28/09/2009

SOCIOLOGIA E HISTÓRIA NA “CONSTRUÇÃO” DO OBJETO DE ESTUDO DE “A ÉTICA PROTESTANTE” DE MAX WEBER

INTRODUÇÃO
SOCIOLOGIA E HISTÓRIA NA “CONSTRUÇÃO” DO OBJETO DE ESTUDO DE “A ÉTICA PROTESTANTE” DE MAX WEBER

1. CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

Como é próprio de todo clássico, o destino de A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo não poderia ser diferente: tornar-se objeto das mais controvertidas interpretações. Dentre elas, destaque-se a discussão sobre o seu estatuto epistemológico. Em seu artigo O mito de “A ética protestante e o espírito do capitalismo” como obra sociológica, Sérgio da Mata, professor do Departamento de História da Universidade de Ouro Preto, defende a tese de que A Ética Protestante de Weber é um livro de história. Opõe-se, assim, àqueles que entendem tratar-se de um ensaio sociológico, dentre os quais cita Aron e Pierucci.

Essa dicotomia, proposta pelo autor em questão, é, no mínimo problemática, quando se sabe que, para Weber, Sociologia e História não se excluem, não são campos de investigação radicalmente distintos. Prova disso, ele oferece em Economia e Sociedade, quando afirma que

a conceituação da Sociologia encontra seu material, como casos exemplares e essencialmente, ainda que não de modo exclusivo, nas realidades da ação consideradas também relevantes do ponto de vista da História. Forma seus conceitos e procura suas regras sobretudo também levando em conta se, com isso, pode prestar um serviço à imputação causal histórica dos fenômenos culturalmente importantes[1].

Se assim é, se a Sociologia “pode prestar um serviço à imputação causal histórica dos fenômenos culturalmente importantes”, pode-se afirmar, sem medo de cometer aberrações de interpretação, que o objeto de estudo de “A Ética Protestante...”, doravante simplesmente A Ética, é uma investigação sociológica das relações causal-históricas, que deram origem ao nascimento e ao desenvolvimento da moderna sociedade capitalista. Consequentemente, Sociologia e História caminham de mãos dadas na feitura desse ensaio, que veio a público em 1904.

Obviamente, não se desconhece que se trata de duas formas de ciência que trabalham com níveis de abstração diferentes. A Sociologia é um saber generalizante, na medida em que elabora seus conceitos para encontrar regras gerais dos acontecimentos históricos. Por sua vez, a História busca investigar as causas de acontecimentos singulares, individuais. Nisso, se contrapõe à Sociologia, sem, contudo, dispensar sua ajuda na construção dos conceitos com os quais trabalha, como o de “Espírito do Capitalismo”, elaborado sociologicamente, para dar conta de uma individualidade histórica: o capitalismo ocidental.

A Ética não é, portanto, um texto que se entende sozinho. Seu objeto de análise faz fronteira com os estudos metodológicos e epistemológicos de Weber, bem como com outras obras, para citar apenas Economia e Sociedade e História Geral da Economia. Prova disso, é o conceito de desencantamento do mundo, que aparece em diversas passagens de A Ética. Como diz Gabriel Cohn, referindo-se ao livro de Flávio Pierucci, O Desencantamento do Mundo: todos os passos do conceito em Max Weber, aquele conceito “só ganha sentido quando encontra seu lugar na estrutura analítica que, no conjunto, forma uma teoria. É, pois, toda a armação da teoria sociológica de Max Weber que está em jogo. É ela que tem de ser percorrida quando a tarefa consiste em reconstruir, passo a passo, o modo como nela vai fazendo presente uma peça a qual o resto não avança, que é precisamente o conceito de desencantamento do mundo”.

