1. CARNEIROS DEVORADORES DE HOMENS
Quando Deus criou o mundo, doou a terra ao homem e tudo que nela existe. O mar, os rios, as árvores, os animais, o ar, tudo que a obra da criação deu existência, Deus o fez para o homem. Está escrito no Gênesis, capítulo 1:
1:26 E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos, e sobre toda a terra, e sobre todo réptil que se arrasta sobre a terra.
1:27 Criou, pois, Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.
1:28 Então Deus os abençoou e lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos; enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra.
1:29 Disse-lhes mais: Eis que vos tenho dado todas as ervas que produzem semente, as quais se acham sobre a face de toda a terra, bem como todas as árvores em que há fruto que dê semente; ser-vos-ão para mantimento.
Se Deus soubesse o que seus filhos fariam com o presente que lhes deu, talvez, não tivesse sido tão generoso. Das milhares de espécies de plantas, árvores e ervas que Ele criou para alimentá-los, hoje, utilizam apenas 150 delas, doze das quais representam 75% do consumo humano. Por dia, 100 mil pessoas morrem de fome, apesar de a terra ter hoje capacidade para alimentar duas vezes mais a sua população. Como se não bastasse, a cada sete segundos uma criança menor de dez anos morre por problemas ligados à desnutrição[1].Se não arrependido, Deus deve estar deveras decepcionado com o homem, com o que ele fez com a terra e tudo que nela criou para servi-lo. Quem dera que seus filhos pudessem falar diretamente com Ele! Dele, certamente, ouviriam a seguinte repreensão: “vocês transformaram minha dádiva num negócio particular, para fruição de poucas pessoas. Eu não criei a terra apenas para servir a um punhado de homens. Não deserdei ninguém. Isto é coisa inventada por vocês. Hão de pagar muito caro pela ganância”!
Pagaram mesmo! Só não imaginavam que a Providência Divina havia lhes reservado uma grande surpresa, temperada com uma boa pitada de ironia. Quem diria que o sangue do cordeiro, que outrora livrou o povo escolhido do anjo da morte, em sua fuga do Egito, poderia um dia vir a se transformar no instrumento da ira de Deus contra seus filhos desencaminhados pela cobiça. Esse dia chegou. Aconteceu quando meia dúzia de homens cercou as terras aráveis e os campos para criar ovelhas. Que o diga Tomás Morus. Este homem santo via no cercamento das terras da Grã-Bretanha a principal causa da violência e da degradação da humanidade. Num trecho da Utopia, obra escrita em 1516, sob a forma dialogal, Rafael, o Sócrates teórico de Morus[2], é interpelado, por um dos personagens do diálogo, a explicar a razão que obriga as pessoas a roubarem. Categoricamente, responde que a causa de tais crimes reside nos carneiros. Essas criaturas, tão mansas e fáceis de alimentar com pouca coisa, foram transformadas, diz ele,
em animais tão vorazes e ferozes que devoram até mesmo os homens, devastando e despovoando os campos, as granjas, as aldeias. Com efeito, (...) os nobres e os ricos, sem falar de alguns abades, santos personagens, não contentes de viverem à larga e preguiçosamente das rendas anuais que a terra assegurava a seus antepassados, sem nada fazerem em favor da comunidade, (...) não deixam mais nenhum lugar para o cultivo, acabam com as granjas, destroem as aldeias, cercando toda a terra em pastagens fechadas, não deixando subsistir senão a igreja, da qual farão um estábulo para seus carneiros. E, como se vossas áreas de caça e vossos parques, já não ocupassem uma parte suficiente do território, esses homens de bem transformaram em deserto lugares ocupados até então por habitações e culturas[3].
Tomás Morus enxergou longe. Pode-se dizer que ele foi um contemporâneo teórico de um presente ainda muito distante do tempo em que viveu. Seu gênio brilha justamente porque foi capaz de ter Identificado o fechamento dos campos, essa forma embrionária da propriedade burguesa, como a principal causa do empobrecimento do solo e do despovoamento de vastas áreas, antes habitadas e ocupadas com a produção de alimentos para o homem. Não está aí a origem da questão ecológica, que hoje ameaça destruir a vida no Planeta Terra?
Decerto que sim. Entretanto, o que Morus percebeu era apenas o anúncio de uma tragédia social que estava apenas começando. Muita água ainda haveria de rolar sob a ponte até que toda essa tragédia se tornasse um acontecimento de dimensões universais. Se ele ainda podia ser ouvido por seus pares, duzentos anos depois já não se ouvia mais o grito de indignação de Rousseau, abafado pelo barulho ensurdecedor das máquinas. Aos seus olhos, os homens pareciam espectros vagando de um lado para outro, movidos unicamente pela busca da riqueza. Nessa forma de vida, diz o autor do Contrato Social, o homem apartou-se da natureza, da ordem natural das coisas. As luzes da civilização, longe de iluminar o mundo humano, velam a transparência natural, separam os homens uns dos outros e os reduzem a meros objetos de uma vontade fictícia. Os homens não procuram mais satisfazer suas verdadeiras necessidades, mas, sim, aquelas que sua vaidade criou. Não vivem mais para si; estão fora de si mesmos; tornaram-se escravos das coisas.
