05/12/2008

A CRISE COMO ELA É

A CRISE COMO ELA É
Francisco José Soares Teixeira[1]

Num sistema de produção em que toda a conexão do processo de reprodução repousa sobre o crédito, quando então o crédito subitamente cessa e passa a apenas a valer pagamento em espécie, tem de sobrevir evidentemente uma crise, uma corrida violenta aos meios de pagamento. À primeira vista, a crise toda se apresenta, portanto, apenas como uma crise de crédito e crise monetária. E de fato trata-se apenas da conversibilidade das letras em dinheiro. Mas essas letras representam em sua maioria compras e vendas reais, cuja extensão, que ultrapassa de longe as necessidades sociais, está, em última instância, na base de toda crise. Ao lado disso, entretanto, uma enorme quantidade dessas letras representa negócios meramente fraudulentos que agora vem à luz do dia e estouram; além de especulações feitas com capital alheio, mas fracassadas; e, finalmente, capitais-mercadorias desvalorizados ou até invendáveis (...). Todo esse sistema artificial de expansão forçada do processo de reprodução não pode naturalmente ser curado pelo fato de um banco, por exemplo, o Banco da Inglaterra, dar a todos os caloteiros, em seu papel, o capital que lhes falta e comprar todas as mercadorias desvalorizadas a seus antigos valores nominais. De resto, tudo aparece aqui invertido, pois nesse mundo de papel o preço real e seus momentos reais nunca aparecem, mas apenas barras, dinheiro metálico, notas, letras de câmbio e papeis de crédito. Essa inversão aparece sobretudo nos centros em que se concentram todo o negócio monetário do país, como Londres; todo o processo se torna incompreensível; já menos, nos centros de produção.

(O Capital – SP. Nova Cultural, 1988. Livro III, Vol. V. p. 21/22).


1. A CRISE E SEU CONTEXTO HISTÓRICO

A atual crise é bem diferente da crise de 1929. Hoje, crise abrange todo Planeta terra, pois ocorre num momento em que a economia foi mundialmente unificada pelo capital. Além disso, essa crise vem acompanhada por uma profunda crise de alimentos, de desemprego e climática.

Mas a diferença básica entre a crise de hoje e a de 1929 é o fato de que esta acontece num estágio de evolução do capitalismo em que o desenvolvimento das forças produtivas perdeu ser caráter civilizador. Do Manifesto Comunista, passando pelos Grundrise até chegar à sua obra mais acabada, O Capital, são inúmeras as passagens em que Marx se refere à missão civilizadora do capital. Para não tomar muito tempo dos senhores e senhoras, permitam-me citar uma passagem dos Grundrisse em que aparece claramente essa missão progressista do capital. No volume I dessa obra, Marx diz que se deve ao capital a criação da
(...)sociedade burguesa e a apropriação universal da natureza, como os próprios vínculos sociais dos membros da sociedade. Daí a grande influência civilizadora do capital; a produção de um estágio social, em comparação com o qual todos os anteriores aparecem como meros desenvolvimentos locais da humanidade ou idolatria da natureza. Pela primeira vez, a natureza se converte puramente em objeto para a humanidade, em pura matéria de utilidade; cessar de ser conhecida como um poder para si mesma; e a descoberta teórica de suas leis autônomas aparece meramente como um ardil para subjugá-la às necessidades humanas, seja como objeto de consumo, seja como meio de produção. De acordo com essa tendência, o capital tende para além das barreiras nacionais, tanto quanto da veneração da natureza e da satisfação tradicional, confinada, complacente e incrustada nas necessidades existentes, bem como da reprodução dos velhos estilos de vida. O capital é destrutivo ante tudo isso e constantemente o revoluciona, rompendo todas as barreiras que impeçam o desenvolvimento das forças produtivas, a expansão das necessidades, a diversificação do desenvolvimento da produção e a exploração e o intercâmbio das forças naturais e espirituais (Grundrisse, Vol. I., p. 362).


A força que anima esse caráter progressista e revolucionário do capital, nas palavras de Marx, é a fome de dinheiro. Movida unicamente pelo interesse de tudo fazer se transformar em mercadorias, a burguesia cruzou fronteiras, atirou-se mar adentro e conquistou a América, a África, a China... Tal qual Midas, fez do mundo todo numa imensa feira comercial; tudo em que tocava convertia-se em dinheiro. Tudo e todos, a quem encontrava pela frente, eram apanhados e atirados ao redemoinho do mercado mundial. Assim, a burguesia destruiu todos os laços naturais que prendiam os homens uns aos outros, “para deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do pagamento à vista” (Manifesto Comunista. Ed. Boitempo, p. 42).

Essa “fome devoradora” por mais-trabalho, levou o capital a revolucionar o processo de trabalho a ponto de transformar o sistema de maquinaria numa espécie de força de trabalho intelectual, no sentido de que esse novo sistema não necessita de quase nenhum trabalho para ser vivificado, isto é: para fazê-lo operar, funcionar. É o que pensa Marx em suas prospecções sobre o desenvolvimento do capitalismo. Segundo ele, a fome do modo de produção capitalista por mais-valia poderia levá-lo a um estágio de desenvolvimento a ponto de transformar o trabalhador, da condição de apêndice da máquina que era até então, em supervisor e controlador do processo de produção (Ver Marx, Karl, Grundrisse, Vol. II., p. 228).

Nesse estágio de desenvolvimento,

o roubo de tempo e trabalho alheio, sobre o qual se funda a produção atual, aparece como uma base miserável (...). Tão logo o trabalho em sua forma imediata deixa de ser a grande fonte de riqueza, o tempo de trabalho deixa de ser a sua medida e por isso o valor de troca deixa de ser a medida do valor de uso ... (Grundirsse. Vol. II., p. 228).

Nesse contexto, estariam postas

as condições para fazê-lo (isto é: o sistema capitalista) explodir (Grundrisse. Vol. II, p. 229).


As especulações teóricas de Marx sobre o futuro do capitalismo tornaram-se realidade. Obviamente, as transformações operadas no processo de produção não levaram a implosão do sistema, no entanto, hoje, o capital opera no limite em que a substituição do trabalho vivo por trabalho morto (máquinas, equipamentos, instalações, etc) é cada vez mais difícil. Como assim? - Marx explica: a substituição de trabalhadores por máquinas só vale a pena se a economia com capital variável (gastos com pagamento da força de trabalho) for maior do que as despesas realizadas com capital constante (isto é: com a compra de máquinas, equipamentos, etc).

Quando o capital atinge aquele limite, e tudo indica que ele já o alcançou, sua missão civilizadora chega ao fim. Com efeito, a partir de meados da década de 1970, o capital inaugura um novo período de acumulação em que não há mais desenvolvimento. O crescimento econômico não se faz mais por meio de criação de novos mercados e por incorporação de novas áreas geográficas ao mercado capitalista, uma vez que o mundo todo já se transformou numa imensa feira comercial. Acumular não significa mais criar novas empresas, mas, sim, fundir as existentes em novas unidades cada vez maiores. Com efeito, segundo dados de François Chesnais (Mundialização do Capital, SP:Xamã, 1996), mais de 66% dos investimentos realizados atualmente, em todo o mundo, são de fusão e não mais de criação de novas plantas industriais. Não sem razão, pela primeira vez na história do capitalismo, o crescimento econômico deixa se ser sinônimo de criação de empregos.

Nesse contexto, o capital passa a recriar formas de trabalho que há muito já haviam sido superadas pelo desenvolvimento do capitalismo. Como exemplo, basta lembrar as modalidades de precarização do trabalho, tais como trabalho domiciliar, por tempo parcial, flexibilização contratual, terceirização, trabalho escravo, etc. Daí a ofensiva do capital contra as leis de proteção ao trabalho criadas pelo Estado do Bem-estar social e por seus “irmãos” da periferia capitalista: uma espécie de simulacro dos Estados social-democratas.

São essas as condições históricas em que a crise bate à porta de todas as economias do Planeta. Desde 1997, com a queda astronômica das bolsas asiáticas, ela anuncia a sua chegada. Mas, somente, agora, em 2008, é que o mundo se dá conta de que ela veio para ficar; desta vez, sem deixar ninguém de fora, nem mesmo aqueles países que se “gabam” de ter reservas cambiais suficientes para enfrentá-la.

Mas, qual é mesmo a natureza dessa crise? Trata-se de uma crise unicamente financeira, ou ela tem outras determinações?

O contexto em que ela surge, já se conhece: acontece num período em que o capitalismo, ao que tudo indica, esgotou suas possibilidades históricas de conjugar acumulação com desenvolvimento. Mas isso não é suficiente para compreender sua real natureza. É preciso, agora, se voltar para a análise de suas causas, objeto de que se ocupa o restante deste texto. Espera-se que os senhores e senhoras tenham um pouquinho mais de paciência, pois devem estar ansiosos por falar.
2. QUE CRISE É ESSA?
2.1. CRESCIMENTO SEM EMPREGO

É uma crise do capital, isto é, produto de suas contradições internas. Com a diferença de que não guarda mais semelhanças com as crises anteriores, pois acontece num estágio em que o desenvolvimento do capitalismo parece ter atingido seus limites históricos, no sentido de que o crescimento econômico não se faz acompanhar, necessariamente, de um crescimento no emprego. Ninguém melhor do que Celso Furtado para legitimar essa tese. Ao apagar das luzes de sua existência, reconhece que

hoje, mesmo na Europa, não se vê horizonte para uma relativa harmonia baseada no pleno emprego. Para manter o nível de agressividade das economias capitalistas tornou-se necessário abandonar as políticas de emprego. O aumento de produtividade se desassociou de efeitos sociais benéficos. Esta é a maior mutação que vejo nas economias capitalistas contemporâneas (Entrevista concedida ao CORECON de São Paulo).

Furtado não é uma voz isolada. Juan Somavia, diretor geral da Organização Internacional do Trabalho (OIT), não acredita que o crescimento econômico possa gerar postos de trabalho suficientes para acabar com o desemprego. Segundo ele, em 2004, a taxa de crescimento da economia mundial, que foi da ordem de 5,1%, resultou apenas num aumento de 1,8% no número de pessoas ocupadas. Mas isso ainda não traduz toda questão. Até 2015, argumenta Somavia,

cerca de 400 milhões de pessoas se incorporarão à força de trabalho. Isto quer dizer que mesmo que se consiga um crescimento acelerado do emprego para produzir 40 milhões de postos por ano, a taxa de desemprego baixaria apenas 1% em 10 anos”.

No Brasil, as perspectivas para o trabalho são igualmente desanimadoras. Estudos realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o mercado de trabalho no Brasil está encolhendo. Uma pesquisa realizada por essa instituição, junta à indústria automotiva, revela que nos anos 80, para uma capacidade de produção de um milhão e quinhentos mil veículos, este setor empregava 140 mil trabalhadores. Hoje, para uma capacidade de produção de três milhões de veículos, as montadoras empregam apenas 90 mil trabalhadores.

Contra esse estado de coisas, de nada vale fazer exigências morais aos donos do capital; pedir-lhes para que privilegiem o emprego em vez de substituí-lo por maquinaria. Esperança Vã! Pouco importa que sejam bons cristãos, cidadãos exemplares, membros da sociedade protetora dos animais, até mesmo vicejarem odor de santidade, como diria Marx; não, não adiante mesmo, pois em matéria de dinheiro não há boa vontade. Bem mais fácil do que tentar convertê-los em homens de boa vontade, seria pregar o catecismo no inferno. Aí, talvez, algumas almas arrependidas voltassem ao mundo para praticar o bem.

Ora, a alma do capitalista é a alma do capital. Como seu representante, é obrigado a agir de acordo com a racionalidade do capital. E esta é a contradição em processo, no sentido de que tende a reduzir ao mínimo o número de trabalhadores empregado, para poder aumentar a exploração, isto é: extrair uma massa maior de mais-valia. Noutras palavras, para fazer o trabalhador gerar uma quantidade maior de mais-valor, o capital precisa elevar produtividade do trabalho, e só pode fazê-lo introduzindo tecnologias poupadora de mão-de-obra. Por essa razão, a partir de determinada fase do desenvolvimento do capitalismo, o crescimento econômico se faz acompanhar por um aumento absoluto do desemprego.

Mas, qual é mesmo a natureza da atual crise?
2.2. A CRISE DENTRO DA CRISE

Com o fim da segunda guerra mundial, abre‑se um período de expansão e prosperidade econômica em quase todo o mundo capitalista. As economias dos assim chamados países centrais ou industrializados entram num longo ciclo de crescimento, sustentado por uma produtividade crescente, que possibilitou ganhos reais de salários, concomitantemente com aumento dos lucros. Essa congruência entre salário e lucro permitiu ao sistema gozar de relativa estabilidade econômica e de certa harmonia social.

É neste contexto de estabilidade econômica e de pleno emprego que foram organizados e consolidados os mecanismos para a criação dos programas públicos de geração de emprego e renda, de maneira sistêmica, organicamente articulados com um conjunto de políticas macroeconômicas, comprometidas com o crescimento econômico.

Esse ciclo virtuoso de crescimento, com desenvolvimento, teve vida breve. O sistema capitalista global

entrou num período de crise na primeira metade da década de 1970; (...) esse período de crise será de longa duração , não estando a vista o seu fim; (...) suas características são uma taxa mais lenta de acumulação de capital (o que significa, como causa e como efeito, uma taxa de lucro relativamente baixa), desemprego crescente e inflação contínua a taxas muita acima daquelas dos 25 anos anteriores. As flutuações econômicas do tipo conhecido no ciclo econômico continuam durante esse período de estagnação (como ocorreu, por exemplo, durante a estagnação na década de 1930), e choques adicionais e perturbações do sistema (crise dentro da crise) não só são possíveis, mas inevitáveis (Harry Magdoff & Paul M. Sweezy. A crise do capitalismo americano. RJ: Zahar Editores, 1982; p. 81).

Crise dentro da crise! Como isso é possível? Por mais paradoxal que pareça, a crise dentro da crise nada mais é do que o modo como o capitalismo se desenvolve. Como assim? Seu desenvolvimento esbarra constantemente em barreiras criadas pelo próprio capital, uma vez que a produção de coisas úteis para humanidade só é levada a cabo na medida em que se mostre lucrativa para o capital. Se o valor de uso a ser produzido não pode ser realizado como valor de troca, como mercadoria disposta à venda, ele não será objeto de produção e, assim, não poderá satisfazer a nenhuma necessidade humana, por mais importante e necessária que seja. É nesse sentido que Marx afirma que o capital é a sua própria barreira. Sua fome voraz por mais-valia

procura constantemente superar as barreiras que lhes são imanentes, mas só as supera por meios que lhe antepõem novamente essas barreiras e em escala mais poderosa (Idem, Ibidem., p. 180).

Daí a razão da crise de 1929. O capital, livre de regulações legais, criou uma massa de capital-mercadoria bem maior do que o tamanho do estômago do mercado; seu impulso desmesurado, para gerar mais-valia, esbarrou, assim, com sua capacidade de valorização. Para superar essa barreira, a burguesia foi obrigada, pela luta de classes, a aceitar a intervenção do Estado, que se tornou, desde então, estruturalmente imprescindível para a reprodução do capital e da força de trabalho. Mas, essa mesma intervenção, a partir de meados da década de 1970, se transformou numa nova barreira para a acumulação do capital. Para superá-la, os donos do capital lançaram mão dos seguintes meios:

(1) liberalização das finanças, do comércio e do investimento. Assim, o capital destruiu todas as relações políticas surgidas com a crise de 1929; todas as cadeia impostas pela democracia liberal-social do pós-guerra;
(2) privatização das estatais, de modo a ampliar mercados para o capital;
(3) criação, numa escala sem precedente, de formas artificiais de crédito para as empresas, consumo e, sobretudo, créditos hipotecários sem limites. Na verdade, trata-se da criação do que Marx chama de capital fictício, cujo volume desregrado detonou o estopim da crise, que se arrasta desde meados da década de 1070;
(4) Incorporação ao mercado capitalistas de novas economias emergentes, tais como a Índia, China e Rússia.

