19/09/2007

UMA CONVERSA INFORMAL COM OS CLÁSSICOS

1. POR QUE LER OS CLÁSSICOS?

Não é difícil saber por que se deve ler os clássicos. Em suas Lições Sobre a História da Filosofia, Hegel lembra que o conhecimento da geração do seu tempo não surgiu de improviso, como se brotasse por si só do solo do presente. Muito pelo contrário, para ele, o que homem é hoje na ciência, e especialmente na filosofia, deve à tradição. Esta herança não é uma dívida passiva, o que é herdado das gerações anteriores é reduzido, pelas gerações do presente, à condição de matéria-prima para produção de novos e mais elevados conhecimentos. Nisso consiste a atividade intelectual de qualquer época: apropriar-se do conhecimento produzido pelas gerações passadas, desenvolvê-lo e elevá-lo a um plano superior[1].

Da perspectiva da hermenêutica, a resposta não é muito diferente. Para ela, os homens pertencem à história. Como diria Gademar, em Verdade e Método, “não é a história que pertence a nós, nós é que a ela pertencemos”[p.415]. Ora, se os homens pertencem à história, então, o que são, devem à tradição espiritual e cultural. Mas, como tradição chega ao presente? Se esta questão fosse dirigida a Gadamer, responderia que a linguagem é o médium universal pela qual a tradição alcança o presente, atualiza-se. Porém, como a tradição e o presente pertencem a horizontes históricos temporalmente diferentes, a escrita é, por excelência, a forma de linguagem mais adequada, para trazer a herança cultural e espiritual ao presente, à fala.

O que o homem o é, deve, portanto, à tradição. Esta é um pano de fundo que permanece às suas costas; um reservatório cultural e espiritual herdado do passado e do qual lança mão em suas relações interpessoais e sociais, mesmo que disso não tenham consciência. E, geralmente, não têm. Por quê? Porque cada pessoa nasce numa dada comunidade, na qual tem que aprender com os outros o que estes já julgam saber e fazem. A porta de entrada para o mundo em que chega é a língua a qual a comunidade fala, pensa, intui e compreende o seu espaço vital; uma língua que foi formada nessa comunidade e historicamente herdada. Uma herança da qual os homens se apropriam e a transformam em patrimônio comum de todos, embora nem sempre tenham consciência de que são donos desse legado. Da mesma forma que fazem uso das regras da gramática em suas falas, sem disso se darem conta, acontece o mesmo em suas relações interpessoais e sociais: o acervo cultural historicamente herdado cristaliza-se e transforma-se em um mundo familiarizado, em que os indivíduos reproduzem espontaneamente em sua práxis cotidiana, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo.

Se a linguagem é a corrente que prende a tradição ao mundo contemporâneo, para tomar conhecimento de como ela afeta e determina o comportamento dos homens em seu tempo presente, é preciso dialogar com seus porta-vozes, com aqueles que a pensaram e sobre ela se debruçaram. A distância histórica que os separa do presente pode ser vencida com facilidade, através das páginas nas quais estão registradas as suas reflexões. É uma viagem encantadora, semelhante àquela que as crianças fazem ao tomar contato com o mundo; com tudo se espantam e se surpreendem, até mesmo com um simples abanar de cauda de um animal. Dialogar com os clássicos é como voltar a ser criança, com a diferença de que, agora, o que surpreende e espanta o leitor é que ele não sabia que não conhecia o mundo em que vive.

2. UMA VISITA AO MUNDO DE TOMAS MORUS E DE ROUSSEAU

É esse sentimento que se experimenta quando se dialoga com os clássicos. Para falar dessa sensação, peço aos senhores e senhoras que me deixem falar na primeira pessoa, para contar-lhes um pouco da minha experiência com os pensadores com quem aprendi a pensar e com quem sempre converso.

