19/09/2007

O LUGAR DO TRABALHO NO MUNDO, HOJE E AMANHÃ

1. LIÇÕES DA HISTÓRIA

Com o fim do socialismo real, entram em cena duas correntes de pensamento. De um lado, os defensores da ordem não se cansam de repetir a lengalenga de sempre: a imprescindibilidade do mercado, considerada como uma instituição natural que cresce e se afirma como a única forma possível de sociabilidade. A queda do muro de Berlim transformou-se na pedra de toque dessa verdade, que se diz eterna. De outro, estão os socialistas que acreditam não ser mais possível uma sociedade sem classes; por isso apostam na possibilidade de dividir o poder político com a classe capitalista. Estes últimos entendem que decretar a falência total das teorias socialistas seria o mesmo que fechar os olhos ao crescimento da pobreza e da miséria, à intensificação da exploração de classe, à concentração monopólica. Noutras palavras, seria o mesmo que jogar mais “lenha na fogueira” ideológica do neoliberalismo ou legitimar as políticas de desmantelamento do Estado social.
Para os socialistas, que defendem a possibilidade de dividir o poder político com a burguesia, nunca é demais lembrar que essa posição tem história; vem de longe, desde os tempos em que a Social-Democracia Alemã apostou que seria possível tomar o poder político pela via legal, pela via eleitoral. Os debates em torno dessa questão deixaram lições extremamente ricas. Dentre eles destaque-se a polêmica de Lênin contra Hilferding e Kautsky, que pode ser acompanhada, em parte, na crítica que ele dirige ao oportunismo dos social-democratas, expressa em seu livro Imperialismo, fase superior do capitalismo, no qual ele acusa, principalmente, Kautsky, de haver cometido o mesmo erro de certos autores burgueses. Estes defendiam a idéia de que

os cartéis internacionais, uma das mais acentuadas expressões da internacionalização do capital, permitiram ter a esperança de que a paz há de reinar entre os povos em regime capitalista. Do ponto de vista teórico, esta opinião é inteiramente absurda; e do ponto de vista prático, é um sofisma e um meio de defesa desonesto, do pior oportunismo (...). Kautsky comete o mesmo erro. E, evidentemente, o que está em jogo não é a burguesia alemã, mas a burguesia mundial[1].

Ora, dizia Lênin, quando o mundo já se encontra totalmente partilhado entre um punhado de grandes monopólios, é um erro, como assim cometeram os kautskistas, tentar atenuar esse fato,

dizendo que ‘seria possível’, sem política colonial, ‘dispendiosa e perigosa’, procurar matérias-primas no mercado livre, e que seria ‘possível’ aumentar em proporções gigantescas a oferta de matérias-primas, graças a uma ‘simples’ melhoria nas condições da agricultura em geral. Estas declarações, porém, redundam na apologia do imperialismo, na sua idealização, pois silenciam a particularidade essencial do capitalismo contemporâneo: os monopólios. O mercaado livre cada vez mais se distancia no passado; os sindicatos e os trustes monopolistas limitam-no a cada dia que passa. E, a ‘simples’ melhoria das condições da agricultura reduz-se à melhoria da situação das massas, à alta dos salários e à diminuição dos lucros. Mas existirão, para lá da imaginação dos suaves reformistas, trustes capazes de se preocuparem com a situação das massas em vez de pensarem na conquistas de colônias[2]?

A crítica de Lênin está ancorada em bases teóricas sólidas. Porque foi capaz de pensar o movimento da economia capitalista como uma totalidade, porque foi capaz de pensá-la do ponto de vista da reprodução do capital, ele pôde atualizar as propriedades essenciais do capitalismo em geral, investigadas e expostas por Marx em O Capital, cuja tendência de desenvolvimento resultou numa nova fase de acumulação do sistema: o imperialismo. Essa nova fase marca o inicio da virada, segundo Lênin, do antigo num novo capitalismo, no qual o domínio do capital em geral, isto é, industrial, fora substituído pelo capital financeiro. Vale dizer: a antiga divisão social do trabalho entre os setores bancário e industrial, como expressão das formas de existência do capital em geral[3], desapareceu para dar lugar ao domínio do capital financeiro, que é a um só tempo capital-dinheiro e capital produtivo[4]. Daí sua exclamação oportuna: “o antigo capitalismo fez a sua época. O novo constitui uma transição”. Duas formas distintas de acumulação? Decerto que sim. Mas, longe de representar uma ruptura do sistema, o imperialismo expressa o acirramento das contradições do capital.
Nesse contexto, Lênin advertia que

se a luta contra a política dos trustes e dos bancos não atingir as suas bases econômicas, ela reduzir-se-á a um reformismo e a um pacifismo burguês, a piedosos e inofensivos desejos. Iludir as contradições existentes, esquecer as mais essenciais em vez de lhes desvendar toda a profundidade, eis ao que conduz a teoria de kautsky que nada tem de comum com o marxismo[5].

Críticas ao vento! Os oportunistas social-democratas fizeram vista grossa às censuras de Lênin. Com seus discursos do tipo “dêem-nos 50,1% dos votos e realizaremos vossos objetivos”, ganharam a confiança da classe trabalhadora e conquistaram não poucas vitórias políticas e econômicas. Conseguiram transformar o voto censitário num direito universal; em muitos países europeus, reduziram a semana de trabalho de 72 para 35 horas; ampliaram o sistema de proteção social e, hoje, os inválidos e doentes contam com serviços de assistência médica e aposentadoria; criaram o seguro-desemprego; universalizaram a educação; além de outros direitos sociais e políticos.
Este é o legado deixado pelos oportunistas da social-democracia. Mas é preciso considerar o reverso da medalha. Não se pode esquecer que toda essa vitória cobrou um preço muito alto, cujas cifras estão registradas na história com números indeléveis de sangue e fogo. O balanço é de Mandel[6], para quem a social-democracia internacional, com honrosas exceções, justificou e facilitou a carnificina de dez milhões de seres humanos durante a Primeira Guerra Mundial, em nome de pretensas razões de defesa nacional. Os governos social-democratas, ou com a participação da social democracia, organizaram ou defenderam guerras na Indochina, Malásia, Indonésia e Argélia. Foram mais longe ainda. Defenderam práticas de tortura e limitaram as liberdades democráticas na Índia, Indonésia, Egito, Iraque e Singapura. Protegeram o regime do apartheid na África do Sul. Participaram da Guerra Fria, além de se tornarem cúmplices das políticas imperialistas. Apoiaram e organizaram as políticas de austeridade monetárias e fiscais, feitas em nome do grande capital, que tiveram como conseqüência o desmantelamento do Estado social, que ajudaram a construir.
Os resultados dessa política oportunista não poderiam ter sido mais desastrosos. Mais de 15% da classe trabalhadora estão desempregadas - quase um bilhão de pessoas; metade da população do Planeta passa fome; 100 mil pessoas morrem de fome por dia[7]. A distância entre os países ricos e pobres cresceu assustadoramente. O consumo per capita de um francês, por exemplo, é da ordem de 5 vezes e meia superior ao de um egípcio; um alemão consome 17 vezes mais do que um indiano; um americano, 35 vezes mais do que um tanzaniano. Se, no final da Segunda Guerra Mundial, a relação entre o Norte e o Sul era de 30 para 1, atualmente, é de 74 para 1, e não pára de crescer[8]. Se, na época de Lênin, não havia mais “territórios sem donos”, hoje o capital está mais concentrado do que nunca. E como! O mundo tornou-se propriedade particular de meia dúzia de empresas. No ramo de supermercado, por exemplo, a Wal-Mart, considerada a maior empresa do mundo, tem seis mil fábricas produzindo para ela, das quais 80% estão na China. Na produção de sementes, a Monsanto controla 90% das sementes transgênicas do globo. As dez maiores empresas farmacêuticas e de produtos veterinários respondem por 59% do mercado mundial. Na área de biotecnologia, a concentração da produção é ainda maior: as dez maiores empresas são donas de 73% das vendas realizadas em todo o mundo. A Bayer, Syngenta, BASF, Dow, Monsanto, Dupont, Koor, Sumitomo, Nufarm e Arista, que exploram a produção e venda de agrotóxicos, juntas, concentram 84% das vendas globais[9].
A voracidade imperialista do capital tornou o mundo deveras abstrato; isto é, num enorme e gigantesco mercado sem fronteiras, onde tudo é mercadoria. Por mais cintilante e ofuscante que sejam as coisas, suas diferenças qualitativas acabam por desaparecer sob o signo dos seus preços; afinal, todas nada mais são do que valores de troca. Até mesmo a geração da vida tornou-se mercadoria negociada na bolsa de valores. Com efeito, protegidas pelo direito intelectual de propriedade, as grandes corporações são donas do mapeamento do DNA humano, das plantas e dos animais; podem fabricar vidas. As experiências mendelinas parecem brincadeiras de jardim da infância diante do poder avassalador das grandes corporações, que, atualmente, têm em suas mãos a capacidade de criar bebês desenhados e seres humanos superiores, todos ao gosto do consumidor.
O mundo todo virou um grande mercado, que opera segundo “leis eternas”, as quais todos estão acorrentados. Nele tudo é tão igual, tão repetitivo, tão apressado, que até mesmo as pessoas chegam a esquecer de si mesmas; só se dão conta de que existem, quando vão ao banheiro. Mundo sem memória, pois tudo parece se reduzir a momentos, que só duram enquanto um novo modelo de mercadoria entra no mercado, para logo ser substituído por outro, também, com data de vencimento marcada. Tudo e todos são apanhados e atirados ao redemoinho do mercado mundial, do qual não podem mais fugir, porque não há mais portas de entrada e saída; todos já nascem dentro dele, crescem nele e nele morrem. O mundo todo virou um grande supermercado.
Nesse contexto, os atuais militantes de esquerda perderam qualquer esperança de encontrar uma saída política desse imenso mercado. Diferentemente dos históricos da antiga social-democracia, que apostaram na possibilidade de construção de um novo mundo, aqueles afirmam o presente e julgam que já não podem mais transformá-lo. Não estão mais preocupados com buscar novas formas de vida, mas, sim, se adaptarem ao existente e aceitar seus valores e representações como evidências inquestionáveis de um mundo que não tem mais futuro. São pragmáticos empedernidos, que se agarram à faticidade do presente existente, para elevá-la à condição única de toda e qualquer práxis humana. Assim pensam e agem os sindicatos, ao transformarem suas entidades em agências de emprego e de auxílio aos seus filiados, com serviços médicos, odontológicos, jurídicos empréstimos consignados, dentre outras coisas. Não é diferente do que acontece com os partidos políticos de esquerda. Trocaram os projetos ideológicos de outrora pela administração do sistema, na medida em que aceitam os fatos do dia-a-dia como medida do seu agir e pensar. Mais uma vez procuram iludir as contradições do sistema, em vez de procurar desvendá-las em toda a sua profundidade, como advertia Lênin em seu Imperialismo: fase superior do capitalismo. Da forma mais desavergonhada e desonesta, enveredam pelo caminho da solidariedade; elegem a urgência como principio motor de suas ações. Noutras palavras, trocaram a militância política de outrora pela ação humanitária, pois acreditam que salvar uma vida humana, lidar com o imediato, para enfrentar situações particulares é muito mais importante do que lutar pelo socialismo ... tão distante do presente! Assim, fazem do pragmatismo humanitário uma opção ideológica.
Quanta hipocrisia! Nisso nada há de opção ideológica, e, sim, de sobrevivência, de conformismo.
2. O CAPITALISMO NÃO É MAIS O MESMO
Que importa que assim sejam julgados, se estão convencidos de que podem apagar o fogo da floresta, carregando água com as mãos. Quando todos se fazem de surdos, não adianta gritar-lhes; melhor deixá-los em paz e retomar o diálogo com Lênin. Dessa feita, para convidá-lo a visitar o presente, no qual o capitalismo adquiriu novo fôlego e novas determinações, que, em seu tempo, não podiam se realizar dentro das formas estabelecidas de existência do capital financeiro.
Somente a partir da década de sessenta do século passado, são criadas as condições políticas e econômicas[10] para a consolidação de um verdadeiro mercado mundial do dinheiro, que abriu uma nova fase de financeirização da economia, que se expressa [1] no declínio da moeda e dos depósitos bancários enquanto fontes de financiamento do processo de acumulação; [2] na desintermediação financeira, por conta da expansão das técnicas mediante a emissão de títulos, que passaram a substituir os empréstimos bancários convencionais; [3] na ampliação das funções financeiras no interior das corporações produtivas; [4] na transacionalização de bancos e empresas; [5] na interdependência de taxas de juros e de câmbio, [6] no déficit público endogeneizado, isto é, financiado mediante a emissão de títulos públicos renegociáveis do mercado de capitais; [7] na compra e venda de corporações como um negócio específico das empresas produtivas; [8] fusões como modalidade mais importante de investimento; [9] na natureza multinacional, multissetorial e multifuncional das grandes corporações que operam no mercado mundial; e [10] na permanência do dólar como moeda estratégica mundial[11].
Nesse contexto, as diferentes unidades de capital tornam-se indiferentes à forma concreta [comércio, indústria, serviços, etc] de se que reveste no processo de valorização. As empresas não se configuram mais como unidades particulares de capital, operando num determinado setor da economia, a produzir uma mercadoria específica. Não são mais células petrificadas dentro do universo da produção de mercadorias, explorando uma atividade, ou sob a forma de capital-dinheiro, ou de capital produtivo, ou de capital-mercadoria. Essas configurações do capital, que foram ossificadas pela divisão do trabalho, perderam sua independência relativa e deixaram de ser campos específicos de investimentos de capitais particulares. Que o diga Chenais, para quem a companhia multinacional
está assumindo, cada vez mais, o papel de regente da orquestra, em relação a diversas atividades de produção e transações, que se dão no interior de um 'cacho' ou 'rede' de relações transnacionais, tanto internas como externas às companhias, e que podem incluir ou não um investimento de capital, mas cujo objetivo consiste em promover seus interesses globais[12].
A empresa multinacional apagou as fronteiras setoriais da economia, na medida em que sua estratégia de atuação abstrai as formas concretas em que investe seu capital. Ela deixa de ser cada vez mais uma empresa predominantemente industrial ou de serviços, bem como uma companhia bancária ou financeira. E deixa, porque sua estratégia de valorização apóia-se numa lógica tecno-financeira, que tem sua base de competitividade alicerçada
... na definição de um know-how e na P&D. Ela tenta valorizar essa vantagem em todos os setores onde for possível sua competência tecnológica. Com isso ela tenderá a sair do seu setor de origem e diversificar-se em modalidades totalmente originais. Sua nova força reside em sua capacidade de montar 'operações complexas', [que] que irão exigir a combinação de operadores vindo de horizontes muito diferentes: empresas industriais, firmas de engenharia, bancos internacionais, organismos multilaterais de financiamento. Destes, uns serão locais, outros terão estatuto internacional[13].