Mas, esses meios que permitiram o capital prolongar o ciclo de crescimento econômico do pós-guerra, ainda que com baixas taxas de crescimento econômico e com crescimento do desemprego e da inflação; esses mesmos meios transformaram-se, hoje, em novas barreiras para a expansão do capital. O feitiço virou-se contra o próprio feiticeiro, isto é, aqueles meios, utilizados pelo capital para superar as barreiras da acumulação, voltaram contra o próprio capital, desta feita, numa escala mais poderosa.
Eis aí, portanto, a natureza da atual crise. Seu aspecto mais visível, a falência de grandes bancos e a quebradeira das bolsas, é apenas a ponta de um imenso iceberg, que se derrete a cada flutuação econômica. Certamente, o capital deverá superar as novas barreiras criadas por ele mesmo. Mas o que daí vai surgir não traz muita esperança para a classe trabalhadora e os deserdados do consumo. O capitalismo há muito já cumpriu a sua missão civilizadora; perdeu seu caráter progressista e se transformou num sistema predatório. Se o capital nasceu, como diz Marx, “escorrendo sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés”, hoje, mais do que nunca, sua fome por mais-trabalho criou uma multidão de farrapos humanos, só desejada pelas moscas-varejeiras e abutres que sobrevoam os monturos de lixos. Que o diga a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), cujas estatísticas registram um contingente de quase um bilhão de famintos, que amanhece e anoitece sem ter o que comer.
[1] Professor de Economia Política da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e da Universidade de Fortaleza (UNIFOR).

TRAQUINICES DE UM MENINO DA ROÇA

TRAQUINICES DE UM MENINO DA ROÇA
(CONTOS)

FORTALEZA-CEARÁ
VERÃO DE 2003

(I)
MEMÓRIAS FUTURAS DO SENHOR JACINTO TERRA

Nove horas da noite. Um gemido, seguido de um grito abafado, chegam à sala. Incomodado, meu pai sai do sono pesado em que estava mergulhado desde a boquinha da noite. Com má vontade se escancha na rede. Aguça os ouvidos e espera por novo chamado de socorro que não vem. Aborrecido vai até o quarto. Afasta o lençol, que fazia as vezes de porta, e espicha o pescoço como se quisesse apurar a vista para enxergar melhor o que se passava lá dentro.
As chamas amarelas da lamparina, dependurada na parede, eram fracas. Mal dissipavam a escuridão guardada pelas quatro paredes daquele quarto. Do umbral da porta de pano, improviso da necessidade, meu pai vê minha mãe deitada numa rede. Gotas de suor desciam por sua testa, a escorregar pela sua face pálida de dor, até se perderem por entre as dobras ensopadas do lençol que trazia preso entre os dentes.

- Isso é lá hora de sentir dor! Praguejou meu pai com aquele humor sertanejo de dias de lundu.
- Que é que está sentindo, Coque?
Era assim que ele chamava minha mãe... Coque, de Alacoque.
- Por que não falou mais cedo?
Teve o silêncio como resposta. Esperou um pouco mais. Nenhuma palavra.
Trombudo, retorna furioso para a sala. Passa uma das pernas por cima da rede. Escarranchado, segura a cabeça entre as mãos. Aperta-a com força, como se quisesse espremer de dentro dela pragas para jogá-las contra o azar que o incomodava naquela hora da noite.
O desconforto da situação deixou meu pai furioso. Continuou a praguejar baixinho, com medo de que minha mãe pudesse ouvi-lo. Ele sabia que ela não o incomodaria por pouca coisa. Mulher de fibra, afeita à dureza da vida sertaneja, só pediria ajuda na última hora. A dor que sentira, quando ainda estava à beira do fogão, não a assustou. Uma dorzinha de nada lá ia impedi-la de fazer o jantar do seu marido! Mulher cumpridora de suas obrigações, não arreda o pé de seus afazeres por qualquer besteira. Engoliu a dor. Serviu o jantar, lavou os pratos e foi-se deitar, esperançosa de que logo tudo ia passar.
Espera vã. As dores aumentaram de intensidade; iam e vinham como maior freqüência. Coitada de minha mãe! Passou a noite em claro.
Meu pai já havia caído novamente no sono, quando foi de novo acordado com os gemidos de sua mulher. Dessa vez, mais altos. Diabos! Parece que não tinha jeito, não. Ele não iria conseguir dormir naquela noite. O melhor a fazer seria tomar providências para ajudá-la.
E foi o que fez.
Sentou-se escanchado na rede. Segurando-a com as duas mãos, com um supetão, puxou-a contra o peito para poder levantar-se.
De pé, ainda com a rede entre as pernas, tateia com os pés o chão de barro batido à procura de suas currulepes. Encontra-as e calça-as. Pega uma corda de laçar e se dirige para a roça, onde o cavalo e o jumento de botar água comiam tocos de sabugos com palha de milho.
Era um pequeno cercado, pegado com os fundos da casa.
Com a corda numa mão e uma cuia de milho na outra, meu pai se aproxima do cavalo. Chama-o pelo nome, balançando o milho que trazia na cuia. Acostumado a comer ração, o animal não resiste ao chamado pavloviano do seu dono. Sem oferecer resistência, se deixa laçar e ser conduzido até o alpendre da casa.
O alpendre não era lá grande coisa. Parecia mais uma latada. Qualquer pessoa de estatura mediana podia alcançar com a mão o frechal. Era aí onde meu pai guardava algumas utilidades. Entre as telhas e os caibros, ele enfiava as foices e roçadeiras e outros pequenos instrumentos de trabalho. Nunca faltava um bom rolo de sebo de carneiro capado. De mil e uma utilidades, o sebo quente era bom para curar braços e pernas desmentidas, desconjuntadas. Servia também para amaciar cordas de relho, arreios e outras tantas coisas.
Era uma casa de taipa. Tinha o teto acaçapado. O piso era negro, de terra batida; cheio de buracos. As paredes eram negras, rebocadas com barro cru, rachado pelo calor do sol.
Os cômodos eram contados. Nada além do necessário. Duas salas, um quarto de dormir, uma cozinha e uma despensa.
Duas portas de madeira de cedro fornido faziam a comunicação entre a sala principal e o alpendre. Eram portas divididas ao meio. A parte de cima, sempre aberta, parecia mais uma janela. A parte de baixo estava todo o tempo fechada, e com a tramela passada, para impedir que a miuçalha invadisse a casa.
Um corredor estreito, com o piso cheio de buracos, ligava a sala principal à sala de jantar. Do lado esquerdo de quem entrava pelo corredor adentro tinha um quarto escuro, com uma janela localizada bem perto do telhado. Era de lá que vinham os gemidos de minha mãe.
Com a sala de jantar avizinhavam-se a cozinha e a despensa.
A cozinha era pequena. Um jirau fazia as vezes de uma pia de lavar louça. Entre uma refeição e outra, enormes pratos de barros descansavam emborcados, arrodeados de panelas de barro de fundo encardido de tanto levar fumaça.
O fogão de lenha permanecia todo o tempo aceso. O bule de café, sempre à espera de visitas, jamais saía da beira do fogo. Vez por outra, uma labareda, atiçada por um sopro de bochecha ou pelo vento do abanador, lambia suas laterais. Qualquer hora do dia ou da noite, nunca faltava um cafezinho quente.
A despensa era muito escura. Ao fundo, se levantava um paiol de milho que ia até perto do teto. Pegado a uma das paredes laterais, ficavam enormes tubos cheios de feijão, entupidos até a boca. Na parede oposta, sobre um grande banco de aroeira maciça, descansavam sacos de estopa cheios de rapadura preta, arroz, farinha e açúcar.
Ao redor de toda a casa, um enorme terreiro a separava do monturo, onde ficavam o curral das vacas, chiqueiro das cabras e ovelhas e o roçado do cavalo e do jumento de botar água . No meio do terreiro, tinha um mourão de aroeira, fincado firmemente no chão, que servia para amarrar os animais mansos e brabos.
Era assim a casa em que naquela noite minha mãe gemia de dor.
Do alpendre, meu pai podia ouvir a sua respiração ofegante.
Apressa as providências.
Com a sela numa mão e a esteira na outra, meu pai se aproxima do cavalo, que se entretinha fuçando os últimos caroços de milho que haviam sobrado no fundo da cuia. Joga a sela no lombo do animal, puxando-a até perto da garupa. Em seguida, pega o rabo do cavalo. Arruma-o na forma de cacho, passando-o pela laçada do rabicho, como assim fazem a mulheres ao amarrar os cabelos atrás da nuca. Depois afivela as cilhas e, por último, põe as rédeas.
Tudo pronto!
Com passadas largas, meu pai vence o alpendre, atravessa a sala e emboca corredor a dentro. Chega ao quarto onde estava minha mãe e da porta bodeja:

- Estou indo buscar a cumade Medalha, Coque. Quem sabe se ela não dá um jeito nessa dor. As meizinhas dela são milagrosas; se duvidar, cura até quem foi desenganado pelos médicos. Tente se acalmar. Vou num pé e volto noutro.

Ao passar de volta pelo alpendre, pega o chicote de couro cru e o pendura no pulso. Monta e sai em disparada.
Meia hora depois chegava ao seu destino.

- Boa de casa!

Passaram-se alguns minutos, até que uma voz responde lá de dentro:

- Boa de fora! É o cumpade Fuloro?

Era assim que as pessoas mais íntimas chamavam meu pai. As mais letradas dispensavam a vogal u, enrolavam um pouco a língua e o chamavam de Floro; abreviação carinhosa do seu verdadeiro nome: Florentino.

- Sim, cumade, sou eu, Floro.
- Numa hora dessas, cumpade! Que aconteceu?
- Sei lá, cumade. De uma hora pra outra a mulher deu pra gemer. Me disse que estava sentindo uma dor aguda que ia do pé do cangote até o mucumbu. Acho que Coque tá ficando doida. Sabe o que ela me disse, cumade? - Que a dor corria o espinhaço todo, de cima a baixo, fazendo ziguezague como um relâmpago em noite de tempestade. Dá pra acreditar numa coisa dessa?
- Valha-me Deus, cumpade! Espere um pouco. É só o tempo d'eu me arrumar.

Não demorou muito para o vulto de Dona Medalha aparecer à porta.

- Tô pronta, cumpade. Vixe Maria, meu cumpade! Tá um breu só, num tá não? Não é melhor fazer uns fachos?
- Tem razão, cumade!

Meu pai desapeia do cavalo e vai até um monte de lenha. Escolhe dois pedaços fornidos de sabiá ainda maduros. Esfacheia uma das suas extremidades. Em seguida, aproxima um deles da lamparina, até pegar fogo. Guarda o outro, entregando o que estava aceso a Dª. Medalha.

- Pé na estrada, cumade! É um bom pedaço até lá em casa... É quase uma légua de caminhada! Além disso, cumade, choveu muito. O caminho deve estar muito liso. Cuidado para não escorregar ou meter um pé num buraco.
- Se preocupe não, cumpade! Tô acostumada a andar por essas veredas. Conheço como a palma da minha mão. Vum bora.
À frente do cavalo, Dona Medalha caminhava com pressa. O caminho estreito, cheio de grotas e buracos não os deixava andar lado a lado. O jeito era seguir um depois do outro, enfileirados como patinhos atrás da mãe.
Quando o último facho chegava ao fim, Dona Medalha e meu pai botavam o pé no terreiro de casa.
Do aceiro Dona Medalha anuncia sua chegada. Grita:

- Cheguei, cumade Alacoque!

Apressa os passos. Esbaforida, chega ao quarto de minha mãe. De tanta dor, seu rosto pálido lembrava uma flor de algodão. De imediato diagnosticou a dor de minha mãe. Com ares de dona da situação, volta-se para meu pai e grita:

- Põe a chaleira d'água no fogo, cumpade. Escalde a bacia grande bem escaldada. Vou precisar dela.

Eram os preparativos para esperar a minha chegada.

Cheguei às quatro horas da manhã. Demorei um bocado. Desde a boquinha da noite que eu anunciava a minha visita. Minha mãe foi quem não levou muito a sério os beliscões que sentia no espinhaço de vez em quando.
Quase morri por falta de ar. A desgraçada da Dona Medalha puxava-me pela cabeça, com os dois polegares pressionado as minhas narinas. Só consegui respirar direito, quando ela me enrolou nos cueiros. Foi, então, que senti pela primeira vez um cheiro de terra molhada; cheiro de prenúncio de inverno batendo à porta dos sertanejos. Não me contive e gritei para mim mesmo:

-Ah, agora sim! Já sinto melhor o cheiro da terra molhada.

Mal terminei de concluir meus pensamentos, ouvi os berros de alegria da comadre Medalha:

- É menino, cumade! Como ele vai se chamar?

- Jacinto, Jacinto Terra. É o sobrenome do meu pai, cumade. Tenho fé em Deus que ele vai ser um grande homem. Vai ser a salvação da família! Vai pra cidade estudar pra virar doutô e tirar os irmãos da roça. Isso aqui é lá vida de gente!

A conversa de minha mãe com sua comadre deixou-me preocupado. “Será que ela estava certa? Seria minha sina ir embora do sertão, virar doutor e voltar para tirar meus irmãos da roça?” pensava enquanto ela continuava a prosear. Resolvi, então, dar uma rápida vasculhada no meu futuro. Ela estava certa, sim. Mas não poderia adivinhar que tinha muitas pedras no caminho. Comecei a chorar, não sei se por causa do corte do meu umbigo, que Dona Medalha acabara de jogar fora, ou se pelo que me esperava. Na dúvida, resolvi parar de pensar no futuro. Dói menos...