Por essa razão, o autor do presente texto achou por bem explicitar, em sua leitura d´A Ética, as confluências que esse ensaio faz com outras obras de Weber, bem como os pressupostos metodológicos e epistemológicos que lhe dão sustentação. Obviamente, reconhece-se que o leitor não é obrigado a conhecer os estudos metodológicos e epistemológicos de Weber, para ler A Ética. Não é preciso estudar anatomia para aprender a andar. Aprende-se a caminhar, caminhando; como para aprender a nadar há que se jogar na água. Mas, quando se conhece o “caminho das pedras”, como foram assentadas, caminha-se como mais segurança. Principalmente, quando se sabe que Weber viveu e participou de um intenso debate sobre os fundamentos epistemológicos e metodológicos das ciências sociais, que, na época, punha em risco o desenvolvimento do próprio trabalho científico. Por isso, acredita-se que é pertinente conhecer sua opinião sobre a importância desse tipo de conhecimento sobre o trabalho das ciências. Em seus Estudos críticos sobre a lógica das ciências sociais, de 1906, minimiza, até com certo desdém, tal importância, quando afirma que

a metodologia nunca pode ser outra coisa que não a reflexão de si mesmo acerca dos meios que levaram, na práxis, a resultados válidos, e a consciência explícita disso tampouco é um pré-requisito para um trabalho frutífero como, por exemplo, não é um pressuposto para alguém poder "andar corretamente" o conhecimento da estrutura anatômica. Quem busca continuamente controlar o seu "andamento correto" mediante conhecimentos anatômicos corre o risco de tropeçar, e algo semelhante ocorreria por certo ao especialista que intentasse determinar extrinsecamente as metas do seu trabalho nas bases das considerações metodológicas [...][2].


No início desta passagem, afirma, em tom categórico, que


os conhecimentos metodológicos mais abrangentes não fazem com que alguém seja ou se transforme em historiador, nem opiniões errôneas em termos de metodologia, têm como conseqüência, necessariamente, uma errada práxis científica no campo da História[3].


Isto porque, diz ele, em noutra passagem:

apenas delimitando e resolvendo problemas concretos é que se fundam as ciências, e só destarte desenvolveram seu método. Reflexões puramente epistemológicas e metodológicas, pelo contrário, nunca contribuíram para o seu desenvolvimento decisivo[4].

Decerto que não. No entanto, é obrigado a reconhecer que tais conhecimentos se revestem

de importância para o cultivo da ciência somente quando, em conseqüência de deslocamentos notáveis de "pontos de vista", a partir dos quais uma matéria se converte em objeto de uma exposição, surge a idéia de que estes novos "pontos de vista" exigem também uma revisão das formas lógicas, dentro das quais se desenvolvera tradicionalmente o "cultivo" quase consagrado, levando, obviamente a uma situação de incerteza sobre a "essência" do próprio trabalho científico[5].


E era justamente o que estava a se passar na Alemanha de então, quando duas grandes escolas se digladiavam entre si acerca do método correto para a produção das ciências sociais. De um lado, a Escola histórica, para qual a economia política é uma ciência fundamentalmente histórica e, como tal, os fenômenos econômicos deveriam ser analisados contextualmente, dependente de cada realidade histórica. Noutras palavras, essa Escola defendia um método de investigação assentado na busca da particularidade, do exame minucioso do concreto, dando ênfase ao empírico, ao imediatamente dado em cada particularidade histórico-social. De outro, a escola teórica, segundo a qual a Economia é um sistema de leis abstratas, rigorosamente constituída de estrutura axiomática de caráter universal, tal como assim procedem as ciências da natureza.

Diante desse abismo epistemológico, Weber vê-se obrigado a tomar parte na polêmica em curso. Embora confesse sua preferência pela Escola histórica, não a assume integralmente. Se o fizesse, teria de negar a possibilidade de construir uma ciência de caráter universal, isto é, de validade objetiva. Por outro lado, reconhecia que o mundo dos homens é um mundo da ação intencional, orientada por crenças e propósitos partilhados intersubjetivamente, um mundo de valores e normas culturais; um mundo histórico. Sendo assim, os acontecimentos históricos não podem ser explicados unicamente por meio de “leis gerais”, segundo as quais a ocorrência de um fenômeno A, por exemplo, vem sempre acompanhada, necessariamente, da ocorrência de um fenômeno B, que o antecede e, assim, o explica.