A companhia multinacional se configura, assim, como um verdadeiro grupo congregando várias filiais, sob o controle de um centro de decisão financeiro chamado holding. Este centro estabelece uma teia de vínculos, principalmente financeiros, entre um número variado de empresas envolvidas em múltiplas atividades, de modo a tirar vantagens das diferentes oportunidades de valorização do capital. Para isto, ele precisa adquirir uma extrema mobilidade, de modo a permitir à direção do centro investir ou desinvestir massas de capitais, de acordo com as exigências de valorização do mercado.
Não sem razão, Chesnais define a empresa multinacional como uma unidade de capital, cujo
... objetivo é a auto-valorização, a obtenção de lucro, em condições nas quais o ramo industrial, bem como a localização geográfica do comprometimento do capital têm, em última análise, caráter contingente. Nessas condições, um dos atributos idéias do capital, que é também, mais do que nunca, um dos objetivos concretos colocados pelos grupos, é a mobilidade, a recusa a se prender a determiminadas modalidades de comprometimento setorial ou geográfico - qualquer que tenha sido sua importância na formação e crescimento do grupo - , bem como a capacidade de se soltar, de desinvestir tanto quanto de investir.[14]

Nisto reside o novo de que se reveste a empresa multinacional. Mais precisamente, sua particularidade consiste no fato de que ela rompeu os limites da divisão social do trabalho, na medida em que não é apenas uma unidade dentro da cadeia da produção social, voltada para produzir uma mercadoria específica e destinada a satisfazer uma necessidade particular. Como capital em geral, ela é um lugar abstrato de valorização de valor, que não importa a forma concreta que assume. Ela é capital-dinheiro, capital produtivo e capital comercial, sem deixar se petrificar em nenhuma dessas formas. Ela assume e abandona essas formas, sem se perder em nenhuma delas, na medida em que se modificam as exigências de valorização. Todas são igualmente meios milagrosos para fazer de dinheiro mais dinheiro. Assim, a empresa multinacional realiza o ideal do capital, que tem a si próprio como fim, e que, por isso, é indiferente à qualidade particular do setor em que se encontra investido[15].
A partir de então, não há mais domínio de uma fração do capital sobre as demais, pois cada unidade de capital (empresa) opera simultaneamente como capital-dinheiro, capital produtivo e capital-mercadoria. Essas diferentes formas de existência do capital não estão mais subsumidas ao capital financeiro, pois o capital se tornou uno, sem formas empiricamente distinguíveis. Conseqüentemente, a categoria de capital em geral volta a ser a única forma de existência do capital. Nesse sentido, essa categoria é bem mais apropriada do que a de capital financeiro, para dar conta das novas determinações do capitalismo contemporâneo[16]. Até mesmo do ponto de vista de suas implicações políticas, a categoria capital em geral traduz com mais precisão o capitalismo de hoje. Com efeito, quando se fala do capital financeiro, a impressão, que vem à mente, é a de que se trata de uma forma especulativa de capital, que impede a expansão do capital industrial e, assim, a geração de riqueza e de postos de trabalho. Ora, na sua nova configuração, o capital industrial é tão especulativo quanto o é o capital financeiro. Prova disto é o fato de que 40% dos lucros das grandes corporações industriais japonesas, por exemplo, são provenientes de atividades não-operacionais, isto é, são produtos de especulação no mercado financeiro. É, portanto, um erro político acreditar que o combate ao capital financeiro recolocaria a economia nos trilhos da prosperidade, como acreditam aqueles que vêem no neoliberalismo a causa da crise do capitalismo.


3. O FUTURO DO TRABALHO

Qual é o lugar do trabalho nesse novo estágio de desenvolvimento do capitalismo? Ainda é possível apostar nas políticas públicas do Estado? Noutras palavras, o Estado, como o fez no passado, teria poder suficiente para assegurar uma política de trabalho de pleno emprego?
Ninguém melhor do que Celso Furtado para responder a essas questões. Otimista por natureza como o foi, quem sabe se ele não pode trazer alguma esperança, para desfazer o pessimismo que carregam as idéias até aqui desenvolvidas. Quem conhece sua obra sabe que, para ele, o desenvolvimento e o subdesenvolvimento são dimensões de um mesmo processo histórico. Eis a razão porque, segundo assim pensava, a divisão internacional do trabalho tenderia a aprofundar ainda mais a distância entre o centro e a periferia do sistema. Conseqüentemente, sua conclusão não poderia ser outra: as forças de mercado não seriam suficientes para superar tal estado de coisas. Daí a sua aposta na construção de um projeto político, que deveria ser orientado por duas idéias-força: (1) deslocar o eixo da lógica da acumulação do lucro pelo lucro, para uma lógica dos fins, em função do bem-estar social, e (2) incentivar a cooperação e solidariedade entre os países do centro e da periferia.
Infelizmente, Furtado morreu sem ver concretizado o seu projeto político. Pouco tempo antes de sua despedida definitiva, chegava à conclusão que

hoje, mesmo na Europa, não se vê horizonte para uma relativa harmonia baseada no pleno emprego. Para manter o nível de agressividade das economias capitalistas tornou-se necessário abandonar as políticas de emprego. O aumento de produtividade se desassociou de efeitos sociais benéficos. Esta é a maior mutação que vejo nas economias capitalistas contemporâneas”.