(II)
ESTRAGOS TEOLÓGICOS DE UM PEIDO


Ninguém nasce crente nem tampouco ateu. Nenhuma pessoa vem ao mundo com um espelho, muito menos como um filósofo fichtiano: eu sou eu. O que cada um é, faz, ou deixa de fazer, depende do meio social em que foi criado. Se nasce no seio de uma família religiosa, é quase certo que será um deles. Mas, se foi educado para acreditar que todos são feitos unicamente de matéria, sua propensão é a de imaginar que a vida nasce da terra; não vem dos céus – não resulta da criação de Deus.
Essa determinação social nunca é absoluta. Um cristão fervoroso pode vir a se tornar um ateu intolerante, ou vice-versa. Conheci, nos meus tempos de faculdade, muitos marxistas aprendizes de manual, que afirmavam que Deus não existe. Aprenderam com o catecismo marxista que o homem é feito de matéria, não produzido pelo sopro divino. Tempos depois, vi esses mesmos ateus de outrora de terço nas mãos. Desiludiram-se com as lições do mestre e, agora, pedem desculpas pelo próprio passado. “Acreditávamos no comunismo, mas agora ...”. Conheci também cristãos, que nunca haviam duvidado da existência de Deus, terminarem a vida perguntando se realmente eram descendentes de Adão e Eva.
Comigo, as coisas aconteceram de modo muito diferente. Meus pais eram de uma família temente a Deus. Todas as noites recitavam o terço, pedindo a Sua proteção e alguns pequenos favores: bom inverno e muita fartura. Sem dúvida, uma troca justa. Afinal, se Deus precisa ser louvado, é mais do que justo recompensar aqueles que o fazem.
Assim, fui educado. Cheguei até mesmo a fazer planos para estudar em algum seminário e virar padre. Pensava que assim poderia intermediar, melhor, os pedidos dos meus pais junto ao Pai Celestial.
Felizmente, Deus decidiu que não me queria como seu representante na terra. Para cumprir seu desígnio, fez meus pais me mandarem passar uma temporada longe de casa. Começava, aí, a minha conversão em ateu. Foi até bom porque pude economizar caminho e tempo: não precisei esperar pela idade apropriada para ler as teorias materialistas, como assim fizeram meus amigos marxistas arrependidos. Aprendi tudo sozinho; contei tãosomente com os arrimos da experiência.
É disto que trata essa pequena história, que começa quando eu estava entrando na idade buliçosa da puberdade. Época em que meus pais me mandaram passar uma temporada com a minha avó materna; lá pelas bandas da chapada do Araripe. Era para desasnar, pois até então não sabia fazer um ó com uma quenga.
Viajei com a minha mãe para Barbalha, município onde ficava a casa em que eu ia passar quase dois anos de minha vida. Fomos de trem até a cidade de Crato. Daí pegamos um ônibus de linha até o povoado de Santa Cruz. Pernoitamos na casa de um conhecido, e no dia seguinte chispamos para o sítio da minha de avó. Era uma casinha de taipa, coberta com folhas de palmeiras, cercada de plantações de andu.
Foi aí que conheci os meus primos por parte da minha mãe. Até então, só conhecia os do sertão, os da parte de pai...
Tempos de traquinices ... Tempos de descrenças.
... Minha avó morava com uma moça velha, de nome Vicença. Devia ter entre quarenta a cinqüenta anos de idade. Vitalina assanhada. Todas as tardes ficava horas e horas a se balançar em sua cadeira de balanço, fingindo que estava dormindo. Levantava a saia até a altura dos joelhos, e abria as pernas. Era para a meninada ficar espiando.
Um dia resolvi bulir com ela. Chamei os meus primos e fomos olhar o fingimento da Vicença. Toquei no braço da cadeira e balancei para ver se ela acordava do seu sono hipócrita. Nada! Desci a mão até suas pernas. Nada de novo. Ela continuava de boca aberta, se fazendo que estava dormindo. Resolvi então soltar as rédeas da minha afoiteza. Peguei a barra de sua saia e levantei até perto da sua cintura. Bem devagar, para que ela pensasse que acreditávamos em sua encenação safada. O fundo de suas calçolas, amarelas de encardida, apareceu. Apalpei novamente as suas pernas e deixei minha mão escorregar por entre suas coxas. A descarada continuava fingindo.
Fiquei mais afoito. Repeti o movimento de carinho. Desta feita deixei que minha mão tocasse em sua xoxota. A fingida abriu as pernas ainda mais. Foi então que tive a certeza de que ela queria levar adiante aquela safadeza. Não esperei mais: enfiei o dedo maior de todos em sua vagina chorosa e ardente de desejos reprimidos. Massageei o seu ponto fraco, até sentir um líquido quente descendo por entre as suas pernas.
A esculhambação chegou ao fim quando a fingida se mexeu na cadeira. Não sei se para continuar o gozo, ou para pedir que eu parasse. Vagarosamente, tirei o dedo de dentro de sua vagina e abaixei a sua saia. Foi então que percebi alguns pigmentos brancos na cabeça do meu dedo. Levei-o ao nariz. Senti engulhos. Aquele bicho tinha um cheiro horrível; de bacalhau ardido.
Saí dali correndo, direto para a beira do rio para lavar o dedo com sabão e areia. Antes, queria que os meus primos experimentassem os efeitos da nossa estripulia. Passei o dedo em suas ventas. Ficaram todos engulhados com o cheiro.
-Eco! Eco! Como é que os homens gostam dessa coisa nojenta?
Nunca mais bulimos com a Vicença. Coitada! Jamais iria gozar de novo na vida. Foi a primeira e última vez que pobre teve prazer.
No meio dessa perdição toda só se salvava a minha avó. Aos meus olhos, ela era uma verdadeira santa. Vivia rezando. Ao redor de sua cintura, um enorme rosário adornava suas vestes. Seus vestidos eram quase todos iguais: brancos com bolas azuis, com dois grandes bolsos nas laterais.
Nunca vi minha avó comendo feijão com arroz. Era sempre o mesmo prato: papa; de manhã e à tardinha. Sua refeições eram feitas na cozinha. Aí, ela pegava o seu prato de papa, e o esvaziava pelas beiradas. Quando terminava, levanta-se e rezava um terço inteiro. Nunca vi uma pessoa rezar tanto. Só podia ser santa. Era assim que eu a via.
Guardei essa imagem de minha avó até o fatídico dia em que ela mostrou sua fraqueza humana. Aconteceu na refeição da tarde. Depois de comer o seu manjar do céu, levantou-se e foi para os fundos da casa, como fazia de costume. Neste dia resolvi segui-la. De longe, para que ela não percebesse. Parei a uma certa distância. Vi quando ela meteu a mão no bolso para pegar o seu rosário. Parada ali, de frente para o pôr do sol, parecia uma santa. Os raios do sol, envolvendo todo o seu corpo, desenhavam uma silhueta dourada, parecida com as que eu via nos retratos dos santos, que ela tinha pendurados nas paredes de sua casa. Corri para abraçá-la. Quando estirei os meus braços para abarcar a sua cintura, ouvi um som estrondoso saindo da sua bunda. Minha avó acabava de peidar.
Minha descoberta acidental me deixou estatelado. Por alguns segundo, um turbilhão de coisas passou pela minha mente. Me lembrei das safadezas da Vicença, dos peidos do meu pai se balançando na rede do alpendre e escarrando no chão, dos arrotos e dos peidos dos meus irmãos. Todo mundo peidava. Até os bichos. Minha avó não era diferente. Ela também peidava.
Quando me refiz do susto, dei meia volta e entrei em casa. Jurei que nunca mais iria acreditar em santos. Muito menos na força da reza. Nunca tinha visto ninguém rezar peidando. Decidi que o melhor era mesmo não acreditar em nada do que nos ensinava a religião. Nem mesmo em Deus.

(III)
BICHO DO MATO

Aos dez anos de idade fui estudar na cidade, logo na capital do Estado. Até então nunca tinha saído do sertão. A única cidade que conhecia era um pequeno povoado, que cabia dentro dos olhos de qualquer observador. Fui morar com uma família amiga dos meus pais, que nunca tinha visto na vida. Mas isso não importava muito. Afinal, vim ao mundo para virar doutor, fazer fortuna, cuidar dos meus irmãos e tirar meus pais daquela vida miserável da roça.
Ao chegar na cidade grande, fiquei atordoado. Sentia-me igual a um bicho acuado. Luzes acesas por toda parte. Um ruge-ruge de gente de dar até agonia. Tudo era muito esquisito. As pessoas falavam diferente da minha gente. Eram cheias de finuras. Comportavam-se de um modo muito estranho. Comiam de garfo e faca. Andavam arrumadas, de sapatos ... bem vestidas. As ruas, entupidas de carros, pareciam mais formigueiros. Nada do meu sertão. Não tinha cavalo nem rios para tomar banho. Não tinha coalhada adoçada com raspa de rapadura. Não tinha nada das coisas com que eu estava acostumado e de que gostava.
Era outro mundo. Eu vivia assustado. Tinha medo até dos meninos mofinos, magricelas, aqueles que eu podia fazer lamber o chão apenas com uma tapa no pé do ouvido. Vivia com o coração no pé da goela. Tinha medo de tudo: dos meninos, dos carros, das pessoas... de fazer as coisas erradas, de me perder e não saber mais voltar pra casa. Às vezes ficava imaginando que se uma coisa dessas acontecesse, eu nunca mais iria ver de novo o meu sertão. Só de pensar, um calafrio percorria meu espinhaço do cangote até o mucumbu. Era um tremelique de ficar com as pernas bambas
Foi um tempo de muita dor. Comparando-me com os meninos da cidade, eu me sentia inferior; como um bicho assustado, preso numa arapuca. As brincadeiras eram pesadas. Mangavam das minhas roupas, das minhas alpercatas, do meu jeito banzeiro de andar.
- Não tem nada, não. Um dia ainda pego um filho de uma égua desses lá no meu sertão. Quero ver como ele vai se arranjar em cima de um cavalo arisco. Com certeza deixaria seu couro espichado nos espinhos do cipoal de sabiá. Aí, queria ver se ainda se atreveria a me chamar de pangaré?
Pensamentos mais bobos esses! Pelo menos, serviam-me de arrimo contra os vexames que sofria na cidade grande.
O mais humilhante deles aconteceu no dia em que fui brincar de bola com os meninos da rua em que morávamos. Fomos jogar num campo de areia pesada. As traves eram formadas por dois grandes pés de benjamim. Como sempre, eu deveria ir para o gol. Não precisa nem dizer o porquê! No meio da partida, um menino do time adversário passa por todo mundo e avança em minha direção. Quanto mais se aproximava, maior ia ficando. A cada passada que dava, podia ouvir o barulho de suas bolotas balançando dentro do seu escroto. Parecia mais o cavalo marchador do meu pai. Adorava vê-lo passeando em sua montaria, todo faceiro, pelos terreiros da casa. Todas às tardinhas, costumava montá-lo. Dizia que era para treiná-lo. Era uma verdadeira orquestração de sons e cores. Os cascos batendo contra os pedregulhos arrancavam faíscas do chão. Dos buracos das ventas saía um nuvem de fumaça quente. A cada baforada, ouvia-se o sopro de suas narinas se abrindo e se fechando. De suas virilhas, vinha um som oco de seus testículos batendo contra as paredes internas de suas coxas, ploc, ploc, ploc...
Passado aquele lampejo de memória, voltei à realidade. Lá vinha o menino, carregando a bola em minha direção. Suspendia-a do chão areoso, como se os seus pés fossem uma pá. Um medo enorme foi tomando conta de mim, a ponto de me deixar praticamente paralisado no meio do gol. Foi então que ouvi a gritaria dos meninos: "sai pangaré, sai, sai..." Não esperei duas vezes: corri para fora do campo.
Foi a minha desgraça:

- Pangaré, seu filho da puta, é pra fechar o gol, não pra deixar o gol. Parece que é burro!
Com um sorriso amarelo e morrendo de vergonha, voltei pro campo; peguei a bola e a devolvi para os meus companheiros de time. Só então compreendi o uso que faziam daquela palavra. O sentido era outro: atirar-se aos pés do atacante, fechar o gol como se diz na gíria do futebol.
A duras penas fui aprendendo a viver na cidade. A família com quem eu morava não tinha muitas posses. Para remediar as coisas, fui ser coroinha. Roubei muita hóstia. Com medo de castigo, tinha o cuidado de pegar somente aquelas que ainda não tinham sido benzidas. Mas eu não só safava o sangue e o corpo de Cristo. Surrupiava também uma parte das esmolas que eu arrecadava nas missas e nas quermesses. A fome faz cada uma... Por isso, pensava: o Filho do Homem lá de cima não iria se importar com esses pequenos furtos. Se Ele realmente existe, não iria se incomodar com isso. Coisas bem piores do que essa fiz nos tempos em que fui morar com minha santa avó. Nem por isso fui castigado. Como poderia sê-lo se a mãe de minha mãe rezava peidando?

(IV)
FRUSTRAÇÃO

Isidoro é um personagem do romance Caetés, de Graciliano Ramos. Sujeito ensimesmado, gabava-se de ter a gramática na ponta da língua. Sua profissão de jornalista lhe exigia cuidado com o idioma. Um dia, quando redigia uma notícia sobre os “sublinhados dotes” espirituais da senhorita Josefa Teixeira, filha de uma abastado comerciante da cidade, Vitorino Teixeira, assim escrevia.

“Deu-nos o prazer da sua encantadora visita a senhorita Josefa Teixeira, dileta filha do abastado comerciante e nosso particular amigo Vitorino Teixeira, que nos encantou em deliciosa palestra com os sublinhados dotes do seu espírito”.

Cheio de suficiência, Isidoro atirou ao ouvido de João Valério sua obra prima, com um pedido de resposta:

“- Este sublinhados aqui não está mau, hem?”

Coitado! Se soubesse o que o aguardava, não teria se deixado levar pela embriaguez momentânea de sua vaidade. As alfinetadas que recebeu de João Valério deixaram-no desapontado e perplexo: descobriu que não sabia escrever. E não sabia mesmo. Sem ser direto, talvez para não acabar de uma vez só com o delírio literário de Isidoro, e, assim, causar-lhe uma profunda depressão cognitiva, João Valério respondeu:

“- Está ótimo. Está igual ao Camões. Mas como você fez, parece que a conversa foi com o Vitorino.

“- Ora essa! Realmente, exclamou Isidoro desapontado. Desmanchar tudo!
“- Não é preciso, sussurrou Padre Atanásio, que se acercara, lera o período. Deite um ponto no Vitorino Teixeira, corte o que e meta depois A visitante. Pronto. A visitante sem virgula, é melhor sem vírgula.

“Louvei sinceramente a inteligência de Padre Atanásio e aconselhei também:

“- É bom suprimir o encantou, que já há uma encantadora atrás. Ponha cativou, fica esplendido. E a senhorita, risque a senhorita para não rimar com visita. Escreva D. Josefa Teixeira, como nós chamamos. Deixe a senhorita para a outra”.

Que o padre Atanásio é muito inteligente não há como negar, mas, o João Valério, este, sim, é um verdadeiro artesão da palavra. Lapidou o texto do Isidoro. Retirou as embromações lingüísticas, as lorotas que só servem de enchimentos, e deixou o absolutamente necessário. O texto ganhou leveza e simplicidade. Ficou bonito e gostoso de se ler.

Ah, quem me dera ser um João Valério da vida! Mas, são tão poucos. Hoje, quase não mais se encontram escritores como ele. Imitá-lo é quase impossível; mas, não podemos deixar de tentar. Se não conseguirmos, resta o consolo de ler sua obra e com ela aprender o que gramática nenhuma ensina.

Por falar nisso, lembrei-me de rever a introdução que abre este texto. Senti vergonha. Não tinha percebido que cometera coisas semelhantes as que praticara Isidoro. Como ele, não encontrei erros gramaticais, o que me serviu de consolo. Mas, o estilo rimado do texto me deixou bastante desapontado, frustrado, para não dizer com uma ponta de inveja de João Valério. O primeiro parágrafo foi feito de uma rima só: exigia, notícia, dia, redigia e escrevia.

Que coisa horrível! Que estilo estropiado! Será que não tem conserto? Decerto que tem. Mas, como não posso contar com a ajuda direta de João Valério, resta-me valer de suas lições, para tentar reescrever o texto; assim:

Isidoro é um personagem do romance Caetés, de Graciliano Ramos, que trabalhava no jornal A Semana. Sujeito ensimesmado, vivia a gabar-se de ter a gramática na ponta da língua. Um dia, ao redigir uma notícia sobre os dotes espirituais da senhorita Josefa Teixeira, filha de uma abastado comerciante da cidade, escreveu...
E agora, Graciliano, perdão, João Valério, melhorou? Pelo menos desapareceu o excesso de rima com os “ia”, que deixavam o primeiro parágrafo uma cantiga de grilo.

17/06/2008

MARX NO SÉCULO XXI: INTRODUÇÃO

FRANCISCO TEIXEIRA & CELSO FREDERICO

MARX NO SÉCULO XXI

SETEMBRO-2007

SUMÁRIO
PREFÁCIO
COOPERAÇÃO COMPLEXA E APARÊNCIA “PÓS-MODERNA”
___________________________________________
MARX, ONTEM E HOJE
__________________________________FRANCISCO JOSÉ SOARES TEIXERIA

INTRODUÇÃO: O CAPITALISMO AINDA É AQUELE DE O CAPITAL?

1. FIM DA UTOPIA DA SOCIEDADE DO TRABALHO
1.1. INTRODUÇÃO
1.2. AS IDÉIAS CENTRAIS DOS TEÓRICOS DO FIM DA SOCIEDADE DO TRABALHO
(a) ANDRÉ GORZ E A PERDA DA MATERIALIDADE DO TRABALHO
(b) CLAUS OFFE: OS SERVIÇOS COMO UM CORPO ESTRANHO DENTRO DO UNIVERSO DO TRABALHO
(c) OFFE: DE MÃOS DADAS COM GORZ
(d) HABERMAS E O FIM DA UTOPIA DO TRABALHO
1.3. UM DIÁLOGO CRÍTICO COM OS TEORICOS DO FIM DA SOCIEDADE DO TRABALHO
(a) COM ANDRÉ GORZ
(b) COM OFFE
(c) COM HABERMAS

2. MARX E OS NOVOS FENÔMENOS DO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
2.1. ACERTO DE IDÉIAS
2.2. TRANSFORMAÇÃO DO PROCESSO DE TRABALHO EM PROCESSO DE PRODUÇÃO E AS NOVAS FORMAS DE PRODUÇÃO DE MAIS-VALIA
(a) O CAPITAL E SUAS FORMAS DE PRODUÇÃO DE MERCAADORIAS
(b) COOPERAÇÃO COMPLEXA: FORMA LIMITE DO CAPITAL

3. DESCONSTRUÇÃO DA LUTA DE CLASSES, CONSTRUÇÃO DA OBEDIÊNCIA
3.1. O MUNDO PROMETIDO DA COOPERAÇÃO COMPLEXA
3.2. CONSTRUÇÃO DA OBEDIÊNCIA
3.3. FORMAS HISTÓRICAS DE EXISTÊNCIA DA COOPERAÇÃO COMPLEXA
(a) SOCIEDADE DE FÁBRICAS DE CONSENSOS
(b) SOCIEDADE DE PRODUTORES INDEPENDENTES
(c) SOCIEDADE DE FÁBRICAS SEM MUROS


___________________________________________
MARX NA PÓS-MODERNIDADE
__________________________________
CELSO FREDERICO

INTRODUÇÃO

I – Produção, consumo, publicidade

II – Proletarização geral

III – O marxismo depois de Marx
INTRODUÇÃO
O CAPITALISMO AINDA É AQUELE DE O CAPITAL?