Mas, qual é, então, a posição assumida por Weber? Ora, sabe-se que, para ele, a Sociologia é uma ciência de causalidade social, que constrói seus conceitos de tipos e procura regras gerais de acontecimentos. “Leis” gerais? Sim, mas não da forma como procedem as ciências da natureza. Para aquele pensador, a causalidade dos fenômenos sociais é mais complexa do que a causalidade dos fenômenos naturais. Aqueles devem sempre ser acompanhados de uma imputação de sentido das ações humanas, uma vez que agentes sociais agem de acordo com determinados fins visados, intencionados. Consequentemente, a Sociologia exige não só um conhecimento da causa (ou causas) de determinado fenômeno social, como também, é obrigada a explicar o porquê da intenção visada pelo agente social. Daí porque entende que a Sociologia é uma ciência preocupada em compreender interpretativamente a ação social, para explicá-la causalmente em seu curso e efeito. Ainda que invista o princípio da causalidade na análise dos fenômenos sociais, recusa sua utilização unilateral, porque as ações humanas respondem a intenções. Tais intenções são imprescindíveis para compreender as ações dos indivíduos, dos agentes sociais. A Sociologia é, ao mesmo tempo, uma ciência explicativa e compreensiva; não se contenta apenas em explicar as ações sociais, quer, também, compreendê-las, sem o que não se poderia falar de uma explicação sociológica.

Para compreender e, assim, explicar o curso causal das ações humanas, Weber é obrigado a se valer da construção de conceitos típicos, de tipos ideais, que, segundo ele, quanto mais alheios à realidade, mais distante desta estiverem, quanto “menos sujos” de realidade, melhor cumprirão sua função heurística, isto é, de ordenar e classificar as diversas ações sociais, que configuram o agir o humano. Vale dizer: quanto mais vazios de conteúdos empíricos, mais conseqüente serão; portanto, melhor cumprirão sua função para compreender e explicar a realidade.
Mas por que os conceitos sociológicos devem ser vazios de conteúdos concretos, históricos? Porque, para Weber, a realidade é infinitamente maior e mais complexa do que qualquer conhecimento científico. Por isso, nenhuma ciência, diria mais, é capaz de abarcar a realidade e esgotá-la num conjunto acabado e fechado de conceitos. Principalmente, se se considerar que as ações práticas são atravessadas por uma multiplicidade de valores divergentes, de interesses conflitantes, muitos deles radicalmente opostos e irreconciliáveis. Por essa razão, a realidade sempre se apresenta ao pesquisador como um amontoado caótico de acontecimentos mutáveis, isto é, como um verdadeiro “entulho amorfo” de elementos emaranhados e incontáveis, de tal sorte que as ciências só podem transformar em objeto de conhecimento um fragmento ínfimo do enorme caudal de acontecimentos que rola através do tempo.

Ora, se o sujeito do conhecimento, para investigar a realidade, só pode fazê-lo mediante a construção de conceitos típico-ideais, logo, ele só pode conhecer o real como o vê e não como ele é em si mesmo. Com mais razão ainda, dirá Weber, se se considerar que o espírito humano é finito e, portanto, só pode ter acesso a uma parte ínfima da realidade, que ele seleciona para transformar em objeto de pesquisa. Nesse sentido, a objetividade do conhecimento é determinada pela subjetividade, pelos conceitos construídos pelo trabalho científico e não pelas determinações da matéria, que não passa de um “entulho amorfo”, de um amontoado de acontecimentos.