Enquanto eu alinhavava essas idéias para apresentar-lhes, fui despertado pelo barulho da televisão. Uma voz pausada falava da catástrofe iminente que ameaçava o Planeta Terra. Convidava a todos dar as mãos para salvar o homem do desastre ecológico, que ele mesmo, sem saber, causara a si mesmo. Parei de escrever e corri para frente da televisão, para ouvir o anúncio que já sabia de cor de tanto ouvi-lo. Enquanto desenrolavam as cenas de terremotos, incêndios, guerras etc., a voz do narrador dizia que

Se o homem soubesse antes que ia chover, não se molharia;
Se soubesse antes que a poluição destruiria o planeta, ele reciclaria suas idéias;
Se soubesse antes que haveria guerra, talvez, ele nem tivesse inventado a pólvora;
Se o homem soubesse tudo antes, sofreria menos, sonharia mais.

Desliguei a televisão e voltei ao computador, acompanhado por uma interrogação que me incomodava desde o primeiro dia em que vi e ouvi aquele anúncio. Por alguns minutos, parei para dar ouvidos à pergunta que não parava de me importunar. Perguntava-me se o homem não sabia que ia chover? Será que ele não sabia que a poluição destruiria o Planeta? Que a guerra mataria tanta gente? Foi, então, que me veio à mente a lembrança de Rousseau. Pude ouvir sua voz indignada a perguntar por que só o homem “é suscetível de tornar-se imbecil”. Não é ele um ser da liberdade, e que, por isso, brada o autor do Contrato Social, pode antecipar-se à natureza e até mesmo fazê-la trabalhar a seu favor? Se é assim, perguntava-me como, então, o homem pode destruir o Planeta em que vive, sem disso ter consciência? Ou, será que Rousseau estava errado ao definir o homem como um ser da liberdade e que, portanto, suas escolhas são atos conscientes? Mas, Kant, Hegel, Marx e tantos outros dizem a mesma coisa. Não será essa unanimidade uma prova de que os males que o homem está causando à Mãe Natureza foram deliberadamente produzidos por ele? Com certeza que sim. Ele sabia o que estava fazendo, pois, diferentemente dos animais, que escolhem ou rejeitam por instinto, o homem é livre, responsável pelas conseqüências de seus atos.

Basta! Alguma coisa está errada com a publicidade da Globo. Por que essa emissora responsabiliza todo mundo, sem distinção de classes, origem, cor etc., pela crise ecológica? Deve estar a esconder algum interesse por trás do apelo dramático que faz a todos os habitantes da Terra. Foi, então, que me lembrei de Tomas Morus, do seu livro Utopia, que veio a público em 1516, escrito em forma dialogal, tal como o faz Platão em A República. Mudam apenas o objeto de investigação e os personagens do diálogo. O Sócrates teórico de Platão aparece na Utopia com o nome de Rafael. Indagado pela causas da violência e da fome, que naquele tempo já afligiam milhões de pessoas em todo o mundo, Rafael responde que a causa de tais crimes residia nos carneiros de seus interlocutores - abastados proprietários de terras. Como assim, perguntam espantados, muitos até mesmo irritados com o que acabavam de ouvir. Rafael não se perturba. Responde-lhes que eles transformaram suas criaturas, tão mansas e fáceis de alimentar com pouca coisa,

em animais tão vorazes e ferozes que devoram até mesmo os homens, devastando e despovoando os campos, as granjas, as aldeias. Com efeito, (...) os nobres e os ricos, sem falar de alguns abades, santos personagens, não contentes de viverem à larga e preguiçosamente das rendas anuais que a terra assegurava a seus antepassados, sem nada fazerem em favor da comunidade, (...) não deixam mais nenhum lugar para o cultivo, acabam com as granjas, destroem as aldeias, cercando toda a terra em pastagens fechadas, não deixando subsistir senão a igreja, da qual farão um estábulo para seus carneiros. E, como se vossas áreas de caça e vossos parques, já não ocupassem uma parte suficiente do território, esses homens de bem transformaram em desertos lugares ocupados até então por habitações e culturas.