Francisco José Soares Teixeira


Decerto que não. Ainda que pareça uma resposta intempestiva, para muitos que têm pressa em negar Marx, “decerto que não” é uma assertiva que nada tem de apressada, pois entendem que o capitalismo contemporâneo não traz mais nenhum vestígio daquele que fora exposto nas páginas de O Capital. “Que importa!”, diriam os que acreditam que Marx já dissera tudo que tinha de ser dito. É irrelevante, acrescentariam, discutir se o mundo mudou ou não. Se este continua capitalista, nada, de essencial, foi alterado: sua fome voraz por mais-trabalho é bem maior do que nunca. Duas posições radicalmente opostas que, no entanto, se originam de uma mesma idéia: a desnecessidade da reflexão. Ora, se o saber imediato houvesse de ser critério de verdade, então, seria legitimo declarar como verdade toda e qualquer fantasmagoria[1], seria fazer da ciência uma conversa de mesa de bar. Até mesmo o fato de este autor estar aqui e agora diante deste computador, esta sua atividade imediata é mediada por toda uma história de vida e do contexto social em que ela se insere. Não há, portanto, conhecimento imediato. Todo saber imediato é produto e resultado do saber mediado[2]. Nesse sentido, não há respostas fáceis, prontas.
Entre esses dois extremos estende-se um deserto de controvérsias infindáveis, uma discussão que parece mais um debate “mau infinito”, que se repete, no mais das vezes, sem nada de novo acrescentar. Os defensores da ordem não se cansam de repetir a lengalenga de sempre: a imprescindibilidade do mercado, considerada como uma instituição natural que cresce e se afirma como a única forma possível de sociabilidade. A queda do muro de Berlim transformou-se na pedra de toque dessa verdade que se diz eterna. Os socialistas, acreditando não ser mais possível uma sociedade sem classes, apostam na possibilidade de dividir o poder político com a burguesia. Defendem, por isso, a tese de que Marx envelheceu, mas não morreu. Para eles, decretar a falência total das teorias de Marx seria o mesmo que fechar os olhos ao crescimento da pobreza e da miséria, à intensificação da exploração de classe, à concentração monopólica. Noutras palavras, seria o mesmo que jogar mais “lenha na fogueira” ideológica do neoliberalismo; legitimar as políticas de desmantelamento do Estado social.

Sem negar a importância daqueles que assim pensam, que acreditam que podem salvar Marx retirando de sua obra algumas teorias que sirvam aos seus propósitos políticos mais imediatos, há que se considerar que o pensamento de Marx é sistemático. Quando se desrespeita essa exigência epistemológica, geralmente, tem-se como resultado um Marx desfigurado, cujas implicações políticas terminam por desembocar numa práxis conformista, que se reduz a um pacifismo reformista, a piedosos e inofensivos desejos. Obviamente, essa exigência epistemológica não é meramente uma exigência epistêmica, como o leitor terá a oportunidade de constatar mais adiante. Para Marx, a crítica da economia política é, antes de tudo, crítica da totalidade, do sistema capitalista de produção. Sua crítica, por ser uma crítica revolucionária, por ser expressão teórica da luta de classes do proletariado, é uma crítica imanente da totalidade das relações capitalistas de produção. Neste sentido, o sistema de Marx nada tema ver com os “sistemas filosóficos”. Pelo contrário, suas exigências epistemológicas são, também, exigências práticas.
Poucos são os marxistas que se deram ao trabalho de atualizar a obra de Marx, notadamente O Capital. Lênin é um deles. Contra Hilferding, a quem acusa, juntamente com Kautsky, de tentar conciliar o marxismo com o oportunismo social-reformista do Partido Social-Democrata da Alemanha, empreende um trabalho de investigação, para demonstrar que as tendências de concentração do capitalismo tornaram-se realidade em seu tempo. Marx estava certo: o desenvolvimento da livre concorrência, ao gerar a concentração e centralização da produção, resultou no aparecimento dos monopólios, os quais inauguram uma nova fase do sistema, que ele denomina de “imperialismo, fase superior do capitalismo”.

Porque foi capaz de pensar o movimento da economia capitalista como uma totalidade, porque foi capaz de pensá-la do ponto de vista da reprodução do capital, Lênin pôde atualizar as propriedades essenciais do capitalismo em geral, investigadas e expostas por Marx em O Capital, cuja tendência de desenvolvimento resultou numa nova fase de acumulação do sistema: o imperialismo. Essa nova fase marca o inicio da virada, segundo Lênin, do antigo em um novo capitalismo, no qual o domínio do capital em geral, isto é, industrial, fora substituído pelo capital financeiro[3]. Daí sua exclamação oportuna: “o antigo capitalismo fez a sua época. O novo constitui uma transição”[4]. Duas formas distintas de acumulação? Decerto que sim. Mas, longe de representar uma ruptura do sistema, o imperialismo expressa o acirramento das contradições do capital. Que ele mesmo o diga:

o capitalismo só se transformou no imperialismo capitalista num dado momento, muito elevado, do seu desenvolvimento, quando certas características fundamentais do capitalismo começaram a transformar-se nos seus contrários, quando se formaram e se revelaram plenamente os traços de uma época de transição do capitalismo para um regime econômico e social superior. O que, sob o ponto de vista econômico, existe de essencial nesse processo é a substituição da livre concorrência capitalista pelos monopólios capitalistas[5].

É preciso, porém atentar para o fato de Lênin, assim como Marx, não é um intelectual de academia preocupado unicamente em elucidar questões teóricas. Suas pesquisas no campo da economia política estão intimamente imbricadas com a política. Na verdade, seus estudos de economia são realizados para informar as estratégias de luta pelo socialismo, que, na fase imperialista, mais do que nunca perdeu seu caráter nacional, para se transformar numa luta pela libertação da humanidade do domínio do capital. Nessa fase, o que está em jogo não é mais a luta contra a exploração das burguesias nacionais, mas, sim, contra a burguesia mundial, que partilhou o mundo entre seus pares, de tal sorte que, não havendo mais o que conquistar, resta apenas redistribuir entre eles o que já se encontra sob seu domínio[6]. Daí sua crítica ao oportunismo dos social-democratas, em especial a Kautsky e a Hilferdinging. Referindo-se ao primeiro deles, Lênin escreve:
certos autores burgueses (...) exprimiram a opinião de que os cartéis internacionais, uma das mais acentuadas expressões da internacionalização do capital, permitiram ter a esperança de que a paz há de reinar entre os povos em regime capitalista. Do ponto de vista teórico, esta opinião é inteiramente absurda; e do ponto de vista prático, é um sofisma e um meio de defesa desonesto, do pior oportunismo (...). Kautsky comete o mesmo erro. E, evidentemente, o que está em jogo não é a burguesia alemã, mas a burguesia mundial[7].

Ora, diz Lênin, quando o mundo já se encontra totalmente partilhado entre um punhado de grandes monopólios, é um erro, como assim cometeram os kautskistas, tentar atenuar esse fato
dizendo que ‘seria possível’, sem política colonial, ‘dispendiosa e perigosa’, procurar matérias-primas no mercado livre, e que seria ‘possível’ aumentar em proporções gigantescas a oferta de matérias-primas, graças a uma ‘simples’ melhoria nas condições da agricultura em geral. Estas declarações, porém, redundam na apologia do imperialismo, na sua idealização, pois silenciam a particularidade essencial do capitalismo contemporâneo: os monopólios. O mercaado livre cada vez mais se distancia no passado; os sindicatos e os trustes monopolistas limitam-no a cada dia que passa. E, a ‘simples’ melhoria das condições da agricultura reduz-se à melhoria da situação das massas, à alta dos salários e à diminuição dos lucros. Mas existirão, para lá da imaginação dos suaves reformistas, trustes capazes de se preocuparem com a situação das massas em vez de pensarem na conquistas de colônias[8]?

Sua crítica assume um tom cáustico, quando, mais adiante, assevera que,
se a luta contra a política dos trustes e dos bancos não atingir as suas bases econômicas, ela reduzir-se-á a um reformismo e a um pacifismo burguês, a piedosos e inofensivos desejos. Iludir as contradições existentes, esquecer as mais essenciais em vez de lhes desvendar toda a profundidade, eis ao que conduz a teoria de Kautsky que nada tem de comum com o marxismo[9].

Críticas ao vento! Os oportunistas social-democratas fizeram vista grossa às censuras de Lênin. Com seus discursos do tipo “dêem-nos 50,1% dos votos e realizaremos vossos objetivos”, ganharam a confiança da classe trabalhadora e conquistaram não poucas vitórias políticas e econômicas. Conseguiram transformar o voto censitário num direito universal; em muitos países europeus, reduziram a semana de trabalho de 72 para 35 horas; ampliaram o sistema de proteção social e, hoje, os inválidos e doentes contam com serviços de assistência médica e aposentadoria; criaram o seguro-desemprego; universalizaram a educação; além de outros direitos sociais e políticos.
Mas é preciso considerar o reverso da medalha. Não se pode esquecer que todas essas conquistas foram realizadas a um preço muito alto, cujas cifras estão registradas na história com números indeléveis de sangue e fogo. O balanço é de Mandel[10], para quem a social-democracia internacional, com honrosas exceções, justificou e facilitou a carnificina de dez milhões de seres humanos durante a Primeira Guerra Mundial, em nome de pretensas razões de defesa nacional. Os governos social-democratas, ou com a participação da social democracia, organizaram ou defenderam guerras na Indochina, Malásia, Indonésia e Argélia. Foram mais longe ainda. Defenderam práticas de torturas e limitaram as liberdades democráticas na Índia, Indonésia, Egito, Iraque e Singapura. Protegeram o regime do apartheid na África do Sul. Participaram da Guerra Fria, além de se tornarem cúmplices das políticas imperialistas. Em nome do grande capital, apoiaram e organizaram as políticas de austeridade monetárias e fiscais, que tiveram como conseqüência o desmantelamento do Estado social, que ajudaram a construir.
Os resultados dessa política oportunista não poderiam ter sido mais desastrosos. Mais de 15% da classe trabalhadora está desempregada - quase um bilhão de pessoas; metade da população do Planeta passa fome; 100 mil pessoas morrem de fome por dia[11]. A distância entre os países ricos e pobres cresceu assustadoramente. O consumo per capita de um francês, por exemplo, é da ordem de 5 vezes e meia superior ao de um egípcio; um alemão consome 17 vezes mais do que um indiano; um americano, 35 vezes mais do que um tanzaniano. Se no final da Segunda Guerra Mundial, a relação de consumo entre o Norte e o Sul era de 30 para 1, atualmente, é de 74 para 1, e não pára de crescer[12]. Se na época de Lênin já não havia mais “territórios sem donos”, hoje o capital está mais concentrado do que nunca. E como! O mundo tornou-se propriedade particular de meia dúzia de empresas. No ramo de supermercado, por exemplo, a Wal-Mart, considerada a maior empresa do mundo, tem seis mil fábricas produzindo para ela, das quais 80% estão na China. Na produção de sementes, a Monsanto controla 90% das sementes transgênicas do globo. As dez maiores empresas farmacêuticas e de produtos veterinários respondem por 59% do mercado mundial. Na área de biotecnologia, a concentração da produção é ainda maior: as dez maiores empresas são donas de 73% das vendas realizadas em todo o mundo. A Bayer, Syngenta, BASF, Dow, Monsanto, Dupont, Koor, Sumitomo, Nufarm e Arista, que exploram a produção e venda de agrotóxicos, juntas, concentram 84% das vendas globais[13].
A voracidade imperialista do capital tornou o mundo deveras abstrato, isto é, num enorme e gigantesco mercado sem fronteiras, onde tudo é mercadoria. Por mais cintilante e ofuscante que sejam as coisas, suas diferenças qualitativas acabam por desaparecer sob o signo dos seus preços; afinal, todas nada mais são do que valores de troca. Até mesmo a geração da vida tornou-se mercadoria negociada na bolsa de valores. Com efeito, protegidas pelo direito intelectual de propriedade, as grandes corporações são donas do mapeamento do DNA humano, das plantas e dos animais; podem fabricar vidas. As experiências mendelinas parecem brincadeiras de jardim da infância diante do poder avassalador das grandes corporações, que, atualmente, têm em suas mãos a capacidade de criar bebês desenhados e seres humanos superiores, todos ao gosto do consumidor.
O mundo todo virou um grande mercado, que opera segundo “leis eternas” e às quais todos estão acorrentados. Nele, tudo é tão igual, tão repetitivo, tão apressado, pois tudo parece se reduzir a momentos, que só duram enquanto um novo modelo de mercadoria entra no mercado, para logo ser substituído por outro, também, com data de vencimento marcada. Tudo e todos são apanhados e atirados ao redemoinho do mercado mundial, do qual não podem mais fugir, porque não há mais portas de entrada e saída; todos já nascem dentro dele, crescem nele e nele morrem. O mundo todo virou um grande supermercado.
Nesse contexto, os atuais militantes de esquerda perderam qualquer esperança de encontrar uma saída política. Diferentemente dos históricos da antiga social-democracia, que apostaram na possibilidade de construção de um novo mundo, os atuais afirmam o presente e julgam que já não podem mais transformá-lo. Não estão mais preocupados em buscar novas formas de vida, mas, sim, adaptarem-se ao existente e aceitar seus valores e representações como evidências inquestionáveis de um mundo que não tem mais futuro. São pragmáticos empedernidos, que se agarram à faticidade do presente existente, para elevá-la à condição única de toda e qualquer práxis humana. Assim pensam e agem os sindicatos, ao transformarem suas entidades em agências de empregos e de auxílio aos seus filiados, com serviços médicos, odontológicos, jurídicos empréstimos consignados, dentre outras coisas. Não é diferente do que acontece com os partidos políticos de esquerda. Trocaram os projetos ideológicos de outrora pela administração do sistema, já que aceitam os fatos do dia-a-dia como medida do seu agir e pensar. Mais uma vez procuram iludir as contradições do sistema, em vez de procurar desvendá-las em toda a sua profundidade, como advertia Lênin em seu Imperialismo: fase superior do capitalismo. Da forma mais desavergonhada e desonesta, enveredam pelo caminho da solidariedade; elegem a urgência como principio motor de suas ações. Noutras palavras, trocaram a militância política de outrora pela ação humanitária, pois acreditam que salvar uma vida humana, lidar com o imediato para enfrentar situações particulares é muito mais importante do que lutar pelo socialismo ... tão distante do presente! Assim, fazem do pragmatismo humanitário uma opção ideológica.
Quanta hipocrisia! Nisso nada há de opção ideológica, mas, sim, de sobrevivência, de puro conformismo.
Que importa que assim sejam julgados, se estão convencidos de que podem apagar o fogo da floresta carregando água com as mãos. Quando todos se fazem de surdos, não adianta gritar-lhes, melhor deixá-los em paz e retomar o diálogo com Lênin. Dessa feita, para convidá-lo a visitar o presente, no qual o capitalismo adquiriu novo fôlego e novas determinações, que, em seu tempo, não podiam se realizar dentro das formas estabelecidas de existência do capital financeiro. Somente a partir da década de sessenta do século passado, são criadas as condições políticas e econômicas[14] para a consolidação de um verdadeiro mercado mundial do dinheiro, que abriu uma nova fase de financeirização da economia, expressa em: 1) no declínio da moeda e dos depósitos bancários enquanto fontes de financiamento do processo de acumulação; 2) na desintermediação financeira, por conta da expansão das técnicas mediante a emissão de títulos, que passaram a substituir os empréstimos bancários convencionais; 3) na ampliação das funções financeiras no interior das corporações produtivas; 4) na transacionalização de bancos e empresas; 5) na interdependência de taxas de juros e de câmbio, 6) no déficit público endogeneizado, isto é, financiado mediante a emissão de títulos públicos renegociáveis do mercado de capitais; 7) na compra e venda de corporações como um negócio específico das empresas produtivas; 8) fusões como modalidade mais importante de investimento; 9) na natureza multinacional, multissetorial e multifuncional das grandes corporações que operam no mercado mundial; e, 10) na permanência do dólar como moeda estratégica mundial[15].
Em conseqüência de todas essas transformações, surge uma nova forma de produção de mercadorias, mais apropriada do que a grande indústria às novas exigências de valorização do valor. Nela, as diferentes unidades de capital tornam-se indiferentes à forma concreta (comércio, indústria, serviços, etc.) que reveste no processo de valorização. As empresas não se configuram mais como unidades particulares de capital, operando num determinado setor da economia a produzir uma mercadoria específica. Não são mais células petrificadas dentro do universo da produção de mercadorias, explorando uma atividade ou sob a forma de capital-dinheiro, ou de capital produtivo ou de capital-mercadoria. Essas configurações do capital, que foram ossificadas pela divisão do trabalho, perderam sua independência relativa e deixaram de ser campos específicos de investimentos de capitais particulares. Que o diga Chenais, para quem a companhia multinacional
está assumindo, cada vez mais, o papel de regente da orquestra, em relação a diversas atividades de produção e transações, que se dão no interior de um 'cacho' ou 'rede' de relações transnacionais, tanto internas como externas às companhias, e que podem incluir ou não um investimento de capital, mas cujo objetivo consiste em promover seus interesses globais[16].