Pessimismo de quem se cansou de lutar por um sonho que não viu realizar-se? Ou se trata da disposição de ânimo de um espírito abatido pelos reveses do tempo? Quem dera que assim fosse! Furtado não é o único a não mais acreditar numa sociedade de pleno emprego. Seu pessimismo faz eco com outras vozes. Para Juán Somavia, diretor geral da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o crescimento econômico não é mais capaz de gerar postos de trabalho suficientes para acabar com o desemprego. Segundo ele, em 2004, a taxa de crescimento da economia mundial, que foi da ordem de 5,1%, resultou apenas num aumento de 1,8% no número de pessoas ocupadas. Mas isso ainda não traduz toda a questão. Até 2015, argumenta Somavia, “cerca de 400 milhões de pessoas se incorporarão à força de trabalho. Isto quer dizer que mesmo que se consiga um crescimento acelerado do emprego para produzir 40 milhões de postos por ano, a taxa de desemprego baixaria apenas 1% em 10 anos”.
No Brasil, as perspectivas para o trabalho são igualmente desanimadoras. Estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o mercado de trabalho no Brasil está encolhendo. Uma pesquisa realizada por essa instituição junto à indústria automotiva, revela que nos anos 80, para uma capacidade de produção de um milhão e quinhentos mil veículos, este setor empregava 140 mil trabalhadores. Hoje, para uma capacidade de produção de três milhões de veículos, as montadoras empregam apenas 90 mil trabalhadores.
Diante dessa realidade, o IBGE sugere duas políticas de intervenção no mercado de trabalho: (1) um agressivo programa de requalificação profissional, e (2) uma drástica redução da jornada de trabalho. Infelizmente, o alcance de tais medidas depende de uma séria de outras condições. No que concerne às políticas de formação profissional, seus resultados estão diretamente sujeitos ao desempenho da economia. Com efeito, para Beatriz Azeredo, economista do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), “... a eficiência desses programas tende a reduzir-se pela disputa de um maior número de desempregados pelas vagas existentes”. Vale dizer, tais políticas são de pouco valor se a economia não estiver criando novos e bons empregos.
Quanto à redução da jornada de trabalho, o IBGE reconhece que seu alcance é, também, limitado. Num contexto de economias globalizadas, a diminuição do tempo de trabalho, diz essa instituição, “não pode ser um ato isolado e unilateral de um só país ou dois. É preciso estabelecer uma nova jornada de trabalho de caráter universal, algo como uma resolução da Organização das Nações Unidas por todos os países e para ser fiscalizada a sua aplicação por um órgão tipo OIT, a Organização Internacional do Trabalho, para que não haja um desequilíbrio nos custos de produção e quebra da eqüidade competitiva entre países no mercado mundial. E, também, para que não haja redução de salários ...”.
Mesmo que se admita uma menor jornada internacional do trabalho, ainda assim não se podem esperar grandes resultados. No caso do Brasil, seria preciso retirar do mercado de trabalho 11 milhões de pessoas, que não deveriam estar trabalhando. Estudos realizados pelo economista Marcio Pochmann mostram que cerca de 2 milhões de crianças, com menos de 14 anos de idade, estão trabalhando ou procurando trabalho. Some-se a este contingente de pessoas, que deveriam estar na escola, 6 milhões de aposentados e pensionistas que continuam trabalhando. Mais grave ainda: 3 milhões de pessoas têm mais de um emprego. Conseqüentemente, menores oportunidades para quem está chegando ao mercado pela primeira vez ou se encontra em busca de um novo trabalho.
Na “Terra do Sol”, o cenário não é menos desanimador. Com uma população estimada de 2,4 milhões de pessoas, Fortaleza tem, hoje, mais de 164 mil desempregados. É muita gente de braços cruzados. Segundo dados do Instituto do Desenvolvimento do Trabalho (IDT), em 1984, 14,74% da força de trabalho estavam procurando trabalho. No ano seguinte, em 1985, essa situação não se alterou; 14,72% continuavam à procura de trabalho. Nos anos 90, somente em 1993, o desemprego caiu abaixo de dois dígitos: 9,13%. Daí em diante, o desemprego voltou a crescer até atingir a taxa de 13,56%, em 1999. Nos anos que abrem o século 21, o desemprego continuou a afligir parcela significativa da força de trabalho. Em 2000, Fortaleza tinha 12,95% de desempregados; em 2001, o desemprego jogava na rua 16,12% dos trabalhadores; atinge 15,30%, em 2002; 16,91%, em 2003 e 17,03%, em 2004. No ano passado, em 2005, 15,68% dos trabalhadores estavam desempregados. Uma queda significativa, se comparada com o ano anterior, 2004. Mas, não há muito a comemorar. Em 2006, o desemprego volta a crescer, atingindo, em março deste ano, 16,21% da força de trabalho. São mais de 20 anos com taxas de desemprego bem acima de 10%. Que coisa! Parece que não há mais lugar para o trabalho no mundo de hoje. A julgar pelo diagnóstico aqui desenhado, não há como afirmar o contrário. Felizmente, nenhum ceticismo é de todo absoluto. Como diria David Hume, a natureza sempre trabalha contra o cético. Por mais que ele insista em não acreditar em nada, até mesmo em sua própria existência, o mundo não se acaba. Há que continuar a lutar para permanecer vivo. Se é assim, não é descabido pensar num mundo diferente; num mundo onde haja lugar para o trabalho. Quem sabe se não seria possível resgatar o sonho de Celso Furtado? A social-democracia um dia tentou substituir a lógica do lucro pela lógica dos fins, em função do bem-estar social. Conseguiu avanços importantes, a despeito de hoje ser obrigada a abrir mão de muito de suas conquistas históricas. Se uma vez deu certo, não seria oportuno tentar de novo? Quem sabe se, desta vez, não se possa abrir uma porta para o socialismo?
[1] Lênin, V. O Imperialismo: fase superior do capitalismo. – São Paulo: global editora distribuidora ltda, 1982. p. 73.
[2] Idem, Ibidem., p. 82.
[3] Marx, Karl. Para a crítica da economia política. – São Paulo: Abril Cultural., 1982. Liv. II, p. 53. “Na circulação, o capital industrial" ... assume duas formas, a do capital-dinheiro e a do capital-mercadoria; no estágio de produção, a forma de capital produtivo. O capital que no decurso do seu ciclo ora assume ora abandona essas formas, executando através de cada uma delas a função correspondente, é o capital industrial (....), no sentido de abranger todo ramo de produção explorado segundo o modo capitalista".
[4] Lênin, V. Op. cit. p. 45: “o século XX marca o ponto de partida de viragem em que o antigo capitalismo deu lugar ao novo, em que o domínio do capital financeiro substituiu o domínio do capital em geral”
[5] Idem, Ibidem. P. 92.
[6] Mandel, Ernest. Situação e Futuro do Socialismo, in O Socialismo do Futuro: Revista de debate político. – Lisboa: Publicações Dom Quixote Ltda. Vol. 1, Nº 1, 1990., p. 84/86.
[7] Idem, Ibidem: p. 91: “Segundo a UNICEF, morrem todos os anos de fome e por causa de doenças curáveis, nos Países do Terceiro Mundo, 16 milhões de crianças. Em cinco anos, este índice de mortalidade equivale ao total de baixas ocorrido em toda a Segunda Guerra Mundial. Em cada cinco anos desenrola-se pois uma guerra mundial contra os meninos do Terceiro Mundo: este é o resultado do funcionamento real da economia capitalista internacional tão prezado por alguns socialistas”.
[8] As estatísticas sobre a concentração da renda são de George, Susan. O Relatório Lugano: sobre a manutenção do capitalismo no século XXI. . – São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.
[9] Relatório do Grupo ETC, Oligopoly Inc 2005: www.etcgroup.org
[10] Para uma análise das condições políticas e conômicas que possibilitaram a criação de um mercado mundial do dinheiro, ver Moffitt, Michael. O dinheiro do Mundo: de Bretton Woods às beira da insolvência - Rio de janeiro: Paz e Terra, 1994.
[11] Ver Braga, José Carlos. Financeirização Global: o padrão sistêmico de riqueza do capitalismo contemporâneo - in O Poder do Dinheiro: uma economia política da globalização - Maria da Conceição Tavares/ José Luis Fiori (organizadores). - Petrópolis, Rj. Vozes, 1997.
[12] Chenais, François. Chenais, François. A Mundialização do Capital - São Paulo: Xamã, 1996, p.69.

[13] Idem, ibidem. P. 77.
[14] Idem, ibidemj. P. 81.
[15] Essa mobilidade e autonomização do processo de acumulação diante as diferentes formas de existência do capital têm um preço político muito alto: a perda de poder do Estado para disciplinar e normatizar o crescimento e o desenvolvimento da economia. O Estado torna-se refém da lógica do capital, pois no movimento de financeirização do processo de acumulação, como diz Braga, “... se insere a interdependência patrimonial - e não apenas comercial e creditícia, como antes, dos proprietários dos principais países industrializados, pela qual seus ativos e passivos estão conectados a ponto de tornar a gestão público-privada da riqueza forçosamente interativa e supranacional, ainda que sem a coordenação virtuosa pretensamente almejada pelo G-7”. Em conseqüência disso, acrescenta que “... está a transformação das finanças públicas em reféns ao ponto de lhes reduzir sensivelmente a capacidade de promover o gasto autônomo dinamizador do investimento, da renda e do emprego; de tornar financeirizada a dívida pública que, como tal, sanciona os ganhos financeiros privados e amplia a financeirização geral dos mercados [Braga, José Carlos. op. cit. 233/8].

[16] Lênin fala da dependência do capital industrial e comercial com relação ao capital bancário, não do fim dessas formas de existência do capital. Os bancos apropriam-se de fatias crescente do lucro industrial e comercial sem, contudo, perderem sua característica de capital-dinheiro. Para ele, “se um banco desconta duplicatas de um industrial, se lhe abre uma conta corrente, etc., essas operações, enquanto tais, em nada diminuem a independência deste industrial. Porém, se estas operações se multiplicam e ocorrem regularmente, se o banco reúne, nas suas mãos, enormes capitais, se a escrituração das contas correntes de uma empresa permite ao banco – e tal é o que sucede – conhecer, com cada vez maior amplitude e precisão, a situação econômica do cliente, daí resulta uma dependência, cada vez mais completa, do capitalista industrial em relação ao banco” [Lênin, op. cit. p. 40]. Dependência crescente, atente-se, que não elimina a divisão social do trabalho entre bancos e indústria.

ÉTICA: UM DISCURSO INÓCUO?

1. O MUNDO É QUADRADO

Adriana Calcanhoto esquadriou o mundo com as cordas do seu violão. Viu tudo quadrado. Da janela do seu quarto, da janela do seu carro, da tela da sua TV, vê pessoas a correr de um lado para o outro, a passar umas pelas outras sem se perceberem, a espremerem-se nas filas dos bancos, dos hospitais, dos transportes coletivos, sem se tocarem, sem se falarem, pois não se vêem, porque ninguém conhece ninguém. Todas estão muito apressadas, sempre correndo de um lugar para outro. Não podem parar porque o mundo não pára.

Quer diabos de mundo é esse em que tudo aparece pelo quadrado das janelas, das telas de TV, dos olhos mágicos, das câmaras bisbilhoteiras! Tudo é tão igual, tão repetitivo, tão apressado, que as pessoas só se dão conta de sua existência, quando vão ao banheiro. Mundo sem memória, pois tudo se reduz a momentos, que só duram enquanto um novo modelo de mercadoria entra no mercado, para logo ser substituído por outro, também, com data de vencimento marcada. Tudo e todos são apanhados e atirados ao redemoinho do mercado mundial, do qual não podem mais fugir, porque não há mais portas de entrada e saída; todos já nascem dentro dele, crescem nele e nele morrem. O mundo todo virou um grande supermercado.

Que diabos de mundo é esse? É o mundo da Xuxa, com sua cara esticada de botoxes; da Ana Maria Braga e do seu louro José; da Angélica dos sábados à tarde, com seu programa de visitas às mansões dos artistas de sucesso da Globo, ensinando regras de etiquetas para peruas desocupadas; da Hebe Camargo, com seu auditório cheio de consumidoras de oxigênio; do Gugu e do seu canarinho amarelo a cantarolar pios melódicos para criancinhas cheirosas, bem vestidas e alimentadas. Esse mundo é o mundo da Globo, do SBT, da Record. Nele só entra quem pode freqüentar os shoppings centers da cidade. Lá se vende de tudo: roupas da última moda, carros, bebidas, computadores ... Tudo embalado em papéis e sacos com letreiros luminosos, para chamar a atenção de todo mundo. Tudo tão bem empacotado que até mesmo as pessoas parecem feitas de plástico!

Que diabos de mundo é esse! Parece mais uma caverna, não? E realmente o é. Não a caverna de Platão, pois tudo é tão iluminado que não há mais sombras projetadas nas paredes, porque paredes não há ... só espelhos. Mundo de escravos sem correntes, porque correntes não há, pois não sabem que são escravos, ou não querem saber.

Mas, nem tudo nem todos são tão iguais. Pedintes e maltrapilhos são proibidos de entra nesse mundo, para não enfear o ambiente e atrapalhar os consumidores. Metade da população do Planeta não participa desse imenso supermercado. Um bilhão de desempregados vivem a perambular de fila em fila atrás de um trabalho; os velhos são jogados nas sarjetas; crianças e adolescentes vivem nos porões do submundo da prostituição; mendigos vivem a esmolar pelas ruas e as crianças abandonadas a cheirar cola.

2. INDIGNAÇÃO ÉTICA

Quanta injustiça! Por que tão poucos têm tanto e a imensa maioria das pessoas nada tem? Que foi feito da solidariedade? Do amor ao próximo? Da benevolência?
Teriam os homens esquecidos as lições do direito natural, que afirmam que todos nascem livres e iguais? Não foi em nome desse princípio que foram feitas as grandes revoluções? Não é uma imoralidade deixar uma criança morrer de fome? Prender uma mãe que praticou um furto, para comprar remédios para seu filho doente? Por que não dividir o pão com quem não tem? Por que fazer o mal, quando se pode praticar o bem? Que culpa tem uma pessoa rica e abastada, se ela nada tem a ver com a pobreza dos outros, pois nunca explorou nem saqueou ninguém? Essa pessoa nada tem a ver com o sofrimento das outras? Pode sentir-se livre de toda e qualquer responsabilidade pelo que acontece com os outros?

Todas essas questões estão carregadas de indignação ética, na medida em que perguntam porque o mundo é assim. Ora, quem levanta tal questionamento está, na verdade, pressupondo que as coisas poderiam ser diferentes. E é justamente disso que trata a ética, pois lida com aquilo que pode ser diferente do que é. Ninguém, por mais insensível que seja, pode deixar de se perguntar pelo sentido da vida, uma vez que todas as pessoas são dotadas de razão e de consciência. Sabem que são responsáveis não só pelas suas atitudes e atos, como também pelas conseqüências de suas ações. Afinal, ninguém vive só no mundo. O que cada um faz ou deixa de fazer tem a ver com os outros.

3. ÉTICA E POLÍTICA

Mas, por que devem as pessoas preocupar-se pelos seus atos e ações, responder por eles? Se esta questão fosse dirigida a Aristóteles, decerto responderia que o homem é um ser naturalmente social, que somente na companhia dos demais pode ser feliz[1]. Mas, o que ele entende por felicidade? Gozar de uma vida prazerosa, cheia de riqueza e conforto? Não, responderia ele, a felicidade não pode ser identificada com a riqueza e o prazer[2]. Não são as coisas materiais que a definem. Claro que ninguém pode viver feliz, diria Aristóteles, sem dispor de certo conforto material[3]. Mas, mais importante do que as coisas são os bens espirituais - os verdadeiros bens da alma. Sendo assim, a verdadeira felicidade consiste em viver conforme as leis da razão, que dizem que o homem é um ser incompleto e que somente pode alcançar a perfeição na companhia dos demais.