Nesse aspecto, a História não é diferente da Sociologia. Se esta tem como objeto de estudo compreender e explicar o porquê das regularidades das ações sociais, que se repetem no tempo e no espaço, a História está interessada em determinar as circunstâncias únicas que provocaram um determinado acontecimento histórico. Pode se ocupar de um acontecimento particular, como a Revolução de 1917, ou de uma individualidade histórica mais ampla, como o capitalismo. Seja como for, se o historiador pretende se elevar acima de uma mera crônica de personagens e acontecimentos memoráveis, há que recorrer a reconstruções irreais de tais acontecimentos históricos, para inquirir o que teria acontecido, caso o que ocorreu de fato não tivesse realmente acontecido. Sem dirigir perguntas desse tipo à história, o historiador, diria Weber, não passa de um simples narrador de fatos e acontecimentos.

É esse tipo de procedimento metodológico que permite a Weber defender a idéia de que a História é marcada pela contingência; nada está, diantemão, pré-determinado. As circunstâncias, que determinaram certos acontecimentos no passado, comportam certa margem de indeterminação, no sentido de que o que ocorreu poderia ter sido diferente do que se passou. Como diria Raymond Aron[6], para Weber, o futuro é incerto; logo, os homens podem forjá-lo, ainda que nem sempre o esperado por eles coincida com suas decisões tomadas no passado. Com efeito, como diz o autor d’A Ética, os puritanos lutaram para construir um mundo em que pudessem ser donos do seu destino e acabaram prisioneiros das conseqüências de uma racionalização asfixiante. Queriam ser livres e terminaram escravos dos efeitos da própria racionalização da vida, pela qual tanto lutaram.

É aqui que a Sociologia e a História confluem para dar conta desse processo histórico paradoxal. Para investigar suas raízes históricas, Weber lança mão da construção de vários tipos ideais, tais como o conceito de capitalismo, de “espírito do capitalismo”, de seitas religiosas, dentre outros. Ora, a construção desses conceitos típicos demanda, em maior ou menor grau, o recurso ao conhecimento nomológico, isto é, ao conhecimento das regularidades de certos tipos de ações sociais que configuram a existência de determinados fenômenos históricos. O feudalismo ou o patriarcalismo, por exemplo, duas formas históricas de dominação, não teriam existido se não houvesse uma repetição regular de comportamentos com conteúdo de sentido partilhado por várias pessoas.

Nesse sentido, a discussão sobre se A Ética é um livro de sociologia ou de história não se sustenta quando analisada sob perspectiva metodológica e epistemológica, que preside a “construção” do objeto de estudo dessas ciências. Há uma unidade metodológica entre elas, na medida em que a análise da relação de causalidade histórica não pode prescindir da sociologia, da qual depende a construção dos tipos ideais com os quais trabalha a história. Se assim é, parece mais conveniente entender A Ética como uma investigação sociológica das relações de causal-históricas, que deram origem ao nascimento e desenvolvimento da moderna sociedade capitalista.