Tomás Morus enxergou longe. Pode-se dizer que ele foi um contemporâneo teórico de um presente ainda muito distante do tempo em que viveu. Seu gênio brilha justamente porque foi capaz de ter Identificado o fechamento dos campos, essa forma embrionária da propriedade burguesa, como a principal causa do empobrecimento do solo e do despovoamento de vastas áreas, antes habitadas e ocupadas com a produção de alimentos para o homem. Não está aí a origem da questão ecológica, que hoje ameaça destruir a vida no Planeta Terra?

Decerto que sim. Mas à Rede Globo, plagiando Adam Smith, tem medo de incitar a indignação dos pobres e, assim, levá-los a invadir a propriedade de quem passou a vida a trabalhar para amealhar o seu rico patrimônio. Já basta o MST! Para que arranjar mais problemas! A Globo sabe que á fácil instigar a raiva do povo; tem experiência nisso. Obviamente quando é do seu interesse, como aconteceu com os jogos do PAN-2007. O ufanismo do Galvão Bueno foi suficiente para despertar o sentimento de rancor contra os competidores estrangeiros, principalmente os argentinos e cubanos.

Mas enquanto eu pensava nos berros histéricos de Galvão Bueno, com exclamações do tipo “somos uma grande família”, lembrei-me novamente de Rousseau. Que diria ele sobre os males causados pela propriedade privada? Concordaria com Morus? Decerto que sim. Como o autor da Utopia, ele dizia que

o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!

Quer dizer, então, que Rousseau é um inimigo mortal da propriedade privada? Será que ninguém deveria ser dono de nada, de sua própria casa, de um pedaço de terra para prover o seu sustento? Claro que ele não pensava assim. Admitia o direito de propriedade, desde que não fosse utilizada para fazer dinheiro, como assim também pensava Morus. Era contra, isto, sim, a propriedade burguesa.

Conheço muito bem a sua obra. Sei que sua crítica se dirige à propriedade burguesa, que considera como nada mais do que uma sagacidade fraudulenta transformada num direito irrevogável. Justamente porque pensa assim, resolvi convidá-lo para visitar o aeroporto de Congonhas. Mandei-lhe o convite pelo túnel do tempo, junto com uma passagem da TAM. Sua resposta não me surpreendeu: não aceitou meu convite. Mas não me deixou sem explicação. Escreveu-me justificando as razões por que não aceitava o meu pedido, para visitar São Paulo. Na carta dizia-me que já sabia que a Tam é uma empresa que tem como primeiro mandamento o lucro e só, por último, vem o passageiro. Porém não culpava essa Companhia por fazer do lucro a coisa mais importante. Comentou que todas as empresas agem dessa forma, como deixou claro em um longo trecho de sua missiva, que, agora, divido com vocês:

“Que se poderá pensar de um comércio no qual a razão de cada particular lhe dita máximas diferentemente contrárias às que a razão pública prega ao corpo da sociedade e onde cada um encontra seu lucro na infelicidade de outrem? Não haverá, certamente, um homem de fortuna a quem herdeiros ávidos e, freqüentemente, seus próprios filhos não desejem intimamente a morte; nenhum navio naufragado deixou de constituir uma boa notícia para certo negociante; não há uma casa que um devedor de má fé não gostaria que se incendiasse com todos os papéis que contém; todos os povos se regozijam com os desastres de seus vizinhos. Assim, encontramos nossos lucros no prejuízo de nossos semelhantes e a perda de um quase sempre determina a prosperidade de outro. Mas o que existe de mais perigoso ainda é que as calamidades públicas constituem a expectativa e a esperança de uma multidão de particulares; uns desejam doenças, outros a mortalidade, outros a guerra, outros a fome. Vi homens indignos chorarem de dor sabendo da possibilidade de um ano fértil, e o grande e funesto incêndio de Londres, que custou a vida e os bens a tantos infelizes, fazer a fortuna de mais de dez mil pessoas.