A empresa multinacional apagou as fronteiras setoriais da economia, uma vez que sua estratégia de atuação abstrai as formas concretas em que investe seu capital. Ela deixa de ser cada vez mais uma empresa predominantemente industrial ou de serviços, bem como uma companhia bancária ou financeira. E deixa de ser, porque sua estratégia de valorização apóia-se numa lógica tecno-financeira, que tem sua base de competitividade alicerçada
... na definição de um know-how e na P&D. Ela tenta valorizar essa vantagem em todos os setores onde for possível sua competência tecnológica. Com isso ela tenderá a sair do seu setor de origem e diversificar-se em modalidades totalmente originais. Sua nova força reside em sua capacidade de montar 'operações complexas', [que] que irão exigir a combinação de operadores vindo de horizontes muito diferentes: empresas industriais, firmas de engenharia, bancos internacionais, organismos multilaterais de financiamento. Destes, uns serão locais, outros terão estatuto internacional[17].

A companhia multinacional se configura, assim, como um verdadeiro grupo congregando várias filiais, sob o controle de um centro de decisão financeiro chamado holding. Este centro estabelece uma teia de vínculos, principalmente financeiros, entre um número variado de empresas envolvidas em múltiplas atividades, de modo a tirar vantagens das diferentes oportunidades de valorização do capital. Para isso, precisa adquirir uma extrema mobilidade, de modo a permitir à direção do centro investir ou desinvestir massas de capitais de acordo com as exigências de valorização do mercado.
Não sem razão, Chesnais define a empresa multinacional como uma unidade de capital, cujo
... objetivo é a auto-valorização, a obtenção de lucro, em condições nas quais o ramo industrial, bem como a localização geográfica do comprometimento do capital têm, em última análise, caráter contingente. Nessas condições, um dos atributos ideais do capital, que é também, mais do que nunca, um dos objetivos concretos colocados pelos grupos, é a mobilidade, a recusa a se prender a determiminadas modalidades de comprometimento setorial ou geográfico - qualquer que tenha sido sua importância na formação e crescimento do grupo - , bem como a capacidade de se soltar, de desinvestir tanto quanto de investir.[18]

Nisto reside o novo de que se reveste a empresa multinacional. Mais precisamente, sua particularidade consiste no fato de que ela rompeu os limites da divisão social do trabalho, uma vez que não é apenas uma unidade dentro da cadeia da produção social, voltada para produzir uma mercadoria específica e destinada a satisfazer uma necessidade particular. Como capital em geral, ela é um lugar abstrato de valorização de valor, não importando a forma concreta que assume. Ela é capital-dinheiro, capital produtivo e capital comercial, sem deixar petrificar-se em nenhuma dessas formas. Ela assume e abandona essas formas, sem se perder em nenhuma delas, porque as necessidades de valorização, assim, exigem. Todas são igualmente meios milagrosos para fazer do dinheiro mais dinheiro. Assim, a empresa multinacional realiza o ideal do capital, que tem a si próprio como fim, que, por isso, é indiferente à qualidade particular do setor em que se encontra investido[19].
A partir de então, não há mais domínio de uma fração do capital sobre as demais, pois cada unidade de capital (empresa) opera simultaneamente como capital-dinheiro, capital produtivo e capital-mercadoria. Essas diferentes formas de existência do capital não estão mais subsumidas ao capital financeiro, pois o capital se tornou uno, sem formas empiricamente distinguíveis. Conseqüentemente, a categoria de “capital em geral” volta a ser a única forma de existência do capital. Nesse sentido, essa categoria é bem mais apropriada do que a de capital financeiro para dar conta das novas determinações do capitalismo contemporâneo[20]. Até mesmo do ponto de vista de suas implicações políticas, a categoria capital em geral traduz com mais precisão o capitalismo de hoje. Com efeito, quando se fala do capital financeiro, a impressão que vem à mente é a de que se trata de uma forma especulativa de capital, que impede a expansão do capital industrial e, assim, a geração de riqueza e de postos de trabalho. Ora, na sua nova configuração, o capital industrial é tão especulativo quanto o é o capital financeiro. Prova disto é o fato de que 40% dos lucros das grandes corporações industriais japonesas, por exemplo, são provenientes de atividades não-operacionais, isto é, são produtos de especulação no mercado financeiro. É, portanto, um erro político acreditar que o combate ao capital financeiro recolocaria a economia nos trilhos da prosperidade, como acreditam aqueles que vêem no neoliberalismo a causa da crise do capitalismo. Como se espera demonstrar no lugar apropriado, neoliberalismo, reestruturação e globalização são momentos de um único e mesmo processo.
Essa nova forma de produção de mercadorias é, portanto, bem diferente da grande indústria, que Marx e Lênin tinham diante os olhos. Com a diferença de que, na época de Lênin, a grande indústria já havia se universalizado; o mundo todo havia se transformado numa grande feira comercial. Ninguém melhor do que Mandel para confirmar tal assertiva. Para ele, quando o primeiro Volume de O Capital veio a público, a indústria capitalista, embora dominante em alguns países europeus, era ainda muito acanhada; não passava de uma ilha isolada, cercada por um mar de proprietários de terra independentes e de artesãos, que dominavam a economia mundial. Nesse cenário, acrescenta Mandel, o autor de O Capital estava muito mais preocupado com a análise do movimento interno do capital, com a elucidação da sua racionalidade interna, do que mesmo com suas formas empíricas de manifestação[21]. Nesse sentido, Marx é muito mais um pensador do futuro do que um investigador de sua época. Não sem razão, escanchado em seus ombros, Lênin pôde falar do capitalismo em sua fase imperialista, quando a indústria capitalista já não era mais uma ilha isolada, perdida em meio a um mar de relações não capitalistas de produção.

Se Lênin já sentira a necessidade de atualizar Marx, o capitalismo contemporâneo, mais do que nunca, exige uma nova leitura de O Capital. Mas há atualizações e atualizações. Para o marxismo analítico, atualizar Marx significa fazer um inventário das categorias do seu sistema, um tombamento, para, de um lado, arrolar aquelas que não resistiram às transformações por que passou a sociedade capitalista, e, de outro, resgatar as que ainda continuam úteis, capazes de responder às questões do presente. Assim pensa Elster[22]. O resultado do seu trabalho não poderia ter sido mais desastroso - escolheu um caminho errado: saber quais das teorias de Marx estão irremediavelmente datadas e mortas, e quais delas continuam vivas. Ora, O Capital, pressupondo evidentemente o trabalho de pesquisa, é uma exposição dialética do movimento das categorias como movimento auto-contraditório do capital, em que cada uma delas se insere numa seqüência lógico-necessária, segundo a hierarquia que ocupa dentro da moderna sociedade burguesa[23]. Essa seqüência não pode ser atropelada. Não sem razão, Marx, como será visto mais adiante, temia que seus leitores não tivessem a devida paciência para ler essa obra do começo ao fim. Receava que o público, ávido para chegar logo às conclusões, viesse a deixar de fazer uma leitura completa do livro. Afinal, a verdade não está no começo; ela só aparece no final de uma longa exposição que dê conta das conexões internas do objeto investigado.

O Capital não é, pois, um amontoado de categorias que podem ser tombadas, da mesma forma como se demole um prédio para usar suas sobras em uma nova construção. A tessitura da sua arquitetura categorial é “construída” de tal forma a não permitir remendos; tampouco a simples substituição de categorias, “ditas envelhecidas,” por outras. Ou se nega a obra em sua totalidade, ou se empreende um trabalho de atualização, para que ela possa continuar a responder as exigências históricas do presente.

Bem diferente pensam os teóricos do fim da sociedade do trabalho, como André Gorz, Claus Offe e Habermas. Estes, ao porem em xeque a categoria de trabalho abstrato, retiram a pedra de toque sobre a qual se ergue a arquitetônica categorial de O Capital. A conclusão a que chegam é óbvia: a teoria de Marx está definitivamente datada e morta, a despeito do esforço empreendido por Habermas para reconstruir a teoria do materialismo histórico.

Quais dessas duas perspectivas adotar? A de Elster, que retira alguns fragmentos de teorias de O Capital, para misturá-las com outras mais atuais, ou aceitar a tese dos teóricos do fim da sociedade do trabalho, para quem a teoria de Marx está definitivamente datada e morta? Nenhuma das duas. Os motivos dessa recusa estão expostos ao longo da seção 2 deste texto, onde aí se estabelece um diálogo crítico, preferencialmente, com Gorz, Offe e Habermas, uma vez que Elster não traz nenhuma contribuição que mereça dispensar atenção, para pensar Marx no capitalismo atual.

Mas, haveria, então, uma terceira alternativa? Certamente que há. Uma delas é a que oferece Jappe, para quem uma releitura de Marx, à luz da realidade contemporânea, deve partir das categorias de base da sociedade capitalista: valor, dinheiro, mercadoria, trabalho abstrato e fetichismo da mercadoria[24]. Mas, por que essas categorias e não outras? Quais critérios fazem delas as categorias bases da teoria de Marx? Não há aí uma certa dose de arbitrariedade, considerando-se que, para Marx, não existem categorias mais importantes do que outras? Com efeito, a estrutura das categorias de O Capital obedece, como foi ressaltado há pouco, a uma seqüência lógico-expositiva em que cada categoria acha-se determinada pelo relacionamento que tem umas com as outras[25]. Sendo assim, não há categorias básicas, no sentido de que umas são mais importantes do que outras. Não sem razão, no prefácio da edição francesa, de 1872, Marx aprovou, com reserva, a iniciativa do senhor Maurice La Châtre, de publicar O Capital em fascículos. Porém temia que o público francês, impaciente em chegar logo às conclusões, abandonasse a leitura logo nos primeiros capítulos, sem levar em conta que o real é síntese de múltiplas determinações, diz ele em Para a Crítica da Economia Política. Para se chegar aí, é necessário um longo trabalho de explicitação progressiva das categorias, partindo das mais simples e abstratas, até alcançar as mais ricas, complexas e intensas. Tal processo não pode ser atropelado; não se podem suprimir momentos no processo de desdobramento das categorias, sob pena de não se apreender o real na sua verdadeira concretude. Daí a preocupação de Marx, que ele externa naquele prefácio: “a verdade não se encontra logo no começo” da exposição. Quem desejar alcançá-la, precisa submeter-se à “paciência do conceito”.

Essa preocupação de Marx tornou-se realidade. Ao segundo e terceiro livros de O Capital não foi dada a mesma importância que ao primeiro. Nada melhor do que o testemunho de Rosa Luxemburgo, para quem

o terceiro livro de O Capital, do ponto de vista científico, deve ser considerado, sem dúvida, apenas como o complemento da crítica marxista do capitalismo. Sem o terceiro livro, não podemos compreender a lei dominante da taxa de lucro, a divisão da mais-valia em lucro, juro e renda, o efeito da lei do valor no interior da concorrência. Mas - esse é um aspecto decisivo - todos esses problemas, por importantes que sejam do ponto de vista teórico, são bastante indiferentes do ponto de vista da luta de classes prática. Para esta, o grande problema teórico era o surgimento da mais-valia, isto é, a explicação científica da exploração, bem como a tendência à socialização no processo de produção; era a explicação científica dos fundamentos objetivos da transformação socialista. Ambos problemas estavam resolvidos já no primeiro livro, que deduz a expropriação dos expropriadores como resultado final inevitável da produção da mais-valia e da progressiva concentração dos capitais. Com isto, as efetivas necessidades teóricas do movimento operário estavam, em suas grandes linhas, satisfeitas (...). Por isso, o terceiro livro de O Capital permanece até agora, em geral, para o socialismo, um capítulo que não foi lido[26].

O Livro III, a despeito de sua importância teórica, como pensa Rosa, é uma leitura dispensável. Para ela, esse Livro é apenas um complemento ao Livro I. Posição com a qual Marx, certamente, não concordaria. Talvez por conta disso, tenham sido cometidos erros grosseiros de compreensão do Marx de O Capital. A não observância do seu método tem sido responsável por visões equivocadas de determinadas questões. É o caso, por exemplo, dos conceitos de mais-valia, de estado, de classes sociais, etc. Para compreendê-los, no sentido expresso por Marx, é preciso encontrar o lugar em que essas questões se inserem numa apresentação dialética, como o é a de O Capital.

De posse dessa exigência epistemológica, o presente texto recusa as leituras de Elster, Jappe e a dos teóricos do fim da sociedade do trabalho. Seu intento é derivar uma nova categoria, a partir da qual se possa atualizar as determinações essenciais do sistema produtor de mercadorias, evidentemente. Pretensão nada modesta! Decerto que sim. Mas não é assim tão desmedida. Como será explicado no momento apropriado, não se pretende, nem este autor teria fôlego intelectual para tanto, desmontar e remontar o sistema de Marx tal como ele o fizera com a Economia Política Clássica (EPC). Não é disso que se trata. A tarefa é muito mais simples do que se imagina. Na verdade, o que se propõe é encontrar dentro do conjunto da apresentação de O Capital o lugar a partir do qual seja possível derivar uma nova categoria capaz de trazer novas significações à totalidade do sistema categorial dessa obra. Se se preferir, o que se pretende é tentar fazer o mesmo que fizera Lênin, que, a partir da categoria capital financeiro, atualizou as determinações essenciais do capitalismo, sem destruir a síntese categorial realizada por Marx.
Para tanto, o autor convida o leitor para acompanhá-lo nessa empreitada, a quem pede paciência para ler o texto do começo ao fim. Paciência, sim, pois se Marx temia pela sorte de O Capital, imagine-se o que esperar de um tempo em que a pressa se tornou regra geral. Infelizmente, contra esse estado de coisas nada se pode fazer, a não ser apostar que ainda há leitores dispostos a remar contra a corrente. Afinal, para eles é que foi escrito este texto.

EDITORA CORTEZ – SÃO PAULO (PRELO)
[1] Marx, Karl. O Capital. Crítica da economia política. – São Paulo: Nova Cultural, 1988. Livro I, Vol.I., pp. 84/85: “ Uma mercadoria não parece tornar-se dinheiro porque todas as outras mercadorias representam nela seus valores, mas, ao contrário, parecem todas expressar seus valores nela porque ela é dinheiro. O movimento mediador desaparece em seu próprio resultado e não deixa atrás de si nenhum vestígio. As mercadorias encontram, sem nenhuma colaboração sua, sua própria figura de valor pronta, como um corpo existente fora e ao lado delas. Essas coisas, ouro e prata, tais como saem das entranhas , são imediatamente a encarnação direta de todo o trabalho humano. Daí a magia do dinheiro. A conduta meramente atomística dos homens em seu processo de produção social e, portanto, a figura reificada de suas próprias condições de produção, que é independente do seu controle e de sua ação consciente individual, se manifestam inicialmente no fato de que seus produtos do trabalho assumem em geral a forma mercadoria. O enigma do fetiche do dinheiro é, portanto, apenas o enigma do fetiche da mercadoria , tornado visível e ofuscante”.
[2] Hegel, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das Ciências Filosóficas Em Epítome. – Lisboa: Edições 70., p. 126: “ O matemático, como todo o que é instruído numa ciência, tem soluções imediatamente presentes, a que conduziu uma análise muito complicada; todo homem culto tem imediatamente presentes no seu saber um conjunto de pontos de vistas e princípios gerais, que se formaram só a partir de múltiplas reflexões e de uma longa experiência de vida (...). Em todos esses casos, a imediatidade do saber não só não exclui a sua mediação, mas a elas de tal modo estão conexas que o saber imediato é mesmo produto e resultado do saber mediato”.
[3] Ver mais adiante, nota número 104, a definição de capital em geral.
[4] Lênin, V. O Imperialismo: fase superior do capitalismo. – São Paulo: global editora distribuidora ltda, 1982., p. 45: “o século XX marca o ponto de partida de viragem em que o antigo capitalismo deu lugar ao novo, em que o domínio do capital financeiro substituiu o domínio do capital em geral”
[5], Idem. Ibidem., p. 87.
[6] Idem. Ibidem., pp. 75/76:”Pela primeira vez, o mundo se encontra inteiramente partilhado, de tal modo que, no futuro, unicamente se poderá pôr a questão de novas partilhas, isto é, da transição de um ‘possuidor’ para outro e não da ‘tomada de posse’ de territórios sem donos”.
[7] Idem, Ibidem., p. 73.
[8] Idem, Ibidem., p. 82.
[9] Idem, Ibidem. P. 92.
[10] Mandel, Ernest. Situação e Futuro do Socialismo. In O Socialismo do Futuro: revista de debate político. – Lisboa: Publicações Dom Quixote Ltda. Vol. I, Nº 1, 1990., pp. 84/86.
[11] Idem, Ibidem: p. 91: “Segundo a UNICEF, morrem todos os anos de fome e por causa de doenças curáveis, nos Países do Terceiro Mundo, 16 milhões de crianças. Em cinco anos, este índice de mortalidade equivale ao total de baixas ocorrido em toda a Segunda Guerra Mundial. Em cada cinco anos desenrola-se pois uma guerra mundial contra os meninos do Terceiro Mundo: este é o resultado do funcionamento real da economia capitalista internacional tão prezado por alguns socialistas”.
[12] As estatísticas sobre a concentração da renda são de George, Susan. O Relatório Lugano: sobre a manutenção do capitalismo no século XXI. . – São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.
[13] Relatório do Grupo ETC, Oligopoly Inc 2005: www.etcgroup.org
[14] Para uma análise das condições políticas e econômicas que possibilitaram a criação de um mercado mundial do dinheiro, ver Moffitt, Michael. O dinheiro do Mundo: de Bretton Woods às beira da insolvência - Rio de janeiro: Paz e Terra, 1994.
[15] Ver Braga, José Carlos. Financeirização Global: o padrão sistêmico de riqueza do capitalismo contemporâneo - in O Poder do Dinheiro: uma economia política da globalização - Maria da Conceição Tavares/ José Luis Fiori (organizadores). - Petrópolis, Rj. Vozes, 1997.
[16] Chesnais, François. Chenais, François. A Mundialização do capital - São Paulo: Xamã, 1996, p.69.