2. REALIDADE E MÉTODO EM WEBER E MARX

Mas essa não é a única razão por que toda essa discussão mereceu tanto a atenção do autor do presente texto. Ter consciência das premissas metodológicas e epistemológicas sobre as quais se assenta A Ética é de suma importância, para evitar, por exemplo, que o leitor cobre de Weber o que ele não deve. Tampouco compará-lo com Marx, como se os dois tivessem o mesmo projeto de saber, isto é: de ciência. Há um grande abismo epistemológico entre eles, de tal sorte que uma comparação desavisada entre esses dois pensadores pode incorrer em erros grosseiros, em cobranças indevidas. Diferentemente de Weber, para quem a realidade não passa de “entulho amorfo” e que, por isso, são os conceitos que a organizam e lhe dão uma estrutura de sentido, para Marx, as categorias são da ordem do ser e do pensar. Logo, para o autor de O Capital, o real não é um amontoado caótico de acontecimentos; pelo contrário, entende que a realidade é em si mesma estruturada. Nesse sentido, ele é radicalmente contra a utilização da realidade unicamente sob a forma de objeto, como procede Weber. Noutras palavras, para Weber, a ciência só conhece o real por meio de conceitos típicos, de quadros mentais, pois seu objeto é uma construção do sujeito do conhecimento. Consequentemente, este só conhece o real como ele o vê e não como ele o é em si mesmo. Nada mais distante do projeto de saber de Marx, para quem o real conhecido não é uma mera criação do sujeito do conhecimento. Marx recusa, portanto, a exigência weberiana que separa o sujeito que conhece e o objeto a ser conhecido. Muito pelo contrário, para ele, o sujeito que conhece é produto do processo histórico. Em conseqüência, a realidade não é estranha nem externa ao entendimento racional do homem, uma vez que é mediada pelo trabalho, que não só cria um mundo humano como também condiciona e determina a consciência humana. Por isso, o sujeito que conhece não se aproxima da realidade com categorias estranhas às coisas. Ela é parte da práxis social. Como diria Jürgen Kocka[7], isto significa que também valores e perspectivas devem ser vistas como momentos do processo social e histórico global, e não contrapostos à coisa, de forma descompromissada como assim entende Weber.

Isto posto, é preciso atentar para duas coisas. Primeira, afirmar que o sujeito do conhecimento não se aproxima da realidade com categorias estranhas a ela, não significa dizer que a consciência humana estaria sempre adequada aos seus objetos; nem poderia. A realidade capitalista é marcada por uma inversão estrutural, que transforma os homens em objetos e as coisas em sujeito da sua vontade. É o fetichismo da mercadoria, produto de uma forma de organização social, que faz do dinheiro o representante universal da riqueza social e que, por isso, somente por meio dele as pessoas podem satisfazer suas necessidades, sejam estas provenientes do estômago ou da fantasia. Uma forma de sociabilidade, como diz Marx, nos Grundrisse, em que “a própria relação dos objetos, a operação humana com os mesmo, se converte numa operação de um ente exterior ao homem e superior a ele. Por causa desses mediadores estranho – no lugar de ser o próprio homem o mediador para os homens – o homem considera a sua vontade, sua atividade, sua relação com os demais, como uma força independente dele[8]”.

Obviamente, o dinheiro, em si mesmo, não é capaz de transformar as relações humanas em relações objetuais, coisificadas, e, por assim dizer, independentes da vontade dos indivíduos. O dinheiro não pode, por exemplo, comprar escravos se a escravatura não existe. Se ela é uma realidade, então, diz Marx: "o dinheiro pode ser empregado na aquisição de escravos". Do mesmo modo, o dinheiro não pode ser utilizado para assalariar trabalhadores, se a força de trabalho não assumir a forma de mercadoria. Somente quando sua força de trabalho se transforma em mercadoria, o dinheiro pode ser usado para comprá-la. E como não dispõe de outros meios para sobreviver, o trabalhador é obrigado a vender suas força de trabalho recorrentemente; e quanto mais vendê-la, mais necessidade terá de continuar a fazê-lo. Do lado do capitalista, este só pode transformar seu precioso dinheiro em mais dinheiro, se constantemente adquire a mercadoria força de trabalho, que é a única mercadoria, dentre as demais, capaz de transformar seu rico dinheirinho em capital. Daí a razão por que a vontade do capitalista e do trabalhador se transmigra para o dinheiro que, na sua função de compra e venda da força de trabalho, realiza para ambos seus desejos e necessidades. Nessas condições, opera-se uma inversão fundamental que marca e singulariza a sociedade capitalista como sendo aquela sociabilidade em que o homem se torna objeto e as coisas, sujeito.

Se assim é a sociedade capitalista, a consciência humana não poderia nascer adequada aos seus objetos. Se a consciência já nascesse adequada aos seus objetos, a ciência tornar-se-ia supérflua, a ciência seria desnecessária.