Mas, viver em conformidade com a razão não seria entregar-se a uma vida de beatitude? Viver entregue a meditações, sem se importar nem se revoltar contra as condições sociais? Não, diria Aristóteles, pois, para ele,

uma andorinha não faz verão (nem faz um dia quente); da mesma forma um dia só, ou um curto lapso de tempo, não faz um homem bem-aventurado e feliz[4].”

Ser feliz, portanto, é viver uma vida intensa, participativa, voltada para cuidar das coisas da cidade. Ser feliz é ser cidadão, ser co-participante da vida pública, responsável pelos negócios públicos. Nesse sentido, a polis é o lugar, por excelência, de realização do homem como ser livre. Sua função, segundo comenta Oliveira,

... consiste em trazer o homem à sua humanidade, isto é, a efetividade do ser do homem enquanto tal. [...] Ela é, assim, o chão em que a vida humana se constitui como vida humana. O Homem só atinge seu ser enquanto comunidade política.[5]
Se a polis é o lugar de realização da liberdade, da felicidade, então, a Política tem de ser necessariamente ética. Como diria Cirne-Lima[6], ao se desenvolver e concretizar-se, a ética vira política, sem rupturas e sem mistérios.

Torna-se mais claro, agora, porque as pessoas devem preocupar-se com os outros, com as conseqüências de suas ações e atos. Porque o homem é naturalmente um ser social, sua vida é marcada por normas, regras e valores, que o fazem um ser da moral. A vida em sociedade leva-o necessariamente a perguntar, mesmo que não tenha plena consciência do que faz, pela razão de sua existência. Por que age de uma forma e não de outra? Se suas ações são conforme o que foi previsto? O que justifica suas decisões? O que é bom e o que é mal? O que é a justiça? O que deve ou não fazer?

Estas perguntas não só não são inevitáveis, mas passíveis de serem discernidas e avaliadas criticamente pelo homem, porque além de sua condição eterna e naturalmente social, ele é um ser dotado de razão. Porque vive em sociedade e só nela e por meio dela pode sobreviver, o homem depara-se com problemas práticos como os que foram acima enumerados. Por isso, para Aristóteles, o homem é um ser moral. Sua condição de ser social obriga-o a agir moralmente, na medida em que a ação de cada indivíduo afeta a dos demais. Não há, portanto, vida humana sem valores e representações.







4. A ÉTICA NA ÉPOCA DAS LUZES E DAS SOMBRAS

Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento.

Se for feita então a pergunta: “vivemos agora em uma época esclarecida [aufgeklärten]?”, a resposta será: “não, vivemos em uma época de esclarecimento (...)”. Falta ainda muito para que os homens, nas condições atuais, tomados em conjunto, estejam já numa situação, ou possam ser colocados nela, na qual em matéria religiosa sejam capazes de fazer uso seguro e bom de seu próprio entendimento sem serem dirigidos por outrem. Somente temos claros indícios de que agora lhes foi aberto o campo no qual podem lançar-se livremente a trabalhar e tornarem progressivamente menores os obstáculos ao esclarecimento (...) geral ou a saída deles, homens, da sua menoridade, da qual são culpados[7].



Nessas duas passagens, Kant entende a modernidade como uma época de promessa, na qual o homem começa a fazer uso da sua razão para sair do estado de menoridade, que ele mesmo se deixou cair. É uma época de desencantamento, de libertação das alienações mágico-religiosas do mundo; um tempo de luzes, que permitirá ao homem assumir o controle do seu destino, segundo as diretrizes de uma razão esclarecida. Doravante, ele já não precisa mais recorrer aos meios mágicos, para dominar ou implorar aos espíritos que façam por ele o que não pode fazer por si só. Não, na época do esclarecimento, o homem é o seu próprio agente, basta que “tenha a coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem”.

Alto lá! Que novidade é essa que Kant celebra, ao incitar os homens a fazer uso da razão? Os gregos já não diziam a mesma coisa, ao definirem o homem como um ser de razão? Viver em conformidade com a razão não era o que ensinavam Platão e Aristóteles em sua filosofia? Claro que sim. Mas, se é assim, que diferenças há entre Kant e os antigos? Abissais, para ser breve e direto. São duas formas distintas de sociabilidade, com formas radicalmente diferentes de pensar o mundo. No mundo grego, os indivíduos estavam diretamente ligados à sociedade por laços de parentesco, de amizade e de proximidade. Não sem razão, Aristóteles definia a comunidade não como uma associação de indivíduos, com o fim de evitar ofensas recíprocas e de intercambiar os produtos dos seus trabalhos[8]. Não são os interesses, sejam estes militares ou econômicos, o chão sobre o qual se ergue e se estrutura a comunidade. Estes são apenas pré-requisitos para a existência da vida em sociedade. Mais importantes do que eles é a amizade[9]. Esta é a verdadeira motivação do convívio humano, pois a cidade existe para tornar possível a realização de uma vida perfeita e feliz; de uma vida boa, como diria Aristóteles.

Acontece que pertencer a polis não era fruto de uma escolha, de uma opção deliberada das pessoas. Os gregos entendiam que a razão não era determinadora da ação dos homens, mas, sim, acolhedora de uma ordem prévia, que estabelece o lugar que cada um deve ocupar dentro da sociedade. Ser livre, neste caso, seria viver sua essencialidade, que está para além dos fatos mundanos, uma essencialidade dada desde sempre para sempre. Nesse sentido, a filosofia grega nega a historicidade da vida, na medida em que o que o homem dever ser, já está de antemão determinado pela natureza[10].

Bem diferente é a forma moderna de integração social. Nela, os vínculos que prendem os indivíduos em sociedade são determinados por uma necessidade externa: o mercado. Com efeito, nas sociedades mercantis, cada indivíduo só serve ao outro para servir a si próprio. Conseqüentemente, o que o leva a buscar a companhia dos outros indivíduos é unicamente o proveito próprio. Como proprietário privado, seu destino depende da sorte de suas mercadorias; se não consegue vendê-las, permutá-las por outras, seu trabalho não será reconhecido pelos outros indivíduos, sua sobrevivência torna-se ameaçada. Sua vontade é a vontade das coisas.

Nesse mundo de mercadores, onde cada indivíduo está unicamente preocupado com seu próprio umbigo, os homens não mais aceitam viver uma vida regrada por normas rígidas, fundadas em valores morais eternos. A ordem social passa a ser, agora, legitimada em nome do progresso, que traz a promessa de libertá-los do jugo da natureza, e, assim, afirmá-los como donos do mundo. Para falar com Hegel, é o homem que desperta para o temporal e mira com alegria o futuro promissor, pois sabe que está em suas mãos o poder para construir esse novo mundo prometido pela razão.

É nesse contexto, que Kant incita os homens a serem donos do seu próprio destino, pois entende que as luzes do progresso os acordaram para fazer uso da razão. Noutras palavras, os homens podem entender, agora, que são seus próprios agentes. Se se desejar, trata-se da conquista da subjetividade, entendida como capacidade de o homem livrar-se de forças externas à sua vontade e, assim, poder afirmar-se no mundo como senhor absoluto de sua vida e destino.

Doravante, a razão humana passa a ser entendida como poder de transformar o mundo, e não mais, como entendia o pensamento grego, como poder de conhecer a ordem imutável do universo. A razão é negativa, crítica, em oposição à concepção metafísica, que a via como positividade passiva.

Para Kant, ser livre é, portanto, fazer uso da razão, pois todos os homens são racionais; basta que façam bom uso do seu entendimento para viver uma vida verdadeiramente livre. Mas atenção, fazer uso da razão não pode ser determinado de fora para dentro, isto é, por instâncias que estejam acima da vontade dos indivíduos, mas, sim, por decisões tomadas a partir da vontade de cada um querer o bem por si mesmo. Como diria Kant, em A Fundamentação da Metafísica dos Costumes, "Quando se trata do valor moral, o que importa não são as ações exteriores que se vêem, mas os princípios internos da ação, que não se vêem".

Ser livre depende, portanto, da vontade dos indivíduos; basta ouvir a voz da razão, que está dentro de cada ser humano. Mas, se a liberdade depende da vontade de cada pessoas, isto não joga as ações morais num caos relativista, em que cada um pode decidir o que julga ser bom ou mal? Não porque as ações dos indivíduos só têm valor moral se podem ser universalizadas. Daí que, para Kant, cada um deve comportar-se sempre de modo que o que deseja para si torne-se lei universal. Noutras palavras, uma ação só pode ser julgada moral se ela independe de qualquer inclinação, de qualquer interesse particular. Quem, por exemplo, pratica a caridade movido pelo sentimento de pena, ou porque deseja parecer um bom filho aos olhos do Pai Celestial, não age moralmente, mas, sim, movido ou pelo sentimento de piedade, ou pela esperança de ganhar o reino do céu. Para receber o estatuto de moralidade, a ação deve poder ser expressa como uma lei universal. Ou, como diz Kant, “age de modo tal que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal”.

Acontece que todas as ações humanas são subjetivas. Como é possível, então, saber se uma ação particular é universalizável? Para responder a essa questão, Kant formula o princípio supremo da moralidade, para distinguir os imperativos hipotéticos dos imperativos categóricos. Um imperativo é hipotético, quando seus fins dependem de determinados meios. Por exemplo, se alguém desejar uma vida saudável, deve comportar-se de forma regrada: alimentar-se bem, praticar exercícios, etc. Essa ação, embora correta, justa, não pode ser considerada moral, pois o seu fim depende de certas condições. Essa ação é, pois, heterônoma; não pode ser, portanto, considerada como um princípio moral.

Por sua vez, o imperativo categórico, como a própria expressão indica, comanda absolutamente a ação e, portanto, é o critério a partir do qual pode-se avaliar se uma ação é verdadeiramente moral, válida, sem exceção, para todos os seres dotados de razão. Um exemplo esclarece melhor tudo isso. Se alguém se encontrar em uma situação embaraçosa e procurar sair dela mentindo, descobrirá que a mentira não pode se tornar uma lei universal. Com efeito, ninguém pode desejar que a mentira se torne uma máxima universal, porque isso destruiria a verdade[11].

O imperativo categórico é o procedimento pelo qual se testa a capacidade de universalização das ações morais. Trata-se de um procedimento formal, na medida em que ele não estabelece uma lista de mandamentos para ação, mas a julga unicamente da perspectiva de sua intenção, da liberdade de agir por simples dever. Conseqüentemente, a lei moral só tem sentido porque o homem é um ser livre, tem consciência de que o é, e, portanto, deve agir moralmente, porque pode assim fazê-lo. Como diria Kant, “deves , logo podes”.

Agir moralmente significa, portanto, que os indivíduos devem tratar uns aos outros como livres e iguais. Livres e iguais porque todos são seres de razão, podem fazer uso do seu entendimento sem precisar do concurso alheio. Neste sentido, os indivíduos defrontam-se como sujeitos portadores de igual dignidade. Conseqüentemente, diante da lei moral, ninguém é mais do que ninguém, todos são iguais. Sendo assim, como diria Kant, cada um deve proceder de maneira a tratar a humanidade, tanto na sua pessoa como na de todos outros, como fim, nunca como puro meio[12]. Noutras palavras, ninguém deve tratar o outro como objeto nem se deixar ser tratado como tal. Afinal, todos são livres para fazer uso de sua razão. Basta querer!

5. UM HOMEM DE MORAL NUNCA SE CURVA?

Será mesmo? Ser tratado como objeto da vontade alheia é conseqüência da falta de coragem de servir-se do seu próprio entendimento? É uma questão apenas de falta de vontade e de determinação? Que diria Graciliano Ramos de tudo isso? Concordaria com Kant?