“Se considerardes as penas do espírito que nos consomem, as paixões violentas que nos esgotam e nos arruínam, os trabalhos excessivos com os quais se sobrecarregam os povos, a preguiça ainda mais perigosa à qual os ricos se abandonam, e que fazem que morram uns de suas necessidades e os outros de seus excessos; se pensardes nas misturas monstruosas de alimentos, nos temperos perniciosos, nas mercadorias adulteradas, nas drogas falsificadas, nas trapaças daqueles que as vendem, nos erros daqueles que as administram, no veneno das vasilhas em que são preparadas; se prestardes atenção às doenças epidêmicas oriundas do ar confinado entre as multidões de homens reunidos, às que ocasionam a delicadeza de nosso modo de vida, às passagens alternadas do interior de nossas casas para o ar livre, ao uso da roupa vestida ou desvestida com pouquíssima precaução e a todos os cuidados em que nossa sensualidade excessiva transformou em hábitos necessários e cuja negligência ou privação nos custa imediatamente a vida ou a saúde; se levardes em consideração os incêndios e os tremores de terra que, consumindo ou revirando cidades inteiras, fazem com que os habitantes morram aos milhares; em uma palavra, se reunirdes os perigos que todas essas causas juntam continuamente sobre nossas cabeças, vereis como a natureza faz que paguemos caro o desprezo que demos às suas lições”.

3. ADAM SMITH: UM VIAJANTE DO TEMPO


Quando terminei a leitura de sua carta, dobrei-a cuidadosamente e a guardei junto com um maço de correspondências que mantenho às escondidas no fundo de uma gaveta do meu birô, trancada a sete chaves. Foi, então, que me lembrei de Adam Smith. Será que ele não aceitaria meu convite? É melhor nem arriscar. Sei que ele foi um ardoroso defensor da iniciativa privada; um inimigo mortal da ingerência do Estado nos assuntos econômicos. Em uma passagem da Riqueza das Nações, sua principal obra, escrita em 1776, comenta

“que cada indivíduo (...) tem muito melhores condições do que qualquer estadista ou legislador de julgar por si mesmo qual o tipo de atividade nacional na qual pode empregar seu capital, e cujo produto tenha probabilidade de alcançar o valor máximo. O Estadista que tentasse orientar pessoas particulares sobre como devem empregar seu capital não somente se sobrecarregaria com uma preocupação altamente desnecessária, mas também assumiria uma autoridade que seguramente não pode ser confiada a alguma assembléia ou conselho, e que, em lugar algum, seria tão perigosa como nas mãos de uma pessoa com insensatez e presunção suficiente para imaginar capaz de exercer tal autoridade”.

Bem, se ele pensa assim, é melhor mesmo não convidá-lo. Mas, tem tanta gente que vive a invocar o seu nome, para justificar medidas de políticas econômicas liberais! Quem sabe se eu fosse a um centro espírito não conseguiria conversar com ele? Perto da minha casa tem um. De tanto assistir as novelas da Globo, estou a convencer-me de que é possível entrar em contato com os espíritos. Se a Globo acredita nisso e todo mundo acredita no que ela diz, logo eu também posso acreditar. Com um argumento silogístico desses, saturado de audiência ibope, até mesmo o mais empedernido dos ateus acredita que Deus existe.

Não tive mais dúvidas, corri para o Centro Espírita. Lá, fui recebido por várias pessoas, de feições angelicais, todas vestidas de branco. Convidaram-me para sentar à mesa e com elas invocar o espírito de Smith. Não demorou muito, avisaram-me que ele já se encontrava entre nós, que eu poderia conversar com ele. Não perdi tempo. A primeira coisa que lhe perguntei foi se ele concordava com tese de Rousseau, segundo a qual a propriedade burguesa nada mais é do que uma sagacidade fraudulenta transformada num direito irrevogável. – Nem de longe, respondeu-me com certa irritação.

- Então, como o senhor explica a divisão da sociedade entre proprietários e não-proprietários, isto é, entre exploradores e explorados?