Mas é preciso ainda atentar para o fato de que, se a consciência, para Marx, não se aproxima da realidade com categorias estranhas a ela, não significa que ele defenda a idéia de que existe uma unidade absoluta entre o conceito e real. Muito pelo contrário, para ele, admitir tal unidade seria o mesmo que admitir que o pensamento é o demiurgo do real. Em Para a Crítica da Economia Política, esclarece para seus leitores que a apresentação do movimento do real não é uma criação do conceito, mas tão-somente sua transposição e tradução na cabeça do homem. O objeto deve figurar sempre na exposição como pressuposição, que subsiste em sua autonomia fora do pensar. Daí a razão de sua crítica a Hegel, que, segundo ele, “caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que se sintetiza em si, se aprofunda em si, e se move por si mesmo; enquanto que o método que consiste em elevar o abstrato ao concreto não é senão a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo como concreto pensado. Mas este não é de modo nenhum o processo da gênese do próprio concreto”[9].

Depois desse longo percurso, o leitor deve estar a se perguntar pela razão de toda essa discussão. A resposta já foi de certa forma adiantada. Como foi antes antecipado, A Ética, além de fazer confluência com outros estudos de Weber, está fundada em alicerces metodológicos e até mesmo epistemológicos, cujo conhecimento ajuda a evitar pensar seus conceitos como se estes fossem capazes de esgotar a realidade. Seu arcabouço conceitual trabalha com tipos ideais, e como tais nunca poderão ser uma cópia fiel da realidade; não se confunde com ela. Não sem razão, o que Weber mais repudia era a idéia de transformar a história em escrava do conceito, isto é: de forçá-la a coincidir com a sua construção conceitual, que pode apenas fornecer o curso provável dos acontecimentos históricos. Logo, outros conceitos ideais poderiam ter sido construídos para investigar as origens e desenvolvimento da moderna sociedade capitalista e, assim, descobrir outras relações causal-históricas.

Mas essa não foi a única razão por que se demorou tanto nessa discussão. A Ética, de Weber, e O Capital, de Marx, têm em comum o fato de que ambos estão preocupados com o caráter capitalista da moderna economia e sociedade. Porém, não se pode esquecer que há um grande abismo epistemológico entre eles; duas concepção radicalmente distintas de ciência. Ter isto em conta, é de fundamental importância para que não se incorra em comparações precipitadas e equivocadas entre esses grandes pensadores. Daí por que se achou por bem discutir como eles entendem a relação entre realidade e conceito, uma vez que é pretensão do autor do presente texto não se limita exclusivamente a uma leitura crítico-comentada d’Ética, como também fazer uma análise comparativa entre Weber e Marx.

Por falar nisso, é hora de adiantar os passos dessa leitura, como o presente autor intenta desenvolvê-la.

3. O TEXTO

Essa leitura é apresentada numa linguagem leve, com o cuidado, obviamente, de não deixar que o esforço didático simplifique o conteúdo do texto examinado, no caso, A Ética. A leitura foi organizada em seis capítulos, com um pouco mais de 120 páginas. Não é muita coisa, para comentar um livro que tem pouco mais de 160 páginas? - Não! Pois não se trata de uma simples resenha e, sim, de uma leitura comentada, na qual se tenta reproduzir, no interior mesmo da reflexão weberiana, o traçado determinante da obra pesquisada. Afinal, a pretensão, de quem se dá ao trabalho de investigar o pensamento de um autor, exige que se proceda com o cuidado de conduzir sua leitura com respeito radical à estrutura e à lógica inerente ao texto analisado. Afinal, antes de interpretar ou criticar, é necessário compreender e fazer prova de ter compreendido.