Quem conhece Vidas Secas[13], sabe que as coisas não são assim tão fáceis. Fabiano, personagem central desse romance, nasceu livre, mas nunca teve coragem para se livrar da tutela alheia. Nunca teria, pois quem nasceu para cuidar das coisas dos outros não é gente. No episódio em que ele é preso, só porque ganhou do soldado amarelo no jogo, apanhou na cadeia como um desgraçado, como um escravo amarrado ao tronco. Podia derrubar com uma só braçada todos os seus algozes, mas não fez, porque sabia que os homens que lhe batiam eram empregados do governo. Além disso, tinha que pensar na família. Era um homem responsável, com quatro bocas para alimentar. Não podia botar tudo a perder por causa de umas pancadas no lombo. Se não fossem a mulher e filhos para criar, não apanharia de um soldadinho amarelo, empacotado numa farda de caqui. Sem esses cambões pesados, não envergaria o espinhaço, mataria a todos.
Infelizmente, Fabiano era lá homem de fazer essas coisas! Que diabos de homem é esse que não sabe nem falar e nem escrever o nome! Quem passou a vida toda metido nas matas e nas capoeiras de algodão, não podia mesmo apreender a falar e a escrever. Nunca teve tempo para apreender a pronunciar as palavras cumpridas e difíceis da gente da cidade.

Fabiano não era gente mesmo. Homem que é homem sabe entrar e sair de qualquer lugar. Sabe falar, sabe se defender das injustiças. Mas Fabiano era um pobre diabo! Se tivesse um anel enfiado no anelar, se pelo menos soubesse falar como Seu Tomás, que vivia a devorar livros, um soldadinho de cara engelhada de passar fome não teria peito de levá-lo para a cadeia. Mas, Fabiano, que passou a vida escondido dentro de suas subserviências, não poderia ter a coragem de dizer não. Quem passou a vida dizendo an!, toda vez que alguém lhe dirigia a palavra, não poderia mesmo querer ser homem. Fabiano era quase mudo, como de resto toda a família. Até mesmo o papagaio, que serviu de comida na seca passada, vivia aboiando, tangendo gado inexistente, e imitando os latidos da cachorra Baleia.

Fabiano não era gente, como também assim não o era o professor Padilha, personagem do romance São Bernardo[14]. Quem leu esta outra obra de Graciliano, sabe que Padilha era empregado de Paulo Honório, um rico capitalista que, para fazer boa figura aos olhos do governo, construiu uma escola e contratou Padilha como professor. Um dia, só porque ousou a dizer que a propriedade é um roubo, quase foi demitido. Para garantir seu salário, ajoelhou-se aos pés do seu patrão e implorou para que não o despedisse. Prometeu que jamais falaria de novo desse assunto.

O mundo está cheio de Fabianos e Padilhas da vida. São iguais aos outros empregados de Paulo Honório, que nunca morrem direito. “Uns são levados pela cobra, outros pela cachaça, outros matam-se, como aconteceu um dia na pedreira. A alavanca soltou-se da pedra, bateu-lhe no peito, e foi a conta. Deixou viúva e órfãos miúdos. Sumiram-se: um dos meninos caiu no fogo, as lombrigas comeram o segundo, o último teve angina e a mulher enforcou-se”. Para diminuir a mortalidade e aumentar a produção, Paulo Honório proibiu a aguardente.

São todos bichos de Paulo Honório, criados para lhe servir. Alguns são bichos domésticos, como Padilha, outros, bichos do mato como Fabiano. Se há diferença entre eles é a de que um é professor, o outro, vaqueiro. Coisas da divisão social do Trabalho. Fora isso, são iguais em tudo: todos têm donos, não são gente, não têm direito de dizer não, coragem para fazer uso do seu entendimento. Não são homens de moral, como também não o é Paulo Honório. Este, como diz Graciliano, trata seus empregados como coisas, como objetos. Quem age assim não se comporta segundo as regras da moral, não é mesmo Kant? Acontece que ele é um capitalista, precisa cuidar do seu dinheiro, para fazê-lo parir mais dinheiro, pois se não o fizer vira vaqueiro ou professor.

Não dá para agir de outra maneira. Mais do que ninguém, Paulo Honório sabe disso muito bem, quando diz para seus botões que

foi esse modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes[15].

Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que exibe essas deformidades monstruosas[16].

Não pode livrar-se dessas deformidades, pois, no mundo em que vive, como diria Adam Smith,

cada um terá maior probabilidade de obter o que quer se conseguir interessar a seu favor a auto-estima dos outros, mostrando-lhes que é vantajoso para eles fazer-lhe ou dar-lhe aquilo de que ele precisa. É isto o que faz toda pessoa que propõe um negócio a outra. Dê-me aquilo que eu quero, e você terá isto aqui, que você quer ...; é dessa forma que obtemos uns dos outros a grande maioria dos serviços de que necessitamos. Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos o nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse. Dirigimo-nos não à sua humanidade, mas à sua auto-estima, e nunca falamos das nossas próprias necessidades, mas das vantagens que advirão para eles[17].

Paulo Honório sabe que o mundo é assim mesmo. Resignado com seu destino, assim põe um ponto final na narrativa em que conta a história de sua vida:

E vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos[18].


6. O REMORSO LIBERTARÁ OS HOMENS?

Oh, Kant, que diabos de mundo é esse em que vivem os Paulos Honorios, Fabianos e Padilhas da vida! Que teria sido feita da promessa da razão de um dia libertar os homens das forças externas à sua vontade? Que foi feito dela que não abre os olhos dos homens e os fazem enxergar que o mundo que criaram não é um mundo humano? Que mundo é esse em que as coisas são o vínculo que os prende uns aos outros? Que mundo é esse em que um punhado de homens são donos da vida da maioria dos seus semelhantes? Por que deixaram que a razão perdesse o seu brilho de liberdade, para iluminar a terra com o signo do infortúnio triunfal das coisas?

São essas questões que atormentavam o espírito de Rousseau, de quem Kant foi leitor atento. Como este último, Rousseau acreditava que a educação moral salva o homem. Com a diferença de que ele não apostava tanto na razão, como fizera Kant. Da mesma forma que ela abriu novos caminhos para o homem, aprimorando sua capacidade de desenvolver-se mais rapidamente, ampliando seus horizontes intelectuais, etc., também pôs à disposição de cada um toda uma série de comodidades, de coisas, de tal sorte que cada indivíduo só pode sentir-se feliz quando é dono da maior quantidade possível de objetos. As coisas invadiram as relações entre as pessoas e passaram a ser o vínculo que liga todos entre si e à vida.
Nesse mundo, em que o poder que cada um tem carrega com ele no seu bolso, em que a reciprocidade é reciprocidade coisificada, pois cada um só serve ao outro para servi-se a si próprio; nesse mundo, Rousseau percebeu que a voz da razão emudeceu; o barulho do progresso ensurdeceu os homens; o brilho cintilante e ruidoso das mercadorias petrificou seus corações. Num mundo assim, diria ele, em que o homem perdeu a noção do que é certo e do que é errado, já não será mais possível usar a razão para tal discernimento; ela foi soterrada pelo progresso e exilada do mundo dos homens.
Que fazer, então, se a razão virou desrazão? A única solução, para Rousseau, é envolvê-la com o calor do coração, pois é aí que a consciência moral construiu a sua morada, para nela guardar e velar as verdadeiras regras do agir moral. É preciso ouvir a voz da consciência, pois somente ela poderá despertar em cada pessoa o sentimento de remorso, de culpa, pelos erros que elas mesmas cometeram contra si. Mas como, se ela foi banida do mundo dos homens? Rousseau tem consciência de que é difícil chamá-la de volta. Sua única esperança é povoar o mundo de Emílios, educá-los para guiar a humanidade no caminho de um mundo moral. Quem sabe se um dia seus filhos não poderão usar suas lições, para ensinar aos seus netos a ouvir a voz do coração?

7. MARX E O MUNDO IMORAL DO CAPITAL

O pessimismo e a esperança movem a pena de Rousseau. Infelizmente, apesar de sua boa intenção, assim como a do seu sucessor, Kant, ela está presa à dicotomia ilusória ser-dever-ser, que não é capaz de questionar nem mudar a realidade existente, pois o capitalismo é uma sociedade estruturalmente imoral. Não em conseqüência de uma opção deliberadamente maquiavélica dos homens, nem tampouco porque são naturalmente maus. O negro não nasceu escravo, como também uma máquina de fiar algodão, como diria Marx, não foi produzida para servir de instrumento de exploração do trabalho alheio. Escravidão e capital são relações sociais historicamente criadas, para responder às exigências históricas de uma época na qual um punhado de homens vive da exploração do trabalho da grande maioria da sociedade.

A exploração é uma necessidade interna do sistema que não pode ser suprimida apelando para um melhoramento moral do comportamento dos capitalistas. De nada adianta pregar-lhes o Evangelho ou pedir-lhes que tratem seus empregados como seres humanos e não como coisas. Eles não são pessoas más, que exploram seus trabalhadores por pura maldade, ou porque são destituídos de virtudes morais. Negócio é negócio. Assim como os capitalistas, os trabalhadores sabem muito bem disso. Não se dirigem a seus patrões apelando para sua humanidade, mas, sim, como qualquer comerciante o faria. É o que se lê numa das mais belas passagens de O Capital, na qual o trabalhador exige do capitalista que este lhe pague o verdadeiro valor da sua força de trabalho, pois a mercadoria que lhe vendeu, diz ele,
distingue-se da multidão das outras mercadorias pelo fato de que seu consumo cria valor e valor maior do que ela mesma custa. Essa foi a razão por que a comprastes [...]. Pagas-me a força de trabalho de 1 dia, quando utilizas a de 3 dias. Isso é contra nosso trato e a lei do intercâmbio de mercadorias. Eu exijo, portanto, uma jornada de trabalho de duração normal e exijo sem apelo a teu coração, pois em assuntos de dinheiro cessa a boa vontade. Poderás ser um cidadão modelar, talvez sejas membro da sociedade protetora dos animais, podes até estar em odor de santidade, mas a coisa que representas diante de mim é algo em cujo peito não bate nenhum coração. Eu exijo a jornada normal de trabalho, porque eu exijo o valor de minha mercadoria, como qualquer outro vendedor[19] .


Nesse diálogo, o trabalhador não faz nenhuma exigência moral ao seu empregador. Como homens de negócio sabem que são iguais, pois ambos estão ancorados na lei do intercâmbio de mercadorias, segundo a qual ambos afirmam seus direitos: o capitalista, o de comprador; o trabalhador, o de vendedor. São proprietários privados. Cada um, somente de acordo com a vontade do outro, pode se apropriar da mercadoria alheia. Trata-se de uma relação jurídica de igualdade, cujo conteúdo é dado pela própria relação econômica. Ora, entre direitos iguais decide a força, como assim mostra a luta pela regulamentação da jornada de trabalho; uma luta entre a classe capitalista e a classe trabalhadora.

Eis aí a razão por que Marx, n’O Capital, trata

as pessoas à medida que são personificações de categorias econômicas, portanto, portadoras de determinadas relações de classe e interesse[20].

Ele não faz exigências morais ao trabalhador, pois este não tem como reproduzir sua vida senão mediante a venda de sua força de trabalho. Só por meio dela, o trabalhador pode ter acesso aos bens e serviços ofertados no mercado, visto que o salário, que recebe em troca de sua força de trabalho, é a única forma que conhece e pode dispor para produzir sua sobrevivência. E quanto mais ele vende sua capacidade de trabalho, mais necessidade terá de continuar assim proceder.

Do lado do capitalista, este só pode transformar seu precioso dinheiro em mais dinheiro, se constantemente adquire a mercadoria força de trabalho, que é a única mercadoria, dentre as demais capaz de fazer multiplicar seu dinheiro.