- É fácil. Num passado muito remoto, existiam duas espécies de gente. De um lado, um bando de preguiçosos, que vivia dissipando tudo que conseguia com o seu trabalho, nada economizava, consumia tudo que produzia; de outro, um grupo seleto de pessoas que vivia unicamente para trabalhar. De tudo que produzia, acumulava uma parte para vencer as incertezas do futuro. Este último grupo prosperou e se transformou na classe capitalista; os primeiros, porque nada amealharam com seu trabalho, são obrigados, agora, a trabalhar para os que acumularam riqueza. São obrigados a criar um valor maior do que os salários que lhes são pagos, para recompensar o trabalho daqueles que passaram a vida a se sacrificar para juntar seu patrimônio. Esse é o castigo para quem não quis se submeter ao sacrifício de economizar para o futuro.

- Que coisa, meu caro Smith, quer dizer, então, que os pobres são pobres porque, no passado, viviam esbanjando tudo o que conseguiam com o seu trabalho? Ah! Agora entendo melhor uma novela que assisti há muito tempo atrás na Globo, o Rei do Gado. Raul Cortez fazia o papel de Berdinazzi, um rico fazendeiro que um dia se viu cercado por um bando de esfomeados, que se dizia pertencer ao MST. Fiquei com pena do infeliz. Coitado! Construiu sua propriedade com tanto sacrifício, para ser ocupada por vagabundos sem eira nem beira. Ainda hoje me lembro dele. Sentado em sua cadeira de balanço, dizia para seus botões que havia conseguido tudo o que tinha com muito trabalho e sacrifício. “Não contei com ajuda de ninguém”, dizia ele. “Agora, esses desgraçados querem tomar o que é meu e ainda exigem que o governo lhes forneça crédito e outros benefícios, que eu não tive. Que injustiça, meu Deus!”.

Alto lá, Berdinazzi! Não se lembra do seu tempo de rapazote, quando ainda vivia preso à barra da saia da sua mãe? Não sei se você se recorda dos primeiros capítulos da novela, que narram como você roubou a herança de sua pobre mãezinha, para comprar as terras que diz tê-las conseguido com o suor do seu próprio rosto? Essa sua estória me lembra o esforço teórico de John Locke, para justificar a desigualdade de propriedade. Esse grande pensador da Ciência Política moderna, assim como Adam Smith, criou uma ficção teórica para explicar a origem da propriedade privada. Em uma passagem do seu Segundo Tratado Sobre o Governo, sua principal obra, comenta que Deus

concedeu a terra e tudo quanto ela contém ao homem para sustento e conforto da existência (....). Seja o que for que ele (o homem) retire do estado que a natureza lhe forneceu e no qual o deixou, fica-lhe misturado ao próprio trabalho, juntando-se-lhe algo que lhe pertence, e, por isso mesmo, tornando-o propriedade dele.

Acontece que as coisas não são bem assim! No mundo real, e Locke tinha perfeita consciência disso, os ricos não vivem do seu próprio trabalho; dispõem de um exército de assalariados que, para eles, trabalham em troca de um salário de subsistência. Mas, se a terra era patrimônio de todos os filhos de Deus, por que só poucos se tornaram proprietários? Que beco sem saída se meteu Locke! Acuado teoricamente, encontra uma escapatória, lá não muito convincente. Substituiu o trabalho pessoal, que considerava como a origem da propriedade, pelo dinheiro. Só não diz de onde veio-o. Porém, isso pouco lhe importa. Para ele, o dinheiro é uma convenção; quem o tem pode comprar a propriedade dos outros e, assim, juntar mais riqueza do que poderia conseguir com o suor do seu próprio rosto.

Bela saída, Sr. Locke. Não é muito diferente daquela que o criador de Berdinazzi inventou, para o seu personagem, que lhe deu de presente uma mãezinha ingênua, só para ser roubada pelo filho desalmado. Que coisa, meu caro Locke! Qualquer semelhança entre o Sr. e o criador de Berdinazzi não é mera coincidência, não é mesmo? Nem poderia ser diferente. É assim mesmo que a classe dominante e seus ideólogos de plantão, para falar com Marx, criam as idéias dominantes da sociedade. Precisam encontrar uma explicação convincente para tudo, principalmente, para origem da propriedade privada. E, quanto mais esta explicação reproduzir as verdades do senso comum, melhor ainda. Com efeito, quem já não ouviu tantas vezes a batida frase “vai trabalhar vagabundo”, cuja tradução imediata todos conhecem: quem não trabalha não vence na vida? É assim que quase todo mundo pensa. É a força do preconceito popular, que fala mais alto do que qualquer argumento teórico.