[17] Idem. Ibidem. p. 77.
[18] Idem, ibidemj. P. 81.
[19] Essa mobilidade e autonomização do processo de acumulação diante das diferentes formas de existência do capital têm um preço político muito alto: a perda de poder do Estado para disciplinar e normatizar o crescimento e o desenvolvimento da economia. O Estado torna-se refém da lógica do capital, pois no movimento de financeirização do processo de acumulação, como diz Braga, “... se insere a interdependência patrimonial - e não apenas comercial e creditícia, como antes, dos proprietários dos principais países industrializados, pela qual seus ativos e passivos estão conectados a ponto de tornar a gestão público-privada da riqueza forçosamente interativa e supranacional, ainda que sem a coordenação virtuosa pretensamente almejada pelo G-7”. Em conseqüência disso, acrescenta que “... está a transformação das finanças públicas em reféns ao ponto de lhes reduzir sensivelmente a capacidade de promover o gasto autônomo dinamizador do investimento, da renda e do emprego; de tornar financeirizada a dívida pública que, como tal, sanciona os ganhos financeiros privados e amplia a financeirização geral dos mercados [Braga, José Carlos. Op. cit. pp. 233/8].

[20] Lênin fala da dependência do capital industrial e comercial com relação ao capital bancário, não do fim dessas formas de existência do capital. Os bancos apropriam-se de fatias crescente do lucro industrial e comercial sem, contudo, perderem sua característica de capital-dinheiro. Para ele, “se um banco desconta duplicatas de um industrial, se lhe abre uma conta corrente, etc., essas operações, enquanto tais, em nada diminuem a independência deste industrial. Porém, se estas operações se multiplicam e ocorrem regularmente, se o banco reúne, nas suas mãos, enormes capitais, se a escrituração das contas correntes de uma empresa permite ao banco – e tal é o que sucede – conhecer, com cada vez maior amplitude e precisão, a situação econômica do cliente, daí resulta uma dependência, cada vez mais completa, do capitalista industrial em relação ao banco” [Lênin. Op. cit. p. 40]. Dependência crescente, atente-se, que não elimina a divisão social do trabalho entre bancos e indústria.
[21] Mandel, Ernest. Introduction. In Capital: a critique of Political Economy. – London: Pinguin, 1976. p. 11: “Quando o Volume I de O Capital veio a público, a indústria capitalista, embora predominante em poucos países da Europa Ocidental, aparecia ainda como uma ilha cercada por um mar de fazendeiros independentes e artesãos, que predominavam em todo o mundo, inclusive, até mesmo na maior parte da Europa. O que O Capital de Marx explicava era, antes de tudo, o impulso irresistível da produção para o crescimento e o uso predominante do lucro para a acumulação de capital. Porém, na medida em que a tecnologia capitalista e a industria se espalhavam por todo o globo, não só cresceu a riqueza material como também aumentaram as possibilidades para libertar a humanidade das fronteiras do trabalho sem sentido, repetitivo e mecânico, ao mesmo tempo em que a polarização da riqueza, cada vez mais, em poucas mãos da classe capitalista, tem forçado mais e mais trabalhadores intelectuais e manuais a venderem sua força de trabalho a um punhado de capitalistas” [tradução livre, FT].
[22] Elster, Jon. Marx, Hoje. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
[23] Segundo Marx, a ordem em que as categorias se sucedem “se acha determinada (...) pelo relacionamento que têm umas com as outras na sociedade burguesa moderna, e que é precisamente o inverso do que parece ser uma relação natural, ou do que corresponde à série do desenvolvimento histórico. Não se trata da relação que as relações econômicas assumem historicamente na sucessão das diferentes formas da sociedade (...). Trata-se de sua hierarquia no interior da moderna sociedade burguesa” [Marx, Karl. Para a crítica da economia política. – São Paulo: Abril Cultural., 1982; p. 19.
[24] Para Jappe, uma releitura de O Capital exige, antes de mais nada, diz ele, “Desembaraçarmo-nos de mais de um século de interpretações marxistas (...). Outra condição é libertarmo-nos da concepção segundo a qual há que aceitar ou recusar em bloco a obra de Marx, mas rejeitando igualmente a idéia de que cada um possa retiara dela os fragmentos que mais lhe agradem para depois os misturar com migalhas de outras teorias e ciências”. Isto posto, acrescenta ele, “Marx esboçou os traços gerais de uma crítica das categorias de base da sociedade capitalista : o valor, o dinheiro, a mercadoria, o trabalho abstrato, o fetichismo da mercadoria. Uma tal crítica do núcleo central da modernidade é hoje mais atual do que na época em que Marx a concebeu, uma vez que esse núcleo existia então apenas em estado embrionário. Para fazer ressaltar esse aspecto da crítica marxiana – a crítica do valor – não é necessário forçar os textos por meio de interpretações rebuscadas: basta lê-los com a tenção, coisa que quase ninguém fez durante um século” [Jappe, Anselm. As aventuras da mercadoria: para uma nova crítica do valor. Portugal: Antígona, 2006. p. 12/13]. .
[25] Ver texto referente à nota 86.
[26] Rosa Luxenburgo, citada por Franco Andreucci, A difusão e a vulgarização do marxismo, in História do Marxismo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, Vol. II, pp. 63-4 [grifos nossos].

MARX NO SÉCULO XXI: PREFÁCIO

FRANCISCO TEIXEIRA & CELSO FREDERICO

MARX NO SÉCULO XXI

SETEMBRO-2007

PREFÁCIO

COOPERAÇÃO COMPLEXA E APARÊNCIA “PÓS-MODERNA”