Capitalista e trabalhador não são donos de sua vontade. Se não conseguem vender suas mercadorias, arruínam-se com elas. “Presos juntos, juntos enforcados”, diz um provérbio alemão. Conseqüentemente, é o movimento de compra e venda das mercadorias que realiza, para ambos, os seus desejos e necessidades. É nesse sentido que se diz ser o sistema capitalista marcado por uma inversão fundamental entre os homens e as coisas: estas se tornam sujeito e aqueles objetos. Afinal, o que cada um é, carrega consigo em seu bolso.

O capitalismo é, portanto, um sistema marcado por um modo de vida estruturalmente amoral. Nele prevalecem a exploração, a opressão, a concorrência, o individualismo possessivo, entre outras características que singularizam e determinam seu modo de ser. Tais características não podem ser eliminadas sem que a sociedade mesma seja radicalmente modificada. Por isso, Marx não pôde se conformar com uma condenação moral do sistema. No lugar do esclarecimento ético, o autor de O Capital vale-se da crítica, não de uma crítica meramente intelectual, que teria como função desvelar as falsas representações do mundo, mas, sim, de uma crítica vinculada às forças revolucionárias que, por meio de sua ação, põem em questão o mundo do capital.
Infelizmente, parece que as armas da crítica foram abandonadas pela crítica das armas. Hoje, ouve-se apenas a voz rouca, quase inaudível, da indignação ética, que não pode nem aceita usar da violência para combater a violência. Mas, se os homens não perderam de todo a audição, resta o consolo amargo de continuar a ouvir Adriana Calcanhoto. Quem sabe se sua canção não desperta as pessoas para romperem com o mundo quadrado que construíram para morar!
[1] Aristóteles. Política. - Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1977., p. 15: “se o homem não fizesse parte de cidade alguma, seria desprezível ou estaria acima da humanidade (...), e se poderia compará-lo a uma peça isolada do jogo de gamão”.
[2] Aristóteles. Ética a Nicômacos. – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001; p.20; 1095(b) e 1096(a): "Se formos julgar pela vida dos homens estes, em sua maioria, e os mais vulgares, entre eles, parecem (...) identificar o bem, ou a felicidade, com o prazer. É por isto que eles apreciam a vida agradável”. Ora, comenta Aristóteles, a felicidade não “... pode ser identificado com o prazer, pois a humanidade em massa se assemelha totalmente aos escravos, preferindo uma vida comprável a dos animais”. Nem tampouco, acrescenta Aristóteles, a felicidade pode ser identificada com a honraria, porque esta, diz ele, “parece muito superficial para ser o que estamos procurando, pois se considera que as honrarias dependem mais daqueles que as concedem que daqueles que as recebem, ao passo que intuímos que o bem é algo pertencente ao seu possuidor e que não pode ser facilmente retirado”. Finalmente, completa seu raciocínio para dizer que a felicidade, igualmente, não pode ser identificada com a riqueza, pois a vida dedicada a ganhar dinheiro é vivida sob a compulsão, e obviamente ela não é o bem que estamos procurando; trata-se de uma vida apenas proveitosa e com vistas a algo mais”.
[3] Idem, Ibidem., p. 27; 1099(b): “a felicidade também requer bens exteriores, pois é impossível, ou na melhor das hipóteses não é fácil, praticar belas ações sem os instrumentos próprios. Em muitas ações usamos amigos e riquezas e poder político como instrumentos, e há certas coisas cuja falta empana a felicidade - boa estirpe, bons filhos, beleza - pois o homem de má aparência, ou mal nascido, ou só no mundo e sem filhos, tem poucas possibilidades de ser feliz, e tê-la-á ainda menores se seus filhos e amigos forem irremediavelmente maus ou se, tendo tido bens filhos e amigos, estes tiverem morridos”.
[4] Idem, Ibidem., p. 25.
[5] Oliveira, Manfredo Araújo de. Ética e sociabilidade. - São Paulo: Loyola, 1991. p. 16.
[6] Cirne-Lima, Carlos. Dialética para principiantes.- Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.
[7] Kant, Immanuel. Resposta à pergunta: Que é “Esclarecimento?, in Textos seletos. – Petrópolis: Vozes, 1985.
[8] Aristóteles, Ética a Nicômacos. op. cit. 93/94, 1280(b) e 1281(a): "A cidade é formada não somente com vistas a assegurar a vida, mas para assegurar uma vida melhor (...), e seu objetivo não é o mesmo de uma aliança militar para defesa contra ofensas de quem quer que seja, e ela não existe por causa do comércio e relações de negócios (...). É claro, portanto, que qualquer cidade digna desta designação e que não seja cidade apenas no nome, deve estar atenta às qualidades de seus cidadãos, pois de outra maneira a comunidade se torna uma simples aliança, deferindo apenas na localização se comparada com as alianças propriamente ditas (...). A lei, então, passa a ser um convênio, ou, na frase do sofista Licofron, "uma garantia de justiça recíproca", e já não se destina a fazer com que os cidadãos sejam bons e justos.
[9] Idem, Ibidem. p.94; 1281 (a): "não é apenas uma reunião de pessoas num mesmo lugar, com o propósito de evitar ofensas recíprocas e de intercambiar produtos. Estes propósitos são pré-requisitos para a existência de uma cidade, mas isto não obstante (...) não constitui uma cidade; esta é uma união de famílias e de clãs para viverem melhor, com vista a uma vida perfeita e independente. Este objetivo, todavia, não se realizará a não ser que os habitantes vivam num lugar só e se casem entre si. Daí se originam as relações entre famílias, as confrarias, as irmandades religiosas e as diversões que levam as pessoas ao convívio. Tudo isso é obra da amizade, pois a amizade é a motivação do convívio (...) Uma cidade é uma comunidade de clãs e povoados para uma vida perfeita e independente, e esta em nossa opinião é a maneira feliz e nobilitante de viver".
[10] Oliveira, Manfredo de. op. cit. p. 14/15: “Para a metafísica, o processo de universalização tem um preço: o indivíduo só supera sua particularidade quando supera a temporalidade. Universalidade e a-historicidade são aqui sinônimos: a elevação da existência individual ao plano da existência universal se faz a medida que ela encontra uma norma, o paradigma imutável de seu agir na história [...]. A sociabilidade humana funda-se, assim, na a-historicidade das normas. O verdadeiro ser do homem situa-se para além do devir da história. Cosmos significa, precisamente, a ordem imutável da totalidade do real”.
[11] Kant, Immanuel. Textos selecionados/Fundamentos da metafísica dos costumes. – São Paulo: Abril Cultural, 1980., p. 116: “para resolver da maneira mais curta e mais segura o problema de saber se uma promessa mentirosa é conforme ao dever, preciso só de perguntara mim mesmo: - Toda a gente pode fazer uma promessa mentirosa quando se acha numa dificuldade de que não pode sair de outra maneira? Em breve reconheço que posso em verdade querer a mentira, mas não posso querer uma lei universal de mentir; pois, segundo uma tal lei, não poderia propriamente haver já promessa alguma, porque seria inútil afirmar a minha vontade relativamente às minhas futuras ações a pessoas que não acreditariam na minha afirmação, ou, se precipitadamente o fizessem, me pagariam na mesma moeda. Por conseguinte, a minha máxima, uma vez arvorada em lei universal, destruir-se-ia a si mesma necessariamente”.
[12] Idem, Ibidem., p. 139: “Seres racionais estão pois todos submetidos a esta Lei que manda que cada uma deles jamais se trate a si mesmo ou aos outros simplesmente como meios, mas sempre simultaneamente como fins em si”.
[13] Ramos, Graciliano. Vidas Secas. – Rio de Janeiro: Editora Record. 2002, 84ª edição.
[14] ___ São Bernardo. – Rio de Janeiro, 2001. 71ª edição.
[15] Idem, Ibidem., p. 190.
[16] Idem, Ibidem., p. 190.
[17] Smith, Adam. A Riqueza das Nações: investigação sobre sua natureza e suas causas – São Paulo: Nova Cultural, 1985. Vol.I. , p. 50.
[18] Ramos, Graciliano. São Bernardo. op. cit. p. 191.
[19] Marx. Karl. O Capital: crítica da economia política. – São Paulo: Nova Cultural, 1988. p. 180.
[20] Idem, Ibidem. p. 19 [prefácio da primeira edição].

UMA CONVERSA INFORMAL COM OS CLÁSSICOS

1. POR QUE LER OS CLÁSSICOS?

Não é difícil saber por que se deve ler os clássicos. Em suas Lições Sobre a História da Filosofia, Hegel lembra que o conhecimento da geração do seu tempo não surgiu de improviso, como se brotasse por si só do solo do presente. Muito pelo contrário, para ele, o que homem é hoje na ciência, e especialmente na filosofia, deve à tradição. Esta herança não é uma dívida passiva, o que é herdado das gerações anteriores é reduzido, pelas gerações do presente, à condição de matéria-prima para produção de novos e mais elevados conhecimentos. Nisso consiste a atividade intelectual de qualquer época: apropriar-se do conhecimento produzido pelas gerações passadas, desenvolvê-lo e elevá-lo a um plano superior[1].

Da perspectiva da hermenêutica, a resposta não é muito diferente. Para ela, os homens pertencem à história. Como diria Gademar, em Verdade e Método, “não é a história que pertence a nós, nós é que a ela pertencemos”[p.415]. Ora, se os homens pertencem à história, então, o que são, devem à tradição espiritual e cultural. Mas, como tradição chega ao presente? Se esta questão fosse dirigida a Gadamer, responderia que a linguagem é o médium universal pela qual a tradição alcança o presente, atualiza-se. Porém, como a tradição e o presente pertencem a horizontes históricos temporalmente diferentes, a escrita é, por excelência, a forma de linguagem mais adequada, para trazer a herança cultural e espiritual ao presente, à fala.

O que o homem o é, deve, portanto, à tradição. Esta é um pano de fundo que permanece às suas costas; um reservatório cultural e espiritual herdado do passado e do qual lança mão em suas relações interpessoais e sociais, mesmo que disso não tenham consciência. E, geralmente, não têm. Por quê? Porque cada pessoa nasce numa dada comunidade, na qual tem que aprender com os outros o que estes já julgam saber e fazem. A porta de entrada para o mundo em que chega é a língua a qual a comunidade fala, pensa, intui e compreende o seu espaço vital; uma língua que foi formada nessa comunidade e historicamente herdada. Uma herança da qual os homens se apropriam e a transformam em patrimônio comum de todos, embora nem sempre tenham consciência de que são donos desse legado. Da mesma forma que fazem uso das regras da gramática em suas falas, sem disso se darem conta, acontece o mesmo em suas relações interpessoais e sociais: o acervo cultural historicamente herdado cristaliza-se e transforma-se em um mundo familiarizado, em que os indivíduos reproduzem espontaneamente em sua práxis cotidiana, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo.

Se a linguagem é a corrente que prende a tradição ao mundo contemporâneo, para tomar conhecimento de como ela afeta e determina o comportamento dos homens em seu tempo presente, é preciso dialogar com seus porta-vozes, com aqueles que a pensaram e sobre ela se debruçaram. A distância histórica que os separa do presente pode ser vencida com facilidade, através das páginas nas quais estão registradas as suas reflexões. É uma viagem encantadora, semelhante àquela que as crianças fazem ao tomar contato com o mundo; com tudo se espantam e se surpreendem, até mesmo com um simples abanar de cauda de um animal. Dialogar com os clássicos é como voltar a ser criança, com a diferença de que, agora, o que surpreende e espanta o leitor é que ele não sabia que não conhecia o mundo em que vive.

2. UMA VISITA AO MUNDO DE TOMAS MORUS E DE ROUSSEAU

É esse sentimento que se experimenta quando se dialoga com os clássicos. Para falar dessa sensação, peço aos senhores e senhoras que me deixem falar na primeira pessoa, para contar-lhes um pouco da minha experiência com os pensadores com quem aprendi a pensar e com quem sempre converso.