Smith, que me ouvia em silêncio, resolveu me interromper, para dizer que as coisas são assim mesmo, como retratadas pelo personagem de Raul Cortez e Locke. Pediu-me licença para ler um trecho do volume II de A Riqueza das Nações, onde diz que

os homens podem viver juntos em sociedade, com um grau aceitável de segurança, embora não haja nenhum magistrado civil que os proteja da injustiça [...]. Entretanto, a avareza e a ambição dos ricos e, por outro lado, a aversão ao trabalho e o amor à tranqüilidade atual e ao prazer, da parte dos pobres, são as paixões que levam a invadir a propriedade [...] adquirida com o trabalho de muitos anos, talvez de muitas gerações sucessivas.

- Concordas comigo, meu caro Teixeira?

- Não sei não, meu Caro Smith, sua explicação cheira-me à estória para Tio Patinhas ouvir.

- Quem é esse Tio Patinhas, pergunta-me Smith? Respondi-lhe que é um personagem de estória em quadrinhos, desenhada para ensinar as crianças por que somente quem leva uma vida de sacrifício, como a do Tio Patinhas, fica rico. Por isso, ele é representado como um pato abençoado por Deus, assim como o são todos os proprietários de Patópolis, que, aliás, contam-se nos dedos. Talvez seja esta a razão pela qual nem a Maga Patológica nem a Madame Mim conseguem se apossar da Moeda número Um do Tio patinhas. Sempre que arrumam algum feitiço, este termina por se voltar contra elas. Moral da história: essa é a sorte de quem cobiça as coisas alheias. Que o digam os coitados dos irmãos Metralhas, que vivem mais tempo na cadeia do que fora dela. O desgraçado do coronel Cintra não lhes sai dos calcanhares.

- Um momento, meu caro Teixeira, quem é esse rapaz que escreveu essas estórias? Onde ele mora?

- Ele já morreu, respondi-lhe. - Mas deixou um verdadeiro império chamado Disneylandia.

- Desculpe-me, meu caro Teixeira, mas esse rapaz sabe das coisas! Pois não é que é assim mesmo que eu vejo a sociedade. Não sei se você leu uma passagem, do Livro I, em que eu falo do Estado. Vou citá-la para você. É um pouco longa, mas, nela, digo tudo o que penso sobre o papel do Estado. Aí você vai compreender porque o Coronel Cintra não larga do pé dos irmãos Metralha. Escute:

o salário depende do contrato normalmente feito entre as duas partes, cujos interesses, aliás, de forma alguma, são os mesmos. Os trabalhadores desejam ganhar o máximo possível, os patrões pagar o mínimo possível. Os primeiros procuram associar-se entre si para levantar os salários do trabalho, os patrões fazem o mesmo para rebaixá-los. Não é difícil prever qual das duas partes, normalmente, leva vantagem na disputa e no poder de forçar a outra concordar com as suas próprias cláusulas. Os patrões, por serem menos numerosos, podem associar-se com maior facilidade; além disso, a lei autoriza ou pelo menos não os proíbe, ao passo que para aos trabalhadores ela proíbe. Não há leis no Parlamento que proíbam a combinar uma redução dos salários; muitas são, porém, as leis do Parlamento que proíbem as associações para aumentar salários". Independentemente das leis promulgadas pelo Parlamento, a luta de classes, no que concerne à determinação do nível salarial, é, em geral, favorável à classe capitalista, pois esta tem capacidade para suportar as conseqüências de uma paralisação, por exemplo, na produção, por conta de uma greve por exemplo. Um proprietário rural, um agricultor ou um comerciante, mesmo sem empregar um trabalhador sequer, conseguiriam geralmente viver um ano ou dois com o patrimônio que já puderam acumular. Ao contrário, muitos trabalhadores não conseguem subsistir uma semana, poucos conseguiriam subsistir um mês e dificilmente algum conseguiria subsistir um ano. A longo prazo, o trabalhador pode ser tão necessário ao seu patrão, quanto este o é para o trabalhador; porém esta necessidade não é tão imediata.