Os cinco primeiros capítulos foram dedicados ao comentário da Ética, intercalados com comentários tanto de natureza metodológica, quando assim a leitura exigir, como também de natureza crítico-comparativa, quando estiver em questão a censura que Weber dirige ao materialismo histórico e, assim, indiretamente a Marx. Comparação que não está desobrigada para com a ideologia. É fato! Mas, com o cuidado de não assumir posições sectárias do tipo: Weber estava errado; a verdade está com Marx. Não se trata disso, mas, sim, de elucidar certas censuras que o autor d’A ética, implicitamente, dirige a Marx, e que, no mais das vezes, aparecem quase sempre destituídas de fundamentação, ou quando vêm acompanhadas de cobranças que o autor de O Capital não deve.

Por essa razão foi redigido o sexto capitulo, no qual se procura examinar mais de perto alguns pontos em que Weber concorda com Marx e outros em que ele se opõe ao autor de O Capital. Para tanto, escolheu-se como livro básico A História Geral da Economia (HGE), um texto problemático, como diria Pierucci, uma vez que Weber não é o autor de sua escrita. Trata-se de um texto que é produto das anotações de seus alunos, das aulas que ele ministrou na Universidade de Munique, no inverno de 1920 – ano de sua morte.

Seja como for, o texto é extremamente importante; principalmente seu último capítulo, no qual Weber analisa a origem do capitalismo moderno. Por isso, não se pode deixar de comparar a leitura desse capítulo com o capítulo XXIV de O Capital, em que seu autor investiga a assim chamada Acumulação Primitiva. Muito embora se refira a Marx em duas ou três passagens, e ainda assim aos seus textos de juventude, particularmente o Manifesto Comunista, é surpreendente o paralelo que o texto guarda com a investigação realizada por este último sobre a acumulação primitiva do capital.

Por essa razão, da obra de Weber, a HGE é, talvez, o melhor texto para se estabelecer um dialogo crítico entre ele e Marx. Coisa que não pode ser explorada com profundidade n’A ética, na qual não há nenhuma passagem em que se refira diretamente a Marx. Quando o faz, o faz de maneira indireta, quando diz, nos últimos parágrafos dessa obra, que não tem cabimento substituir

uma interpretação causal unilateralmente “materialista” da cultura e da história por uma outra espiritualista, também unilateral. Ambas são igualmente possíveis, mas uma e outra, se tiverem a pretensão de ser, não uma etapa preliminar, mas a conclusão da pesquisa, igualmente pouco servem à verdade história.


Mas, como conciliar essa passagem com a que ele afirma, em alto e bom som, que

a relação de causalidade é de todo modo inversa àquela que se haveria de postular a partir de uma posição “materialista”.



Daí a razão da necessidade de acrescentar um capítulo, onde se pudesse estabelecer, com mais segurança, uma comparação entre Weber e Marx, algumas notas críticas, diga-se assim, sobre um possível diálogo implícito entre eles.

Bem, isso é tudo que se pode dizer, por enquanto. Cabe, agora, convidar o leitor a acompanhar a leitura d’A ética, com a promessa ousada de quem acredita que o visitante não terá problemas indigestos de compreensão do texto.
[1] Weber, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. – ed. 4 – Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1998. Vol. I., p.12.
[2] Weber, Max. Weber, Max. Estudos Críticos Sobre a Lógicas das Ciências Sociais, in Metodologia das Ciências Sociais. Vol. I. p. 157.
[3] Idem,Ibidem., p. 157.
[4] Idem,Ibidem., p. 157.
[5] Idem,Ibidem., p. 157.
[6] Aron, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. – São Paulo: Martins Fontes, 1999.
[7] Kocka, Jürgen. Objeto, Conceito e Interesse, In Max Weber & Karl Marx. – São Paulo: Hucitec, 1997.
[8] Marx Karl, Elementos fundamentales para la Crítica de La Economia (Grundrisse), 1957-1958, apud Rosdolsky, Gênesis y estrucutura de El Capital de Marx: estúdios sobre los Grundrisse. - Buenos Aires, Siglo Veintuino Editores., p. 158.
[9] Karl Marx, Para a crítica da economia política. - São Paulo, Abril Cultural, 1982, p.14.

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