A crítica teórica e a polêmica de idéias não são próprias a épocas como a nossa; antes o são de outras, em que as teorias, as idéias e as opiniões são chamadas pela própria vida histórica a se converterem em força prática dos indivíduos e das classes sociais. Porque os livros não produzem épocas – como parece implícito no enganoso jargão publicitário segundo o qual determinada obra “fez época” –, mas, ao contrário, as épocas é que produzem, por torná-los necessários, seu livros, à primeira vista não pareceria exagerado dizer que nosso tempo não carece deles. Afinal, nos dias que correm, em que se “acabou por fazer desaparecer a opinião pública”,[1] reduzida por isso a simples conceito sociológico, a opinião passou a ser competência dos especialistas autorizados e que falam sem réplica, e que assim se alçam à condição oracular de “formadores de opinião”, e o público simplesmente expecta passivo, consumindo “fatos” e “análises” despachados com a “objetividade” – e, portanto, com a falsidade – de informações, que são ordens a executar.
Neste quadro, a polêmica viva das idéias e o choque de opiniões foram reduzidos à diversidade non opposita dos reiteradores do mesmo, uma verdadeira segunda natureza dos tempos atuais que dá formato desde aos objetos cotidianos do consumo às expressões do desejo sexual, nas quais, também nelas, ainda uma vez, se repõe a mesma lógica perversa da ratio mercantil.[2] Na chamada “alta cultura”, na qual se incluem os trabalhos acadêmicos, em geral nada se passa distintamente: a dissecação dos cadáveres – que podem ser livros de autores mortos ou experiências sociais de sujeitos vivos – se reduz ao confronto hermenêutico entre comentadores e estudiosos. (A vida, contudo, a verdadeira vida está em outro lugar, nos diria ainda agora Rimbaud). Encontra-se aí precisamente a mesma lógica que se expressa no fato de que, no plano político, reina o regime de omertà sobre a possibilidade histórica da superação revolucionária da atual sociedade, no fato de “que todos os que aspiram a governar querem governar o que está aí, com os mesmos procedimentos, e mantê-lo quase exatamente como é”, “que nenhum partido ou fragmento de partido não ensaia nem mesmo simplesmente pretender que tentaria mudar alguma coisa importante”.[3]
É este último fenômeno que, em seu segredo, guarda os mistérios de todos os anteriores. Para que a discussão, o debate, a polêmica, se as palavras e as idéias não encontram fluxo na vida? Já se disse que os homens, portanto também os autores, se parecem mais com sua época do que com seus pais; para o bem e para o mal, o mesmo ocorre com os livros. Portanto, não é preciso dizer muita mais coisa para se compreender por que os livros de crítica social são cada vez mais raros e – para falar na linguagem compreensível por nosso tempo – sem sucesso. De outro modo, tal coisa acontece porque, na seqüência da operação 11 de setembro, seqüência esta que a tornou necessária e que a explica, a contestação anticapitalista internacional da virada do século não prosseguiu, porque as contestações insurrecionais da Argentina e de Oaxaca ficaram isoladas, porque o ludismo contra as máquinas permitidas do consumo mercantil dos incendiares de voitures na França não se transformou em desobediência aberta e sabotagem declarada ao sistema de trabalho alienado; enfim, porque a contestação à atual ordem permanece fragmentada, esta não se constitui ainda numa experiência de comunicação, permanecendo – como sói de ocorrer com a verdadeira vida – clandestina, sem linguagem coerente e adequada.
Contudo, é apressado dizer que épocas que não fazem bons livros não precisam deles; bem pelo contrário, trata-se do inverso. A nossa, tão pobre de crítica – e não só de crítica social, mas de toda e qualquer crítica teórica –, embora não os produza, deles precisa; e de livros que, ao contrário dos dias, sejam honestos e que, ao contrário dos que em sua maioria estão à venda, ajudem a conhecer a realidade e a torná-la novamente criticável. Marx no século XXI é um deles: este é, de fato, um livro necessário. Nele, a polêmica com outros autores não se caracteriza pela busca de uma melhor interpretação de obras, tampouco temos aqui a aplicação de noções ideais a experiências reais ou mesmo a produção de novas noções ideais como candidatas a substitutas de outras mais antigas. Bem pelo contrário, este livro retoma o antigo esforço de subir da terra ao céu, ao invés de aí permanecer ou daí descer. Em outras palavras, ele retoma a crítica social que, em nossos dias, só pode ser – e esta é sua grande tese – a persistência e o desenvolvimento da crítica da economia política, cuja primeira e fundamental expressão teórica a formulou Marx, no conjunto de seus escritos. Sendo a retomada teórica da crítica da economia política sua principal tese, os ensaios que compõem este livro o fazem buscando mostrar, numa polêmica com o pensamento semicrítico, o que este, em seu apego unilateral à aparência do sistema produtor de mercadorias, não consegue apreender, pois lhe faltam, logo de cara, a posição crítica e a “lógica dialética do conflito”,[4] que é a necessária forma teórica daquela posição prática. Afinal, se a dialética está proscrita nos dois lados – o ultra-racionalista e o pós-moderno – do Reno, bem como nos diversos departamentos universitários de ultramar que os espelham, é porque antes de tudo lhes falta a posição conflitual com base na qual as contradições reais da sociedade possam ser adequadamente expressas em sua forma conceitual.[5]
A contracorrente dessa tendência, e instrumentado das categorias dialéticas de totalidade e contradição, Francisco Teixeira, no primeiro desses ensaios, enfrenta teoricamente a ideologia do fim da “sociedade do trabalho”, tal como ela, em expressões distintas, está presente em André Gorz, Claus Offe e Jürgen Habermas. Apresentando descritivamente, com competência e clareza, num primeiro momento, as posições de cada um desses autores, passa em seguida a lhes contra-arrestar com finura teórica e clareza política. Deixa assim claro que a tese de Gorz e Offe, segundo a qual haveria uma perda da “centralidade sociológica” do trabalho no capitalismo contemporâneo tem, logo de cara, uma função política: trata-se justamente de afirmar a perda de importância da luta de classes fabril, da luta de classes no âmbito do trabalho e da produção. Confundindo crise do emprego com crise do trabalho, como observa com argúcia Celso Frederico no segundo ensaio deste livro, Gorz e Offe têm por meta justamente atacar a teoria crítica do valor, formulada por Marx. Com este fim, elaboram uma concepção do capitalismo contemporâneo que vê, na extensão da forma-mercadoria – e, portanto, da dominância do valor e do trabalho abstrato, diríamos nós – a um conjunto mais amplo das relações sociais materiais, aos assim chamados “serviços”, a perda da materialidade do trabalho e a impossibilidade de aí, por conseqüência, haver mensuração quantitativa de tempo de trabalho no mesmo padrão do trabalho industrial; e o fazem justamente quando sua conclusão deveria ser, como parece óbvio, o contrário da que apresenta.
Deste modo, se com sua renúncia à teoria crítica do valor pretende compreender a importância de outros conflitos não situados imediatamente na fábrica, Gorz (e o mesmo ocorre com Offe) termina por não enxergar que na extensão das relações assalariadas, das relações monetário-mercantis, a outros âmbitos do trabalho e do consumo, ocorre justamente a extensão do valor e do trabalho abstrato, o que não destitui, mas, ao contrário, reitera com mais gravidade e agudeza a importância da teoria crítica do valor para a compreensão dos fenômenos do capitalismo contemporâneo; e dentre estes, em primeiro lugar, como Teixeira o demonstra empírica e teoricamente, o aumento da proletarização das relações de trabalho, com o aumento do assalariamento da assim chamada população economicamente ativa, e a aplicação nos tais “serviços” dos mesmos mecanismos de racionalização do trabalho que visam a um aumento de produtividade. Afinal, o que pode significar a necessidade de aumento de produtividade em determinados setores da economia, senão a necessidade de economizar tempo, isto é, tempo quantificável de trabalho, portanto, trabalho abstrato? – é o que argumenta de forma incisiva o autor.
Na verdade, a posição comum a Gorz e Offe tem o objetivo de destituição não apenas da teoria crítica do valor, mas também, de contrabando, do materialismo histórico. Pretendem não apenas mostrar que o trabalho abstrato deixou de ser a categoria central para a compreensão crítica do capitalismo contemporâneo, mas também, como dizem desajeitadamente, que a “categoria sociológica do trabalho” não é mais a determinação central da vida social. Claro que, para a crítica da economia política, não há qualquer relação necessária entre o fato histórico (e não, “sociológico”) do trabalho, como atividade prática produtiva, e a determinação do trabalho abstrato numa sociedade produtora de mercadorias. Ainda que, do ponto de vista da consciência teórica, a compreensão do trabalho como fundamento da vida social só tenha podido se dar numa sociedade fundada no trabalho abstrato, numa sociedade, portanto, que põe em equivalência distintas espécies de trabalhos concretos e, assim, possibilita a compreensão categorial do trabalho em geral, em sua universalidade, não há, contudo, do ponto de vista da própria realidade, qualquer dependência mútua entre a centralidade da categoria do trabalho abstrato nesta sociedade determinada e a centralidade do trabalho na fundação da sociabilidade humana.[6]
No entanto, assim como a Economia Política, a ideologia da perda de centralidade do trabalho abstrato no capitalismo contemporâneo – que busca, com a indicação dessa suposta perda, concluir daí uma destituição ontológica do trabalho na vida social – cai no erro de identificar uma categoria mais abstrata da vida social com uma categoria mais determinada, pois específica de uma forma particular de sociedade. O “esquecimento” da distinção entre esses dois níveis de abstração também constitui, nas palavras irônicas de Marx, “toda a sabedoria dos modernos economistas, que demonstram a eternidade e harmonia das relações sociais existentes. Por exemplo, nenhuma produção é possível sem um instrumento de produção, ainda que esse instrumento seja exclusivamente a mão. Nenhuma produção é possível sem trabalho passado, acumulado, ainda que este trabalho seja simplesmente a destreza concentrada e reunida na mão do selvagem mediante o exercício repetido. O capital é, entre outras coisas, também instrumento de produção, também trabalho passado, objetivado. Em conseqüência, o capital é uma relação natural, geral, eterna; mas o é, se deixo de lado precisamente o específico, o que unicamente converte o ‘instrumento de produção’, o ‘trabalho acumulado’ em capital”.[7] Os atuais inimigos da teoria crítica do valor, pressupondo essa mesma identidade, seguem por um caminho inverso e, por modus tolens, concluem: se o trabalho abstrato perdeu sua dominância social no capitalismo contemporâneo, então se perdeu aí também a “centralidade sociológica do trabalho”. Em seu gesto, contudo, terminam por abdicar daquilo que, apesar de sua falta de rigor, era ao menos central na Economia Política clássica: a teoria do valor-trabalho.
Se todas as sociedades anteriores se produziram e reproduziram no e pelo trabalho humano, se uma sociedade emancipada no futuro se produzirá e reproduzirá no e pelo trabalho humano, não houve antes nem haverá depois, contudo, a duplicação e a dominância do trabalho abstrato sobre esses trabalhos concretos aí referidos. Pelo mesmo motivo, não é pela determinação fundadora do trabalho na sociabilidade humana em geral que o proletariado e suas lutas de classes podem exercer, na sociedade capitalista, uma atividade revolucionária, pois nas diversas sociedades de classes anteriores à sociedade capitalista, todas elas fundadas no trabalho, nem sempre coube aos produtores diretos a potência revolucionária que, determinada pelas próprias relações de produção, agora cabe ao proletariado; antes é somente pelas próprias características das relações de produção capitalistas, relações estas fundadas no trabalho abstrato e, portanto, na produção industrial do valor, que se constituem as potencialidades dos produtores diretos aí implicados, a saber, aos proletários modernos. O problema teórico que aqui se apresenta – e, portanto, também em face da ideologia da perda da “centralidade sociológica do trabalho” no capitalismo contemporâneo – não diz respeito à posição fundante do trabalho em geral, mas, sim, à persistência da produção do valor, cuja substância é o trabalho abstrato, como ratio ultima da atual forma de sociabilidade. É justamente neste âmbito que o ensaio de Teixeira enfrenta a questão, buscando demonstrar, para além das impressões empíricas dos ideólogos da falência da teoria crítica do valor-trabalho (abstrato), que operam com categorias sociológicas da aparência do sistema de produção, a relação – inclusive empírica – das categorias críticas da economia política desenvolvidas por Marx com o capitalismo em suas atuais características.
Isso não quer dizer, contudo, que a discussão teoricamente mais abstrata quanto ao materialismo histórico não seja aqui também enfrentada. E o é principalmente na crítica da má concepção habermasiana do materialismo histórico. Neste caso, nosso autor trata de demonstrar que a prometida “reconstrução” da concepção materialista da sociedade, por Habermas, resulta – desculpem-me o deboche – numa desconstrução. Com efeito, a confessada assunção habermasiana da categoria sociológica de “interação social”, de matiz positivista (Durkheim), que Habermas reconstrói na perspectiva das considerações lingüístico-pragmáticas da filosofia contemporânea, não menos positivistas, leva-o a conceber, para além das relações sociais de produção e das forças produtivas, que em Marx são ao mesmo tempo parte e base das primeiras, um âmbito “prático-moral”, de “reconhecimento recíproco”, enfim, “um sistema de normas sociais que pressupõe a linguagem”. Deste modo, para Habermas, trata-se de conceber a modernidade não apenas de uma perspectiva das forças e relações de produção, mas também como um processo histórico de dessacralização, de laicização, das relações prático-morais mediadas pela linguagem, de sorte que é com base no reconhecimento teórico – ausente em Marx – deste último âmbito que se pode desenvolver uma posição teórica crítica do capitalismo desenvolvido, na medida em que aí se pode pôr em questão o avanço das ações técnico-instrumentais sobre as ações prático-interativas, lingüístico-comunicativas. A incompreensão de Marx da suposta distinção dessas duas instâncias societais o teria levado a reduzir a vida social ao âmbito técnico-instrumental, ao “subsistema” da economia. Mais uma vez, portanto, também nesta teoria sociológica – que, por não compreender a natureza fetichista do sistema produtor de valor, resume a “economia” a um “subsistema” – encontramos a destituição ontológica do trabalho (reduzido a ações técnico-nstrumentais) e, mais ainda, a recusa a encarar a centralidade, na totalidade da vida social presente, do trabalho abstrato e do valor (como, aliás, o diz expressamente Habermas na discussão sobre a relação entre economia e Estado no capitalismo tardio).
Em sua apresentação descritiva da sociologia harbermasiana, Francisco Teixeira nos deixa ver a regressão teórica que, diante da tradição crítica do pensamento alemão do século 20, encontramos em Habermas. Seu caráter regressivo se constitui principalmente ao reduzir a categorias sociológicas isoladas e fixas as determinações mais primárias e, portanto, mais abstratas, que, numa perspectiva histórico-materialista, nos permitem pensar a vida social. Desse modo, a unidade originária da práxis produtiva é reduzida à classificação sociológica – cuja origem são as chamadas ciências do espírito do início do século 20 – de ações instrumentais, de um lado, e ações prático-morais, interativas, de outro. O que se perde nesse secundário nível sociológico, do ponto de vista de uma teoria mais fundamental sobre a sociedade e a história, é a compreensão da práxis produtiva, materialmente produtiva, tanto de coisas e relações econômicas quanto de consciência, de linguagem, de valores e normas. Em outras palavras, perde-se aí a compreensão de que o não-material, tal como a consciência, a linguagem e as normas, é também práxico-materialmente produzido, de que o não-material é também, simplesmente, práxico. Com efeito, para Marx, a consciência e a linguagem, que não se distinguem e separam entre si, não se separam também da vida prática, produtiva, e do correspondente intercâmbio prático, mas, sim, são por estes mesmos produzidas: “O ‘espírito’”, dizem Marx e Engels, “tem consigo de antemão a maldição de estar ‘preso’ à matéria, a qual nos surge aqui na forma de camadas de ar em movimento, de sons, numa palavra, da linguagem. A linguagem é tão velha como a consciência – a linguagem é a consciência real prática que existe também para outros homens e que, portanto, só assim existe também para mim, e a linguagem só nasce, como a consciência, da necessidade, da carência física de intercâmbio com outros homens”.[8] A “reviravolta” materialista – termo que uso aqui não sem ironia – implicou, nas pegadas da dialética hegeliana, como podemos ver, uma crítica da filosofia moderna da consciência e da concepção instrumental da linguagem.
Naturalmente, encontramos nessa passagem citada de Marx e Engels uma concepção bastante genérica, posto que necessariamente situada num determinado nível de abstração teórico-conceitual. Mas, justamente porque as relações lingüístico-comunicativas se produzem praxicamente, elas só podem ser compreendidas historicamente numa apreensão mais determinada das forças produtivas e das relações sociais nas quais se incluem e as quais medeiam. Deste modo, o fenômeno histórico de dessacralização e laicização das relações lingüístico-comunicativas na modernidade a que se refere Habermas é, do ponto de vista histórico-materialista, inseparável do desenvolvimento das forças produtivas burguesas e das relações de produção burguesas. É assim que, retomando com base neste enfoque a discussão existente no interior da sociologia alemã do início do século passado acerca da experiência lingüístico-comunicativa na modernidade, W. Benjamin explica as transformações da experiência social da linguagem comunicativa nos seguintes termos: “[...] esse processo vem de longe. Nada seria mais tolo que ver nele um ‘sintoma de decadência’ ou uma característica ‘moderna’. Na realidade, esse processo [...] tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evolução secular das forças produtivas”.[9] Nessa compreensão, está superada de modo claro, e de antemão, a distinção sociológica e fixa entre “interação” e “trabalho”, a linguagem e a comunicação só podendo ser compreendidas em conexão com o desenvolvimento das forças produtivas, com o qual conformam uma unidade prática. Ao invés de uma apreensão à parte de um âmbito interativo-comunicativo, distinto das assim chamadas ações técnico-instrumentais, trata-se para Benjamin de encontrar, no homem que, pelo trabalho, se relaciona com a natureza, o ente-genérico que ele é, de modo que o homem que, mediante os instrumentos e objetos de trabalho, compõe as forças produtivas é o homem já socialmente constituído, é o homem cuja natureza genérica é o “conjunto das relações sociais”.[10]
De modo mais concreto, esta concepção histórico-materialista do caráter práxico da linguagem, da comunicação e da consciência deve significa, no que diz respeito à sociedade capitalista, a completa impossibilidade teórica de separar o âmbito interativo-comunicativo das categorias que aí determinam a produção e a reprodução da vida social. Justamente porque o que é próprio ao gênero humano é sua atividade prática, sua autoconstrução em uma atividade sensível-material que, ao produzir um mundo humano-social em distinção com o mundo imediatamente natural, produz ao mesmo tempo o homem como ser histórico-social, a expropriação desta atividade, quando ela se torna reificada, coisificada, sob a forma-mercadoria da própria força de trabalho, tem por conseqüência a reificação das relações diretamente lingüístico-comunicativas, já que estas são a consciência prática social, inseparável, para o bem e para o mal, de toda prática social. Se toda prática social é comunicativa, dando-se assim num intercâmbio entre os homens que conta com a mediação da linguagem, uma prática social alienada traz consigo, necessariamente, não apenas uma “consciência invertida”, uma “falsa consciência”, mas também, nisto mesmo, uma “consciência real prática” (linguagem) alienada. Assim é que, para Guy Debord – autor que é lembrado por Francisco Teixeira –, quando o próprio desenvolvimento capitalista estende as características do trabalho alienado ao conjunto da vida social, isto é, quando o trabalho em sua forma alienada realiza a “ocupação total da vida cotidiana” (SdS, § 10),[11] o capitalismo se demonstra ser, justamente aí, “o contrário do diálogo” (Idem, § 18). Em outras palavras, “com a separação generalizada do trabalhador e de seu produto, perde-se todo ponto de vista unitário da atividade realizada, toda comunicação direta entre os produtores [...] [e] a atividade e a comunicação se tornam o atributo exclusivo da direção do sistema” (Idem, § 26). Assim, não se trata, para Debord, de distinguir fenomenologicamente mundo da vida e mundo sistêmico, como o faz Habermas em sua teoria do agir comunicativo, mas, ao contrário, de indicar num procedimento dialético que a lógica reificada da forma-mercadoria e do trabalho assalariado organiza a inteira vida cotidiana. Em conseqüência, o chamado mundo da vida, categoria com a qual Habermas pensa a vida cotidiana, é de pronto determinado pelo mundo sistêmico das relações econômicas fetichistas.
A resposta mais contundente que Francisco Teixeira oferece aos inimigos da teoria crítica do valor-trabalho (abstrato) não é, contudo, nas análises críticas pontuais de cada um deles, mas, sim, quando, após a preparação polêmica, passa a enfrentar diretamente a atual configuração do sistema capitalista e apresenta a categoria da cooperação complexa. Trata-se aqui do resultado de uma investigação categorial do capitalismo contemporâneo que, apoiado a um só tempo na crítica dialética da economia política e nas pesquisas empíricas atuais sobre as novas características da produção capitalista, apresenta a instigante tese de que, à grande indústria, descrita por Marx n’O capital, e à qual antecedem a cooperação simples e a manufatura, segue agora uma nova forma da valorização do valor, que, do ponto de vista da organização da produção, retoma características da cooperação simples, mas com base no capital extremamente centralizado da época monopólica e nas forças produtivas altamente desenvolvidas pela revolução científico-técnica.
Nas pegadas de Marx, Teixeira mostra que, na seqüência de cooperação simples, manufatura e grande indústria, a relação social capital se desenvolve progressivamente até tornar-se, nessa última forma, sujeito auto-referido que submete a si a totalidade das relações sociais. Mostra justamente aí como – o que não é nem de longe compreendido pelo marxismo analítico de Jon Elster e pela desconstrução do materialismo histórico de Habermas – se sedimenta uma unidade concreta entre o desenvolvimento das forças produtivas, dentre as quais se inclui a organização da produção, e a moderna forma social das relações de produção, a forma-capital. Descreve como a grande indústria, tal como Marx a apresenta, implica também modificações da vida cotidiana dos produtores – entre as quais, ressaltariam Benjamin e Debord, as sofridas nos âmbito lingüístico-comunicativo e estético-perceptivo – graças às transformações do processo a um só tempo social e técnico de valorização do valor, pois, nos lembra Teixeira, “ao generalizar a produção de valores de troca, a grande indústria transforma os meios de subsistência em mercadorias, criando, assim, um grande mercado para aqueles capitalistas que produzem mercadorias que entram no consumo pessoal do trabalhador” (3.2, a). Essas transformações da vida cotidiana fora do trabalho, nas quais “os bens de consumo da classe trabalhadora são produzidos como capital-mercadoria”, são inseparáveis daquilo que Teixeira chama de “uma completa des-subjetivação do processo de trabalho”, que ocorre quando, com base material nas forças produtivas até então desenvolvidas, a forma-capital se apresenta como sujeito autoposto e autotélico da produção social: na grande indústria “o capital torna-se sujeito do processo de valorização, porque, doravante, são os meios de produção que empregam o trabalhador e não o contrário, como ocorria na cooperação simples e na manufatura” (idem). Eis aí uma verdadeira aula de materialismo histórico concreto, pois fundado nas determinações particulares – trabalho abstrato e valor – da sociedade capitalista!
A cooperação complexa é compreendida por Teixeira como nascida de uma dupla dinâmica do capital como relação social contraditória, em cujo desenvolvimento o avanço das forças produtivas não se separa da luta de classes. Ele se aproxima, assim, de uma tese central às reflexões teóricas do movimento de autonomia operária nos anos 70 na Itália, justamente a de que a chamada “reestruturação produtiva” seria uma resposta do capital à crítica prática – as diversas formas de desobediência, sabotagem etc. – que o proletariado então dirigia ao trabalho alienado, resposta que, tendo um caráter eminentemente político, se apóia porém na constante transformação das forças produtivas, própria à concorrência intercapitalista, e na necessidade, aí inclusa, de aumento (ou simplesmente preservação) da taxa de lucro. O que aí se apresenta é uma concepção histórica, e não lógica, do desenvolvimento do capital, uma concepção atenta às contradições e às lutas práticas entre as classes. Este ponto de partida metodológico se reapresenta na análise do Teixeira justamente ao conceber a cooperação complexa como um resultado histórico das contradições – centralmente, a contradição entre as forças produtivas e a relação social capital – da forma grande indústria. Essas contradições que resultariam não num “limite absoluto do capital”,[12] mas numa “forma limite” histórica – “tudo indica que o capital atingiu o ápice do seu desenvolvimento histórico”, nos observa cauteloso nosso autor –, cuja gênese, sendo as contradições práticas da relação social capital, só neste âmbito prático, parece-me permitido assim concluir, pode encontrar seu desenlace.
Em diálogo com os Grundriise, e com as prospecções que nesta obra Marx faz sobre o desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo, cujo resultado seria um processo material de produção em que o tempo de trabalho concreto está reduzido ao mínimo, em clara contradição com a permanência social da quantificação do trabalho abstrato como medida social de valor, Teixeira conclui daí não uma situação sem-saída do capital, mas uma transformação formal da produção capitalista que vence, embora não supera, as contradições da grande indústria, repondo-as num outro âmbito formal. A constatação teórica que toma como ponto de partida é simples: “o capitalismo é incompatível com a produção plenamente automatizada”; afinal, “se as prospecções de Marx fossem levadas às últimas conseqüências, o desenvolvimento das forças produtivas entrariam em colapso com as relações capitalistas de produção” (3.2, b). A concepção do capitalismo como um “repleno de contradições”[13] é aqui mantida; e, ao invés de uma resolução lógica formal de uma real contradição, atenta-se para as contradições reais, as contratendências e o desenvolvimento histórico das formas de produção do valor. Em resposta às contradições a que chegou a grande indústria, a cooperação complexa se constitui numa “formação reativa” (como diria Freud), sendo a sua função histórica – algo posto pelo próprio movimento contraditório das relações sociais – a de impedir um “colapso do sistema”. Diferentemente da grande indústria, cujo desenvolvimento a um só tempo lógico-imanente e histórico cumpriu a tarefa de conduzir o capital à sua forma pura de sujeito da produção, a cooperação complexa “nasce para inaugurar um novo período de acumulação do capital em que não há mais desenvolvimento, isto é: expansão do emprego, criação de mercados até então inexistentes, incorporação de novas áreas geográficas ao mercado capitalista etc.” (idem). Por isso mesmo, alerta-nos o autor, a cooperação complexa é “menos progressiva” do que a grande indústria, pois sua base é o limite histórico a que chegou a valorização do valor mediante o grande desenvolvimento das forças produtivas pelo capital.
De modo concreto, a categoria de cooperação complexa reproduz no nível teórico um movimento objetivo do capital, em que este – num retorno abstratamente formal à cooperação simples – “passou a reagrupar numa única unidade de produção as diferentes fases do ciclo de acumulação, antes separadas espacial e temporalmente pela divisão social do trabalho” (idem). Trata-se aí da conseqüência histórica – compreensível categorialmente em seu movimento lógico – mais extremada da centralização de capital, persistente desde há um século, conseqüência pela qual, agora, cada uma das formas do capital (capital comercial, capital bancário, capital industrial), antes distintas entre si, se constitui em “partição de um mesmo capital individual”. A novidade aqui, explica-nos Teixeira, é que, na grande indústria, tal como no-la apresentou Marx, “o capital-dinheiro era um negócio particular dos bancos; o capital produtivo, dos industriais, e o capital mercadoria, dos comerciantes” (idem). A esse processo de centralização monopólica do capital, que se apóia numa base material de forças produtivas altamente desenvolvidas, corresponde – como antes, na grande indústria, ocorrera na unidade concreta entre as forças produtivas, a forma de relações sociais e a organização material do trabalho – uma reorganização material da produção em que cada empresa monopolista “realiza, em sua experiência concreta, o que expressa o conceito de capital industrial; ou seja, cada empresa passa a existir como encarnação individual de todas as formas de existência de capital: capital-dinheiro, capital produtivo e capital-mercadoria” (idem). É nesse processo social e técnico mais amplo – em que as categorias de totalidade e contradição são centrais à apreensão do capitalismo contemporâneo – que, segundo Teixeira, “o capital vê-se impelido a readequar os elementos subjetivos do processo de trabalho à nova forma de produção de mercadorias”; em outras palavras: “Assim como as empresas foram levadas a reconstituir, na prática, a unidade das diferentes formas de existência do capital, a reestruturação produtiva, com seus novos métodos e técnicas de contratação e gerenciamento, recompõe a unidade das diferentes fases do processo de trabalho, recriando um novo tipo de trabalhador coletivo combinado” (idem).
Como se pode ver sem grande esforço, é a isto que me referia quando, logo acima, afirmava que, no conceito de cooperação complexa, Teixeira opunha seu mais forte argumento contra a ideologia do fim do trabalho abstrato como fundamento da sociedade contemporânea, afinal os chamados “serviços” – bancários, comerciais – são aí compreendidos, enquanto suas “partições”, no capital total. Em conseqüência, o proletário das redes de fast food, como, por exemplo, a McDonald, que ao mesmo tempo produz e vende, não inclui sua atividade apenas no comércio, mas também na produção (ainda que seja uma produção final, a partir de elementos anteriormente pré-produzidos no interior ou sob o comando econômico da mesma empresa capitalista, que, assim, não pode ser chamada simplesmente de comercial, ou de “serviço”); de modo mais amplo, é o mesmo que ocorre na técnica de just in time nas grandes montadoras de automóveis, de computadores etc., em que se estabelece uma relação temporal mais imediata entre a produção e a venda. Em outras palavras, mantendo o conceito de capital total (global), Teixeira demonstra a persistência e a ampliação do trabalho abstrato como princípio organizador da produção e da vida social. E, assim, as transformações imediatamente visíveis no âmbito do trabalho se estendem e correspondem ao conjunto da vida cotidiana, em que o trabalho abstrato continua a ser produzido – e, em sua forma monetária de custos, a ser contabilizado – em formas que economizam tempo (no duplo sentido de que se produz em menos tempo quantitativo pago e de que o tempo não-formalmente produtivo é subsumido à economia). Ocorre assim uma completa transformação da vida cotidiana, descrita por Teixeira como componente da lógica da cooperação complexa, na qual todos os indivíduos se transformam, fora do trabalho, enquanto “consumidores”, em trabalhadores sem-contracheque. Não há dúvida, aqui andam juntas a proletarização dos indivíduos, a economização do tempo vivido e a perda de qualidade do mundo.
Assumindo o mesmo ponto de partida que Francisco Teixeira (o da crítica da economia política), Celso Frederico polemiza, no segundo ensaio deste livro, com os ideólogos da chamada “sociedade de consumo”, que, mal-baseados nas mesmas impressões empíricas da aparência do sistema, tal como aqueles outros ideólogos que Teixeira combate, chegam à conclusão da perda de objetividade e das contradições da realidade socialmente produzida. Neste caso, trata-se da compreensão teórica dos fenômenos da circulação mercantil e do tipo de consciência social que aí se produz num momento da produção capitalista – a cooperação complexa, segundo a tese de Teixeira assumida por Frederico – em que, através dos chamados “serviços”, as relações de troca e venda se estendem a âmbitos e a quanta diversos do tempo vivido.
Para Jean Baudrillard, no chamado consumo (sempre entendido por ele como um fenômeno imediato de aquisição monetária de um objeto mercantil), o valor de uso (ou o “referente”, no dizer da lingüística estruturalista) é substituído pelo “signo” sem referente real, que passa a sobrepor-se, ontologicamente, à realidade e, socialmente, ao valor econômico. Mas se o signo autonomizado, segundo Baudrillard, destitui o “princípio de realidade”, destitui ao mesmo tempo a realidade tanto do trabalho concreto, útil, pois o valor de uso deixaria de ser o critério da satisfação de desejos e necessidades, quanto do valor econômico, fundado sobre o trabalho abstrato, pois outras determinações, tais como o status, passariam a valorar economicamente a mercadoria. Deste modo, o mesmo problema teórico se reapresenta aqui: o da possibilidade da crítica da economia política dar inteligência crítica à atual experiência social em sua forma imediata, cotidiana.[14]
Nesse mesmo processo, segundo Baudrillard, ocorreria a autonomização do signo também na linguagem, do que resultaria, descreve-nos Frederico, “um mundo fantasmagórico em que reina o ‘jogo aleatório dos significantes’” (1). É um mundo do simulacro, onde não há mais nem princípio de realidade, nem valor. O que deveria explicar – a saber, a perda de realidade, perda que é prática e consciencial, na experiência cotidiana dos indivíduos na sociedade do espetáculo –, Baudrillard o toma como a própria explicação; para dizer o mínimo, o fenômeno aparente é assumido, num verdadeiro simulacro teórico, como autoreferido. Justamente quando a teoria crítica do valor permite-nos compreender, como o mostra Debord, a experiência de reificação das relações sociais, de perda de controle pelos indivíduos, desde a imediatidade cotidiana, sobre suas atividades e relações genéricas e, portanto, do seu acesso prático e lingüístico-comunicativo à realidade produzida por eles, mas deles autonomizada, Baudrillard transforma tais fenômenos sociais aparentes em base de uma “teoria” positivadora da alienação, apresentando uma ideologia segundo a qual, se já não temos acesso à realidade prática, tal se dá não por uma contradição da própria realidade e da prática que a produz, mas sim porque, misteriosamente, o “princípio de realidade” se tornou uma “hiper-realidade”. Ele não desconfia minimamente de que se, na experiência lingüístico-comunicativa cotidiana, a linguagem parece se descolar – através do desvanecimento do referente e da autonomização do signo – da práxis social e, portanto, da realidade social aí produzida praxicamente, tal ocorre porque, assim como se dá com a própria práxis, que, no domínio da alienação se emancipa do sujeito, também a linguagem se encontra, nas relações mercantis, aderida a uma realidade autonomizada diante dos indivíduos.
Ao contrário de Baudrillard, Celso Frederico situa esses fenômenos na experiência cotidiana das relações mercantis, apresentando o simulacro baudrillardiano numa correspondência com a autofalsificação das mercadorias e, numa sugestiva imagem, nos demonstra como a compreensão teórica desse fenômeno cotidiano se baseia diretamente na teoria crítica do valor-trabalho (abstrato). A produção capitalista mundializada dos objetos de consumo mercantil nos deixa entrever, como numa mônada, esse processo mais amplo de falsificação do real, ou antes, de impossibilidade de aferição da realidade do real na conhecida prática industrial de fabricação de artigos de grife, que, simultaneamente, são clonados pelos mesmos fabricantes. “Torna-se cada vez mais difícil separar o ‘verdadeiro’ do ‘falso’ nessa pirataria praticada muitas vezes pela mesma fábrica” (idem), nos diz Frederico. A isso, o ideólogo pós-moderno poderia responder, como o faz a vendedora da 25 de março lembrada por nosso autor: “não é falsificado; ele é uma réplica!”. A hiper-realidade que é réplica autoreferida de si mesma, tanto quanto o relógio, o vinho ou o perfume que o mesmo fabricante falsifica, não concerne, como imagina Baudrillard, a uma perda do princípio de realidade, mas, antes, a que essa realidade – com toda sua opacidade reificada – se falsifica a si mesma numa sociedade em que os sujeitos práticos da produção material da vida se negam e se destituem enquanto sujeitos de e em suas próprias relações sociais. Os chamados pós-modernos – na verdade, os mais apaixonados pela última palavra da modernidade capitalista – “procuram destacar a autonomização da aparência”, nos diz Frederico; “mas assim fazendo, permanecem na esfera subjetiva, examinando fenômenos objetivos sob a ótica da consciência mistificada” (idem). É precisamente assim que, ao invés de explicarem a consciência cotidiana reificada em sua relação com a experiência social cotidiana reificada, os ideólogos do pós-modernismo transformam em “teoria” o ponto de vista imediata, unilateral e aparente desses fenômenos e dessa consciência, na qual os últimos se refletem.
Analisando um conjunto de fenômenos culturais contemporâneos – tais como a publicidade, o chamado “consumismo”, a ideologia pós-modernista – com base na tese de que eles só são compreensíveis, numa posição social crítica, com base na teoria crítica do valor-trabalho (abstrato), Celso Frederico relaciona esses fenômenos ao desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo contemporâneo, às contradições econômicas que daí surgem, à proletarização geral da sociedade e ao domínio, sobre o conjunto do tempo socialmente vivido, da lógica econômica de “economia do tempo”. E conclui, numa concepção unitária da práxis social, afirmando que “a dominação do capital imprimiu sua marca ao conjunto da vida social, evidenciando que economia e cultura não são esferas separadas” (3). De outro modo, podemos concluir, a crítica da cultura é, necessariamente, crítica da economia política.
É uma tal compreensão unitária da práxis social que cimenta a relação entre os dois ensaios aqui publicados. Ambos são esforços de crítica da economia política. A recensão que, a título de Prefácio, fiz deles, embora talvez muita extensa, tem o objetivo de simplesmente mostrar, mais do que argumentar, a afirmação inicial de que este é um livro necessário. Muitas questões não foram aqui nem mesmo tocadas, entre elas questões que são para mim mais discutíveis do que talvez o sejam, para a maioria dos leitores, as que aqui ressaltei e valorizei. De qualquer modo, se pretendi dizer o que o torna necessário, eu o fiz pelo que, neste livro, me parece potencializar-nos à crítica social no presente. É isso que, em sua leitura e na escrita desse Prefácio, me mobilizou de modo apaixonado; li um e escrevei outro febrilmente, num gole só. Digo-o porque isso também explica muito dos defeitos deste meu texto. É que há uma preocupante dialética entre paixão e pressa. A paixão tem pressa pelo seu objeto, pretende tê-lo e consumi-lo rapidamente; mas, com isso, muitas propriedades do objeto são deixadas de lado, tanto as que talvez poderíamos também apreciar quanto as que, por possível desagrado, são incapazes de nos apaixonar. Em nosso caso, porém, este resultado tão unilateral poderá facilmente ser superado pelos outros – mais atentos e circunspectos – leitores deste livro.