-Que coisa, meu caro Smith, eu pensava que tinha sido Marx quem definira o Estado como comitê da burguesia. Agora, vejo que foi você. Mas, já que estamos a falar do Estado, não sei se você sabe que o governo brasileiro, que se diz pró-trabalhador, criou uma tal de política de cotas para pobres e negros, que desejam ingressar na Universidade. Você concorda com isso? Estou a lhe fazer essa pergunta porque sei que você conhece muito bem quais são os efeitos da divisão do trabalho sobre o trabalhador. Lembro de uma passagem do Livro II, da Riqueza das Nações, em que você diz que

... a ocupação da maior parte daqueles que vivem do trabalho, isto é, a maioria da população, acaba restringindo-se a algumas operações extremamente simples, muitas vezes a uma ou duas [...]. O homem que gasta toda sua vida executando algumas operações simples, cujos efeitos também são, não tem nenhuma oportunidade para exercitar sua compreensão ou para exercer seu espírito inventivo no sentido de encontrar meios para eliminar dificuldades que nunca ocorrem. Ele perde naturalmente o hábito de fazer isso, tornando-se geralmente tão embotado e ignorante quanto possa ser uma criatura humana. O entorpecimento de sua mente o torna tão somente incapaz de saborear ou ter alguma participação em toda conversação racional, mas também de conceber algum sentimento generoso, nobre ou terno, e, conseqüentemente de formar algum julgamento justo até mesmo acerca de muitas obrigações da vida privada [...]. Assim, a habilidade que ele adquiriu em sua ocupação específica parece ter sido adquirida às custas de suas virtudes intelectuais, sociais e marciais.

- Então, meu caro Smith, o que pode o Estado fazer para aliviar o sofrimento dessas pobres criaturas?

- Pouca coisa, meu caro Teixeira. O Estado pode amenizar o sofrimento da classe trabalhadora, mediante uma política geral de educação. Acontece que os pobres, não sei se você sabe,

dispõem de pouco tempo para se dedicar à educação. Seus pais dificilmente têm condições de mantê-los, mesmo na infância. Tão logo sejam capazes de trabalhar, têm que ocupar-se com alguma atividade, para sua subsistência. Este tipo de atividade é geralmente muito simples e uniforme para dar-lhes pequenas oportunidades de exercitarem a mente; ao mesmo tempo, seu trabalho é tão constante e pesado que lhes deixa pouco lazer e menos inclinação para aplicar-se a qualquer outra coisa, ou mesmo para pensar nisso.


- Então, perguntei-lhe, você é contra a política de Lula? Respondeu-me que sim. Pobre não tem tempo para estudar. É uma sub-raça. Não que tenham nascido assim, mas, sim, porque o trabalho os transformou em bestas de carga.

Quis esticar um pouco mais a conversa, mas Smith dizia que suas forças estavam a chegar ao fim. Afinal, fizera uma longa viagem pelo tempo, precisava poupar energia para a volta. Agradeci-o e despedi-me dele, como, agora, aproveito a oportunidade para, também, despedir-me vocês, que já devem estar cansados de me ouvir. Muito obrigado.
apesar de o corpo confinar-se num só planeta, sobre o qual se arrasta com sofrimento e dificuldade, o pensamento pode transportar-nos num instante às regiões mais distintas do universo, ou mesmo, além do universo, para o caos indeterminado, onde se supõe que a natureza em total confusão. Pode-se conceber o que ainda não foi visto ou ouvido, porque não há nada que esteja fora do poder do pensamento, exceto o que implica absoluta contradição [IEH; p. 36].
[1] Hegel, G.W.F. Lecciones sobre la historia de la filosofía. - México: Fundo de Cultura Economica; Vol.I; 1955.

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