Enquanto eu alinhavava essas idéias para apresentar-lhes, fui despertado pelo barulho da televisão. Uma voz pausada falava da catástrofe iminente que ameaçava o Planeta Terra. Convidava a todos dar as mãos para salvar o homem do desastre ecológico, que ele mesmo, sem saber, causara a si mesmo. Parei de escrever e corri para frente da televisão, para ouvir o anúncio que já sabia de cor de tanto ouvi-lo. Enquanto desenrolavam as cenas de terremotos, incêndios, guerras etc., a voz do narrador dizia que

Se o homem soubesse antes que ia chover, não se molharia;
Se soubesse antes que a poluição destruiria o planeta, ele reciclaria suas idéias;
Se soubesse antes que haveria guerra, talvez, ele nem tivesse inventado a pólvora;
Se o homem soubesse tudo antes, sofreria menos, sonharia mais.

Desliguei a televisão e voltei ao computador, acompanhado por uma interrogação que me incomodava desde o primeiro dia em que vi e ouvi aquele anúncio. Por alguns minutos, parei para dar ouvidos à pergunta que não parava de me importunar. Perguntava-me se o homem não sabia que ia chover? Será que ele não sabia que a poluição destruiria o Planeta? Que a guerra mataria tanta gente? Foi, então, que me veio à mente a lembrança de Rousseau. Pude ouvir sua voz indignada a perguntar por que só o homem “é suscetível de tornar-se imbecil”. Não é ele um ser da liberdade, e que, por isso, brada o autor do Contrato Social, pode antecipar-se à natureza e até mesmo fazê-la trabalhar a seu favor? Se é assim, perguntava-me como, então, o homem pode destruir o Planeta em que vive, sem disso ter consciência? Ou, será que Rousseau estava errado ao definir o homem como um ser da liberdade e que, portanto, suas escolhas são atos conscientes? Mas, Kant, Hegel, Marx e tantos outros dizem a mesma coisa. Não será essa unanimidade uma prova de que os males que o homem está causando à Mãe Natureza foram deliberadamente produzidos por ele? Com certeza que sim. Ele sabia o que estava fazendo, pois, diferentemente dos animais, que escolhem ou rejeitam por instinto, o homem é livre, responsável pelas conseqüências de seus atos.

Basta! Alguma coisa está errada com a publicidade da Globo. Por que essa emissora responsabiliza todo mundo, sem distinção de classes, origem, cor etc., pela crise ecológica? Deve estar a esconder algum interesse por trás do apelo dramático que faz a todos os habitantes da Terra. Foi, então, que me lembrei de Tomas Morus, do seu livro Utopia, que veio a público em 1516, escrito em forma dialogal, tal como o faz Platão em A República. Mudam apenas o objeto de investigação e os personagens do diálogo. O Sócrates teórico de Platão aparece na Utopia com o nome de Rafael. Indagado pela causas da violência e da fome, que naquele tempo já afligiam milhões de pessoas em todo o mundo, Rafael responde que a causa de tais crimes residia nos carneiros de seus interlocutores - abastados proprietários de terras. Como assim, perguntam espantados, muitos até mesmo irritados com o que acabavam de ouvir. Rafael não se perturba. Responde-lhes que eles transformaram suas criaturas, tão mansas e fáceis de alimentar com pouca coisa,

em animais tão vorazes e ferozes que devoram até mesmo os homens, devastando e despovoando os campos, as granjas, as aldeias. Com efeito, (...) os nobres e os ricos, sem falar de alguns abades, santos personagens, não contentes de viverem à larga e preguiçosamente das rendas anuais que a terra assegurava a seus antepassados, sem nada fazerem em favor da comunidade, (...) não deixam mais nenhum lugar para o cultivo, acabam com as granjas, destroem as aldeias, cercando toda a terra em pastagens fechadas, não deixando subsistir senão a igreja, da qual farão um estábulo para seus carneiros. E, como se vossas áreas de caça e vossos parques, já não ocupassem uma parte suficiente do território, esses homens de bem transformaram em desertos lugares ocupados até então por habitações e culturas.


Tomás Morus enxergou longe. Pode-se dizer que ele foi um contemporâneo teórico de um presente ainda muito distante do tempo em que viveu. Seu gênio brilha justamente porque foi capaz de ter Identificado o fechamento dos campos, essa forma embrionária da propriedade burguesa, como a principal causa do empobrecimento do solo e do despovoamento de vastas áreas, antes habitadas e ocupadas com a produção de alimentos para o homem. Não está aí a origem da questão ecológica, que hoje ameaça destruir a vida no Planeta Terra?

Decerto que sim. Mas à Rede Globo, plagiando Adam Smith, tem medo de incitar a indignação dos pobres e, assim, levá-los a invadir a propriedade de quem passou a vida a trabalhar para amealhar o seu rico patrimônio. Já basta o MST! Para que arranjar mais problemas! A Globo sabe que á fácil instigar a raiva do povo; tem experiência nisso. Obviamente quando é do seu interesse, como aconteceu com os jogos do PAN-2007. O ufanismo do Galvão Bueno foi suficiente para despertar o sentimento de rancor contra os competidores estrangeiros, principalmente os argentinos e cubanos.

Mas enquanto eu pensava nos berros histéricos de Galvão Bueno, com exclamações do tipo “somos uma grande família”, lembrei-me novamente de Rousseau. Que diria ele sobre os males causados pela propriedade privada? Concordaria com Morus? Decerto que sim. Como o autor da Utopia, ele dizia que

o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!

Quer dizer, então, que Rousseau é um inimigo mortal da propriedade privada? Será que ninguém deveria ser dono de nada, de sua própria casa, de um pedaço de terra para prover o seu sustento? Claro que ele não pensava assim. Admitia o direito de propriedade, desde que não fosse utilizada para fazer dinheiro, como assim também pensava Morus. Era contra, isto, sim, a propriedade burguesa.

Conheço muito bem a sua obra. Sei que sua crítica se dirige à propriedade burguesa, que considera como nada mais do que uma sagacidade fraudulenta transformada num direito irrevogável. Justamente porque pensa assim, resolvi convidá-lo para visitar o aeroporto de Congonhas. Mandei-lhe o convite pelo túnel do tempo, junto com uma passagem da TAM. Sua resposta não me surpreendeu: não aceitou meu convite. Mas não me deixou sem explicação. Escreveu-me justificando as razões por que não aceitava o meu pedido, para visitar São Paulo. Na carta dizia-me que já sabia que a Tam é uma empresa que tem como primeiro mandamento o lucro e só, por último, vem o passageiro. Porém não culpava essa Companhia por fazer do lucro a coisa mais importante. Comentou que todas as empresas agem dessa forma, como deixou claro em um longo trecho de sua missiva, que, agora, divido com vocês:

“Que se poderá pensar de um comércio no qual a razão de cada particular lhe dita máximas diferentemente contrárias às que a razão pública prega ao corpo da sociedade e onde cada um encontra seu lucro na infelicidade de outrem? Não haverá, certamente, um homem de fortuna a quem herdeiros ávidos e, freqüentemente, seus próprios filhos não desejem intimamente a morte; nenhum navio naufragado deixou de constituir uma boa notícia para certo negociante; não há uma casa que um devedor de má fé não gostaria que se incendiasse com todos os papéis que contém; todos os povos se regozijam com os desastres de seus vizinhos. Assim, encontramos nossos lucros no prejuízo de nossos semelhantes e a perda de um quase sempre determina a prosperidade de outro. Mas o que existe de mais perigoso ainda é que as calamidades públicas constituem a expectativa e a esperança de uma multidão de particulares; uns desejam doenças, outros a mortalidade, outros a guerra, outros a fome. Vi homens indignos chorarem de dor sabendo da possibilidade de um ano fértil, e o grande e funesto incêndio de Londres, que custou a vida e os bens a tantos infelizes, fazer a fortuna de mais de dez mil pessoas.

“Se considerardes as penas do espírito que nos consomem, as paixões violentas que nos esgotam e nos arruínam, os trabalhos excessivos com os quais se sobrecarregam os povos, a preguiça ainda mais perigosa à qual os ricos se abandonam, e que fazem que morram uns de suas necessidades e os outros de seus excessos; se pensardes nas misturas monstruosas de alimentos, nos temperos perniciosos, nas mercadorias adulteradas, nas drogas falsificadas, nas trapaças daqueles que as vendem, nos erros daqueles que as administram, no veneno das vasilhas em que são preparadas; se prestardes atenção às doenças epidêmicas oriundas do ar confinado entre as multidões de homens reunidos, às que ocasionam a delicadeza de nosso modo de vida, às passagens alternadas do interior de nossas casas para o ar livre, ao uso da roupa vestida ou desvestida com pouquíssima precaução e a todos os cuidados em que nossa sensualidade excessiva transformou em hábitos necessários e cuja negligência ou privação nos custa imediatamente a vida ou a saúde; se levardes em consideração os incêndios e os tremores de terra que, consumindo ou revirando cidades inteiras, fazem com que os habitantes morram aos milhares; em uma palavra, se reunirdes os perigos que todas essas causas juntam continuamente sobre nossas cabeças, vereis como a natureza faz que paguemos caro o desprezo que demos às suas lições”.

3. ADAM SMITH: UM VIAJANTE DO TEMPO


Quando terminei a leitura de sua carta, dobrei-a cuidadosamente e a guardei junto com um maço de correspondências que mantenho às escondidas no fundo de uma gaveta do meu birô, trancada a sete chaves. Foi, então, que me lembrei de Adam Smith. Será que ele não aceitaria meu convite? É melhor nem arriscar. Sei que ele foi um ardoroso defensor da iniciativa privada; um inimigo mortal da ingerência do Estado nos assuntos econômicos. Em uma passagem da Riqueza das Nações, sua principal obra, escrita em 1776, comenta

“que cada indivíduo (...) tem muito melhores condições do que qualquer estadista ou legislador de julgar por si mesmo qual o tipo de atividade nacional na qual pode empregar seu capital, e cujo produto tenha probabilidade de alcançar o valor máximo. O Estadista que tentasse orientar pessoas particulares sobre como devem empregar seu capital não somente se sobrecarregaria com uma preocupação altamente desnecessária, mas também assumiria uma autoridade que seguramente não pode ser confiada a alguma assembléia ou conselho, e que, em lugar algum, seria tão perigosa como nas mãos de uma pessoa com insensatez e presunção suficiente para imaginar capaz de exercer tal autoridade”.

Bem, se ele pensa assim, é melhor mesmo não convidá-lo. Mas, tem tanta gente que vive a invocar o seu nome, para justificar medidas de políticas econômicas liberais! Quem sabe se eu fosse a um centro espírito não conseguiria conversar com ele? Perto da minha casa tem um. De tanto assistir as novelas da Globo, estou a convencer-me de que é possível entrar em contato com os espíritos. Se a Globo acredita nisso e todo mundo acredita no que ela diz, logo eu também posso acreditar. Com um argumento silogístico desses, saturado de audiência ibope, até mesmo o mais empedernido dos ateus acredita que Deus existe.

Não tive mais dúvidas, corri para o Centro Espírita. Lá, fui recebido por várias pessoas, de feições angelicais, todas vestidas de branco. Convidaram-me para sentar à mesa e com elas invocar o espírito de Smith. Não demorou muito, avisaram-me que ele já se encontrava entre nós, que eu poderia conversar com ele. Não perdi tempo. A primeira coisa que lhe perguntei foi se ele concordava com tese de Rousseau, segundo a qual a propriedade burguesa nada mais é do que uma sagacidade fraudulenta transformada num direito irrevogável. – Nem de longe, respondeu-me com certa irritação.

- Então, como o senhor explica a divisão da sociedade entre proprietários e não-proprietários, isto é, entre exploradores e explorados?