João Emiliano Fortaleza de Aquino
Fortaleza, outubro de 2007


EDITORA CORTEZ , SÃO PAULO (PRELO)
[1] No dizer de Debord, porque “de cara, [ela] se encontrara incapaz de se fazer escutar; depois, numa seqüência rápida, de simplesmente se formar” (Debord, G. Commentaires sur la societé du spectacle. Paris: Editions Gallimard, 1992, p. 27).
[2] Cf. Amaral, I. V. Estetismo e mercado: sexualidades, transgressão e captura na experiência contemporânea. In: Vale, A. F. C.; Paiva, A. C. S. (orgs.). Estilísticas da sexualidade. Campinas, SP: Editora Pontes, 2006, p. 19-38.
[3] Debord, op. cit., p. 37.
[4] Ibidem, p. 48.
[5] Cabe aí a mesma explicação histórica que Marx dá para a distinção de seu esforço teórico em relação à Economia Política clássica: “À medida que é burguesa, ou seja, ao invés de compreender a ordem capitalista como um estágio historicamente transitório de evolução, a encara como a configuração última e absoluta da produção social, a Economia Política só pode permanecer como ciência enquanto a luta de classes permanecer latente ou só se manifestar em episódios isolados”. Por isso mesmo, a crítica da economia política “representa [...] uma classe, ela só pode representar a classe cuja missão histórica é a derrubada do modo de produção capitalista e a abolição final das classes – o proletariado” (Marx, K. Posfácio da segunda edição. O capital, v. I, l. I. Trad. bras. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1983, respectivamente, p. 16 e 18). Em outras palavras, para Marx é a luta de classes do proletariado, a crítica prática da sociedade produtora de mercadorias, que produz ao mesmo tempo o dobre dos sinos da Economia Política e o surgimento da crítica teórica da economia política.
[6] Trata-se, na determinação ontológica do trabalho em geral, universal, de uma abstração a partir de formas historicamente particulares de sociabilidade, mas essa é, como diz Marx, uma “abstração com sentido”: “Quando se fala, portanto, da produção, se fala sempre da produção em um estado determinado de desenvolvimento social – da produção de indivíduos em sociedade. Poderia parecer, por conseqüência, que, para falar da produção em geral, teríamos ou bem que seguir um desenvolvimento histórico em suas diferentes fases, ou bem declarar um princípio que tem a ver com uma época histórica determinada, por exemplo, com a moderna produção burguesa [...]. Só que todas as épocas da produção têm certas características em comum, determinações comuns. A produção em geral é uma abstração, mas uma abstração com sentido, na medida em que ressalta realmente o comum, o fixa e nos evita, em conseqüência, a repetição. No entanto, esse elemento geral, ou este elemento comum obtido e isolado mediante a comparação, é por sua vez algo multiplamente articulado que se dispersa em distintas determinações”. (Marx, K. Líneas fundamentales de la crítica de la economía política (Grundrisse), I. Trad. esp. Javier Pérez Royo. Barcelona: Grijalbo, 1977, p. 7-8).
[7] Ibidem, p. 8.
[8] Marx, K.; Engels, F. A ideologia alemã – 1º capítulo (Feuerbach). São Paulo: Moraes, 1984, p. 33-34.
[9] Benjamin, W. O narrador. Obras escolhidas, I. Trad. br. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense: 1985, p. 201.
[10] Marx, K. Teses sobre Feuerbach, § 6. In: Marx, K.; Engels, F. Op. cit., p. 109. Sobre essa concepção benjaminiana da unidade originária da práxis, cf. Agamben, G. “O príncipe e o sapo. O problema do método em Adorno e Benjamin”. In: Infância e história. Destruição da experiência e origem da história. Trad. bras. Henrique Burigo. Belo Horizonte : Editora da UFMG, 2005, p. 129-149.
[11] Debord, Guy. La société du spectacle. Paris: Gallimard, 1998.
[12] Cf. Kurz, R. O colapso da modernização. Trad. bras. Karen Elsabe Barbosa. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1999.
[13] Marx, K. O capital, ed. cit., p. 21.
[14] Quanto ao valor de uso, devo observar que Baudrillard passou longe de o compreender, mesmo superficialmente. O valor de uso, nos diz Marx, “satisfaz necessidades humanas de quaisquer espécie. A natureza dessas necessidades, se elas se originam do estômago ou da fantasia, não altera nada na coisa (O capital, ed. cit., p. 45). Que toda sociedade produza valorações simbólicas (cultuais, ritualísticas, de status etc.) de seus objetos produzidos e usados, assim como indivíduos possam – inclusive do ponto de vista sexual, como ocorre no fetichismo descrito por Freud – dar-lhes uma significação que não tem a ver diretamente com o uso social desses objetos, num e noutro caso tais objetos não deixam de ser valores de uso, produzidos pelo trabalho concreto e que, por suas características físicas, correspondem a determinadas necessidades físicas ou espirituais dos homens. Duas outras questões, porém, são distintas dessa primeira e entre si: por um lado, a compreensão dos processos (sociais ou psíquicos) que produzem tais valorações aos valores de uso; por outro, a compreensão da determinação do valor mercantil deles, já que, independente de qual seu valor de uso social ou individual, eles continuam na sociedade capitalista contemporânea a ser comprados e vendidos. Imerso em confusões, Baudrillard não consegue nem mesmo compreender a qualquer um desses problemas, que dirá respondê-los.