regan, e atambém do conjunto dos governos que aceitaram não resistir a eles, e sem a implementação de políticas de desregulamentação, de privatização e de liberalização do comércio, o capital financeiro internacional e os grandes grupos multinacionais não teriam podido destruir tão depressa e tão radicalmente os entraves e freios à liberdade deles de se expandirem à vontade e de explorarem os recursos econômicos, humanos e naturais, onde lhes for conveniente[vii].
Um exemplo desse projeto de classe é o que se convencionou chamar de projeto Chile. Nascido nos anos setenta, este projeto deixa claro como se tecem e são arquitetados os interesses de classe. Desenvolvido na universidade de Chicago, esse projeto formou toda uma geração de economistas chilenos que viriam a ocupar os mais altos postos econômicos na ditadura do Gal. Pinhochet [...]. O projeto Chile foi concebido e concretizado por três atores principais: o governo dos Estados Unidos, através dos seus programas de ajuda externa; a Universidade de Chicago, através do Departamento de Economia, especialmente os professores mais representativos do que se poderia chamar a atração de Chicago; e a Universidade Católica do Chile, junto com um grupo de empresários conservadores, defensores das idéias do livre mercado e empenhados em vê-las adotadas no país[viii].
É esse alinhamento doutrinário às teorias liberais que defendem os teóricos entusiastas da ALCA. Seu projeto pretende sepultar para sempre as teorias cepalinas que, no passado, fomentaram a criação de uma produção original de grande relevância teórica e política para a América Latina. A ALCA será o fim do que um dia veio a ser a economia política da CEPAL e a sociologia crítica que ela tornou possível. É preciso varrer da memória da história, aqueles tempos em que se promovia intensamente a discussão do desenvolvimento no âmbito da sociedade, se estimulava a ciência social local a acolher e a fazer progredir aquela especialidade sociológica e a fazer com que ela ecoasse social e politicamente com uma espécie de aval cientifico [....]. A produção sociológica latino-americana, por exemplo, se dedicou, é verdade, à questão do desenvolvimento, mas não tardou a começar a produzir uma sociologia crítica a respeito, primeiro timidamente como sociologia do subdesenvolvimento, depois enquanto sociologia da heteronomia ou dependência e mais adiante com a formulação explícita e teoricamente fundamentada do desenvolvimento enquanto ideologia[ix] .
A ALCA não só pretende um alinhamento teórico-doutrinário. Mais do que isto, os defensores da nova doutrina do livre comércio pretendem decretar o fim da soberania nacional, o fim dos estados-nação. De fato, uma análise rápida dos grupos de negociação e do conteúdo de suas agendas revela o que Przerworki já anunciava na década de 80: libertar a acumulação de todas as cadeias impostas pela democracia.
A formação desses grupos é, na verdade, a liquidação de todas as formas de atividade política. É a destruição de todo e qualquer mecanismo de controle político do processo de acumulação. Apoiando-se nas pesquisas realizadas por Maude Barlow, Altamiro Borges assim descreve cada um desses grupos:

1- Grupo de Negociações em Serviços. Sua meta é "estabelecer matérias para liberalizar progressivamente o comércio de serviços, visando o avanço de uma área de livre comércio no hemisfério". O grupo pretende compatibilizar no continente as normas do Acordo Geral sobre Comércio de Serviços (GATS). Segundo Maude, "o GATS está incumbido de restringir ações dos governos quanto a serviços, por meio de um conjunto de limitações legalmente obrigatórias, reforçadas por sanções comerciais com execução obrigatória pela OMC. Seu objetivo fundamental é frear todos os níveis de governo na distribuição de serviços e facilitar o acesso das empresas transnacionais aos contratos do governo em diversos setores". Para ela, "o verdadeiro objetivo desta carga de serviço/investimentos é reduzir ou destruir a capacidade dos governos do hemisfério de fornecerem serviços com financiamento público (considerados 'monopólios' no mundo do comércio internacional)".

2- Grupo de Negociação em Investimentos. Seu objetivo é criar uma estrutura legal "visando incentivar o investimento por meio da criação de um ambiente estável e previsível que proteja o investidor, seu investimento e movimentos afins, sem criar obstáculos aos investimentos provenientes do exterior". Seu ponto de partida é o Capítulo 11 do Nafta, que "concede à empresa o direito de mover ação para compensação de lucros perdidos atuais e futuros devidos às ações do governo, não importa quão legais possam ser estas ações ou qual o objetivo com que foram iniciadas".

3- Grupo de Negociação de Contratos Públicos de Governo. Seu objetivo é explícito: "Aumentar o acesso aos mercados dos contratos públicos nos países da ALCA". Este grupo já impôs "a não discriminação dos contratos públicos" e a revisão "na resolução de queixas referentes a contratos públicos". Segundo Maude, seu "objetivo é impedir que os governos fomentem o desenvolvimento econômico doméstico quando compram mercadorias", o que resultaria em enormes prejuízos às empresas nacionais fornecedoras de mercadorias. Ele inclusive já solicitou um inventário dos sistemas pertinentes de classificação internacional e uma compilação das estatísticas de contratos públicos de cada governo.