- É fácil. Num passado muito remoto, existiam duas espécies de gente. De um lado, um bando de preguiçosos, que vivia dissipando tudo que conseguia com o seu trabalho, nada economizava, consumia tudo que produzia; de outro, um grupo seleto de pessoas que vivia unicamente para trabalhar. De tudo que produzia, acumulava uma parte para vencer as incertezas do futuro. Este último grupo prosperou e se transformou na classe capitalista; os primeiros, porque nada amealharam com seu trabalho, são obrigados, agora, a trabalhar para os que acumularam riqueza. São obrigados a criar um valor maior do que os salários que lhes são pagos, para recompensar o trabalho daqueles que passaram a vida a se sacrificar para juntar seu patrimônio. Esse é o castigo para quem não quis se submeter ao sacrifício de economizar para o futuro.

- Que coisa, meu caro Smith, quer dizer, então, que os pobres são pobres porque, no passado, viviam esbanjando tudo o que conseguiam com o seu trabalho? Ah! Agora entendo melhor uma novela que assisti há muito tempo atrás na Globo, o Rei do Gado. Raul Cortez fazia o papel de Berdinazzi, um rico fazendeiro que um dia se viu cercado por um bando de esfomeados, que se dizia pertencer ao MST. Fiquei com pena do infeliz. Coitado! Construiu sua propriedade com tanto sacrifício, para ser ocupada por vagabundos sem eira nem beira. Ainda hoje me lembro dele. Sentado em sua cadeira de balanço, dizia para seus botões que havia conseguido tudo o que tinha com muito trabalho e sacrifício. “Não contei com ajuda de ninguém”, dizia ele. “Agora, esses desgraçados querem tomar o que é meu e ainda exigem que o governo lhes forneça crédito e outros benefícios, que eu não tive. Que injustiça, meu Deus!”.

Alto lá, Berdinazzi! Não se lembra do seu tempo de rapazote, quando ainda vivia preso à barra da saia da sua mãe? Não sei se você se recorda dos primeiros capítulos da novela, que narram como você roubou a herança de sua pobre mãezinha, para comprar as terras que diz tê-las conseguido com o suor do seu próprio rosto? Essa sua estória me lembra o esforço teórico de John Locke, para justificar a desigualdade de propriedade. Esse grande pensador da Ciência Política moderna, assim como Adam Smith, criou uma ficção teórica para explicar a origem da propriedade privada. Em uma passagem do seu Segundo Tratado Sobre o Governo, sua principal obra, comenta que Deus

concedeu a terra e tudo quanto ela contém ao homem para sustento e conforto da existência (....). Seja o que for que ele (o homem) retire do estado que a natureza lhe forneceu e no qual o deixou, fica-lhe misturado ao próprio trabalho, juntando-se-lhe algo que lhe pertence, e, por isso mesmo, tornando-o propriedade dele.

Acontece que as coisas não são bem assim! No mundo real, e Locke tinha perfeita consciência disso, os ricos não vivem do seu próprio trabalho; dispõem de um exército de assalariados que, para eles, trabalham em troca de um salário de subsistência. Mas, se a terra era patrimônio de todos os filhos de Deus, por que só poucos se tornaram proprietários? Que beco sem saída se meteu Locke! Acuado teoricamente, encontra uma escapatória, lá não muito convincente. Substituiu o trabalho pessoal, que considerava como a origem da propriedade, pelo dinheiro. Só não diz de onde veio-o. Porém, isso pouco lhe importa. Para ele, o dinheiro é uma convenção; quem o tem pode comprar a propriedade dos outros e, assim, juntar mais riqueza do que poderia conseguir com o suor do seu próprio rosto.

Bela saída, Sr. Locke. Não é muito diferente daquela que o criador de Berdinazzi inventou, para o seu personagem, que lhe deu de presente uma mãezinha ingênua, só para ser roubada pelo filho desalmado. Que coisa, meu caro Locke! Qualquer semelhança entre o Sr. e o criador de Berdinazzi não é mera coincidência, não é mesmo? Nem poderia ser diferente. É assim mesmo que a classe dominante e seus ideólogos de plantão, para falar com Marx, criam as idéias dominantes da sociedade. Precisam encontrar uma explicação convincente para tudo, principalmente, para origem da propriedade privada. E, quanto mais esta explicação reproduzir as verdades do senso comum, melhor ainda. Com efeito, quem já não ouviu tantas vezes a batida frase “vai trabalhar vagabundo”, cuja tradução imediata todos conhecem: quem não trabalha não vence na vida? É assim que quase todo mundo pensa. É a força do preconceito popular, que fala mais alto do que qualquer argumento teórico.

Smith, que me ouvia em silêncio, resolveu me interromper, para dizer que as coisas são assim mesmo, como retratadas pelo personagem de Raul Cortez e Locke. Pediu-me licença para ler um trecho do volume II de A Riqueza das Nações, onde diz que

os homens podem viver juntos em sociedade, com um grau aceitável de segurança, embora não haja nenhum magistrado civil que os proteja da injustiça [...]. Entretanto, a avareza e a ambição dos ricos e, por outro lado, a aversão ao trabalho e o amor à tranqüilidade atual e ao prazer, da parte dos pobres, são as paixões que levam a invadir a propriedade [...] adquirida com o trabalho de muitos anos, talvez de muitas gerações sucessivas.

- Concordas comigo, meu caro Teixeira?

- Não sei não, meu Caro Smith, sua explicação cheira-me à estória para Tio Patinhas ouvir.

- Quem é esse Tio Patinhas, pergunta-me Smith? Respondi-lhe que é um personagem de estória em quadrinhos, desenhada para ensinar as crianças por que somente quem leva uma vida de sacrifício, como a do Tio Patinhas, fica rico. Por isso, ele é representado como um pato abençoado por Deus, assim como o são todos os proprietários de Patópolis, que, aliás, contam-se nos dedos. Talvez seja esta a razão pela qual nem a Maga Patológica nem a Madame Mim conseguem se apossar da Moeda número Um do Tio patinhas. Sempre que arrumam algum feitiço, este termina por se voltar contra elas. Moral da história: essa é a sorte de quem cobiça as coisas alheias. Que o digam os coitados dos irmãos Metralhas, que vivem mais tempo na cadeia do que fora dela. O desgraçado do coronel Cintra não lhes sai dos calcanhares.

- Um momento, meu caro Teixeira, quem é esse rapaz que escreveu essas estórias? Onde ele mora?

- Ele já morreu, respondi-lhe. - Mas deixou um verdadeiro império chamado Disneylandia.

- Desculpe-me, meu caro Teixeira, mas esse rapaz sabe das coisas! Pois não é que é assim mesmo que eu vejo a sociedade. Não sei se você leu uma passagem, do Livro I, em que eu falo do Estado. Vou citá-la para você. É um pouco longa, mas, nela, digo tudo o que penso sobre o papel do Estado. Aí você vai compreender porque o Coronel Cintra não larga do pé dos irmãos Metralha. Escute:

o salário depende do contrato normalmente feito entre as duas partes, cujos interesses, aliás, de forma alguma, são os mesmos. Os trabalhadores desejam ganhar o máximo possível, os patrões pagar o mínimo possível. Os primeiros procuram associar-se entre si para levantar os salários do trabalho, os patrões fazem o mesmo para rebaixá-los. Não é difícil prever qual das duas partes, normalmente, leva vantagem na disputa e no poder de forçar a outra concordar com as suas próprias cláusulas. Os patrões, por serem menos numerosos, podem associar-se com maior facilidade; além disso, a lei autoriza ou pelo menos não os proíbe, ao passo que para aos trabalhadores ela proíbe. Não há leis no Parlamento que proíbam a combinar uma redução dos salários; muitas são, porém, as leis do Parlamento que proíbem as associações para aumentar salários". Independentemente das leis promulgadas pelo Parlamento, a luta de classes, no que concerne à determinação do nível salarial, é, em geral, favorável à classe capitalista, pois esta tem capacidade para suportar as conseqüências de uma paralisação, por exemplo, na produção, por conta de uma greve por exemplo. Um proprietário rural, um agricultor ou um comerciante, mesmo sem empregar um trabalhador sequer, conseguiriam geralmente viver um ano ou dois com o patrimônio que já puderam acumular. Ao contrário, muitos trabalhadores não conseguem subsistir uma semana, poucos conseguiriam subsistir um mês e dificilmente algum conseguiria subsistir um ano. A longo prazo, o trabalhador pode ser tão necessário ao seu patrão, quanto este o é para o trabalhador; porém esta necessidade não é tão imediata.


-Que coisa, meu caro Smith, eu pensava que tinha sido Marx quem definira o Estado como comitê da burguesia. Agora, vejo que foi você. Mas, já que estamos a falar do Estado, não sei se você sabe que o governo brasileiro, que se diz pró-trabalhador, criou uma tal de política de cotas para pobres e negros, que desejam ingressar na Universidade. Você concorda com isso? Estou a lhe fazer essa pergunta porque sei que você conhece muito bem quais são os efeitos da divisão do trabalho sobre o trabalhador. Lembro de uma passagem do Livro II, da Riqueza das Nações, em que você diz que

... a ocupação da maior parte daqueles que vivem do trabalho, isto é, a maioria da população, acaba restringindo-se a algumas operações extremamente simples, muitas vezes a uma ou duas [...]. O homem que gasta toda sua vida executando algumas operações simples, cujos efeitos também são, não tem nenhuma oportunidade para exercitar sua compreensão ou para exercer seu espírito inventivo no sentido de encontrar meios para eliminar dificuldades que nunca ocorrem. Ele perde naturalmente o hábito de fazer isso, tornando-se geralmente tão embotado e ignorante quanto possa ser uma criatura humana. O entorpecimento de sua mente o torna tão somente incapaz de saborear ou ter alguma participação em toda conversação racional, mas também de conceber algum sentimento generoso, nobre ou terno, e, conseqüentemente de formar algum julgamento justo até mesmo acerca de muitas obrigações da vida privada [...]. Assim, a habilidade que ele adquiriu em sua ocupação específica parece ter sido adquirida às custas de suas virtudes intelectuais, sociais e marciais.

- Então, meu caro Smith, o que pode o Estado fazer para aliviar o sofrimento dessas pobres criaturas?

- Pouca coisa, meu caro Teixeira. O Estado pode amenizar o sofrimento da classe trabalhadora, mediante uma política geral de educação. Acontece que os pobres, não sei se você sabe,

dispõem de pouco tempo para se dedicar à educação. Seus pais dificilmente têm condições de mantê-los, mesmo na infância. Tão logo sejam capazes de trabalhar, têm que ocupar-se com alguma atividade, para sua subsistência. Este tipo de atividade é geralmente muito simples e uniforme para dar-lhes pequenas oportunidades de exercitarem a mente; ao mesmo tempo, seu trabalho é tão constante e pesado que lhes deixa pouco lazer e menos inclinação para aplicar-se a qualquer outra coisa, ou mesmo para pensar nisso.


- Então, perguntei-lhe, você é contra a política de Lula? Respondeu-me que sim. Pobre não tem tempo para estudar. É uma sub-raça. Não que tenham nascido assim, mas, sim, porque o trabalho os transformou em bestas de carga.

Quis esticar um pouco mais a conversa, mas Smith dizia que suas forças estavam a chegar ao fim. Afinal, fizera uma longa viagem pelo tempo, precisava poupar energia para a volta. Agradeci-o e despedi-me dele, como, agora, aproveito a oportunidade para, também, despedir-me vocês, que já devem estar cansados de me ouvir. Muito obrigado.
apesar de o corpo confinar-se num só planeta, sobre o qual se arrasta com sofrimento e dificuldade, o pensamento pode transportar-nos num instante às regiões mais distintas do universo, ou mesmo, além do universo, para o caos indeterminado, onde se supõe que a natureza em total confusão. Pode-se conceber o que ainda não foi visto ou ouvido, porque não há nada que esteja fora do poder do pensamento, exceto o que implica absoluta contradição [IEH; p. 36].
[1] Hegel, G.W.F. Lecciones sobre la historia de la filosofía. - México: Fundo de Cultura Economica; Vol.I; 1955.