4- Grupo de Negociação sobre Acesso aos Mercados. O seu objetivo é apresentar uma metodologia para eliminar todos os obstáculos tarifários e não-tarifários ao "livre comércio" e fixar o ritmo da redução destas barreiras. Pelas negociações em cursos, esta liberalização atingiria mercadorias, serviços e capital. As leis de proteção à economia nacional passariam a ser analisadas por este grupo. Citando o Acordo sobre Obstáculos Técnicos a Comércio (OTC), aprovado na OMC, Maude afirma que tal medida exigirá que "uma nação deve estar preparada para provar, quando desafiada, que suas normas ambientais e de segurança são 'necessária' e o modo 'menos restritivo para o comércio' de alcançar metas desejadas de conservação, segurança dos alimentos ou nível de saúde".

5- Grupo de Negociação para a Agricultura. A sua missão á eliminar subsídios agrícolas que afetem o comércio no hemisfério, conforme o Acordo Agrícola (AA) da OMC. Esta norma estabelece regras sobre o comércio de alimentos e limita as políticas nacionais, restringindo o apoio aos agricultores, a manutenção de estoques de emergência de produtos alimentícios e as medidas de segurança alimentar que garantam a sobrevivência das populações carentes.

6- Grupo de Negociação sobre Direitos de Propriedade Intelectual. Visa submeter os países do continente ao Acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (DPIRC), que vigora desde janeiro de 2000. Esse acordo estabelece normas globais, de execução obrigatória, sobre patentes, direitos autorais e marcas registradas. Ele ampliou o conceito inicial de proteção às invenções originais e atualmente permite patentear sementes, plantas e animais. Para Maute, ele "privilegia os direitos privados das empresas em relação aos direitos das comunidades locais de sua herança genética e de medicamentos tradicionais". Ultimamente, o DPIRC vem sendo duramente questionado por impedir que vários governos forneçam medicamentos genéricos mais baratos e coquetéis aos aidéticos.

7- Grupo de Negociação sobre Subsídio, Antidumping e Direitos de Compensação. Objetiva ampliar "as leis de recurso, visando não criar obstáculos injustificados ao comércio do hemisfério". O acordo da OMC sobre este tema já estabelece limites aos governos no que se refere aos subsídios à agricultura e à industria. O objetivo do grupo é o de padronizar e ampliar as medidas no âmbito da ALCA.

8- Grupo de Negociação sobre a Política de Competição. Sua missão é "garantir que os benefícios do processo de liberalização da ALCA não sejam prejudicados por práticas comercias anticompetitivas". Este grupo está empenhado em "desenvolver mecanismos que facilitem e fomentem a política de competição e garantam a execução obrigatória de regulamentos sobre competição livre entre e dentro dos países do hemisfério".

9- Grupo de Negociação sobre Resolução de Disputas. O seu objetivo é apresentar mecanismos de solução de conflitos entre os países da ALCA, criando maneiras de "facilitar e fomentar a utilização de arbitragem e outros mecanismos alternativos de solução de disputas, para resolver as controvérsias particulares na estrutura da ALCA". Segundo Maude, no Órgão de Resolução de Disputas da OMC, já em funcionamento, "um país que atue freqüentemente em favor dos seus próprios interesses empresariais pode contestar as leis, as políticas e os programas de outro país e derrubar suas leis internas. O país que perde tem três opções; alterar sua lei para se ajustar à decisão da OMC, pagar ao país vencedor uma indenização permanente em dinheiro ou enfrentar sanções severas e permanentes do país vencedor. Dezenas de leis sobre saúde, segurança de alimentos e meio ambiente dos estados-nações têm sido derrubadas por meio deste processo da OMC. Desnecessário dizer que as decisões afetam os países pobres de forma diferente dos países ricos".


[i] Ver Teixeira, Francisco José Soares. O Capital e suas formas de produção de mercadorias: rumo ao fim da economia política. In A Obra Teórica de Marx: atualidades, problemas e interrogações. - São Paulo: Editora Xamã, 2000.

[ii] Jornal do COFECON, ano 3, nº 8.

[iii] Przeworsky, Adam. Capitalismo e Social Democracia. - São Paulo: Companhia das Letras, 1989; p. 258/9]
[iv] Idem. Ibidem., p. 258/9.

[v] Ricardo, David. Princípios de Economia Política e Tributação – São Paulo: Nova Cultural, 1985; p. 104

[vi] Mantega, Guido. A Economia Política Brasileira - Petrópolis: Editora Vozes Ltda., 1984; p. 39
[vii] Chesnais, François. A Mundialização do Capital - São Paulo: Editora Xamã, 1996. p.34

[viii] Miriam Limoeiro-Cardoso, Ideologia da Globalização e (Des)caminhos da Ciência Social, in Globalização Excludente: desigualdade, exclusão e democracia na nova ordem mundial.- Rio de Janeiro: Editora Vozes, 3 ed., 1999;121

[ix] Idem, ibidem; p.119

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