É nesses termos que Rousseau responde a questão que a Academia de Dijon havia formulado em 1753, que perguntava pela origem da desigualdade entre os homens e se ela era permitida pela lei natural. Sua resposta encontra-se no tratado sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. Nesta obra, ele identifica a propriedade privada como a causa de todos os males que se abateram sobre o homem. Num trecho bastante conhecido, proclama, com indignação, que
o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém![4]
Aí está a razão por que as luzes da civilização transformaram os homens em criaturas abjetas e os apartaram da natureza. A partir de então, comenta Rousseau: a voz da razão emudeceu; o barulho ensurdecedor do progresso atrofiou a faculdade auditiva dos homens; o brilho cintilante e ruidoso das mercadorias petrificou seus corações. A mercantilização da vida, dizia ele, distorceu de tal forma a figura humana a ponto de transformar cada indivíduo num aleijão humano, num homem sem coração e com enormes lacunas no cérebro.
Indignado com tudo isso, Rousseau pergunta ao homem onde está a razão que um dia ele usou para buscar a felicidade. As páginas de Emilio, ou, da Educação estão cheias de indagações dessa natureza, que podem ser mais ou menos assim resumidas: Aonde está a razão que não abre os teus olhos e o faz enxergar que o mundo que criaste não é um mundo humano? Pois, que mundo é esse em que as coisas são o vínculo que te prende aos outros homens e à vida? Por que deixaste que a razão perdesse o seu brilho de liberdade, para iluminar a terra com o signo do infortúnio triunfal das coisas? Não podes apelar para ela te libertar? - Infelizmente, não. É o que ele responderia. Embriagado pelo fetichismo da mercadoria, o homem perdeu a noção do que é certo e do que é errado. Já não pode mais usar a razão para tal discernimento; ela foi soterrada pelo progresso e exilada do mundo dos homens[5].
2. A VINGANÇA DA NATUREZA
2.1. MORTE, VISITA ANUNCIADA
Mais de dois séculos e meio se passaram desde os tempos em que o tratado sobre a Origem e os Fundamentos Sobre da Desigualdade Entre os Homens veio a público. Se vivo fosse, Rousseau cairia prostrado, acometido por fortes vertigens, causadas, certamente, pelo brilho ofuscante do progresso produzido pelas luzes da civilização. Se em sua época ele ainda perguntava quem fez o universo movimentar-se sem parar[6], hoje, essa pergunta parece descabida: o homem orgulha-se de poder imitar Deus. A ciência pode praticamente tudo. Até mesmo a escassez de recursos, que sempre rondou o homem como uma ameaça, poderá vir a ser superada pela aplicação da nanotecnologia na produção da riqueza. Por que não? Segundo Silva,
a nanotecnologia não é uma tecnologia específica, mas todo um conjunto de técnicas, baseadas na Física, na Química, na Biologia, na ciência e Engenharia de Materiais, e na Computação, que visam estender a capacidade humana de manipular a matéria até os limites do átomo. As aplicações possíveis incluem: aumentar espetacularmente a capacidade de armazenamento e processamento de dados dos computadores; criar novos mecanismos para entrega de medicamentos, mais seguros e menos prejudiciais ao paciente dos que os disponíveis hoje; criar materiais mais leves e mais resistentes do que metais e plásticos, para prédios, automóveis, aviões; e muito mais inovações em desenvolvimento ou que ainda não foram sequer imaginadas. Economia de energia, proteção ao meio ambiente, menor uso de matérias primas escassas, são possibilidades muito concretas dos desenvolvimentos em nanotecnologia que estão ocorrendo hoje e podem ser antevistos[7].
A escassez parece estar com os seus dias contados. Um verdadeiro milagre, que não deixa de ter o seu lado dramático: o fim da economia. Esta ciência, que fizera da escassez a premissa básica da qual deriva suas leis e conceitos, perde sentido no mundo da nanotecnologia[8], onde o fantasma da necessidade prepara-se para bater em retirada.
Milagre semelhante acontece no campo da biogenética[9]. As pesquisas sobre o mapeamento do DNA prometem descobrir o segredo da geração da vida. A arrogância com que falam os cientistas é de deixar qualquer cristão embasbacado. Para muitos deles, a seqüência do genoma humano é o caminho para se chegar ao Santo Graal que, finalmente, poderá revelar a linguagem que permitiu Deus criar a vida.
Essa questão será retomada mais adiante. Antes, é preciso avaliar o preço de todo esse progresso, que deixou atrás de si uma esteira de catástrofes ecológicas incomensuráveis. Para muitos estudiosos da questão ecológica, os mecanismos dos ciclos naturais, que possibilitam a produção e reprodução da vida, estão seriamente comprometidos. É a vingança da natureza. O furacão Katrina, por exemplo, não foi um desastre natural, mas, sim, algo antinatural, no sentido de auto-infligido. A elevação da temperatura global é a resposta da mãe natureza pelas agressões a ela provocadas. Seu protesto manifesta-se aos olhos do homem no desgelo das calotas polares. Um choro silencioso! que pode ser visto no derretimento de gigantescos blocos de icebergs, que descem geleiras abaixo. Em contraste, noutras regiões do Planeta, nascem imensas áreas de desertos, onde não se pode mais encontrar uma viva alma. A própria nanotecnologia, com sua promessa de livrar o homem do fantasma da escassez, tem seus nanopoluentes, cujas conseqüências são imprevisíveis pelas ciências. Esse nova forma de poluição pode ser muito mais perigosa, pois produzida por nanopartículas, podem flutuar facilmente pelo ar viajando por grandes distâncias. Devido ao seu pequeno tamanho, os nanopoluentes podem entrar dentro das células de animais e plantas. Como a maioria destes nanopoluentes não existe na natureza, as células provavelmente não terão os meios apropriados de lidar com eles, causando danos ainda não conhecidos. Estes nanopoluentes poderiam se acumular na cadeia alimentar como os metais pesados e o DDT[10].
É o anúncio da morte do Planeta Terra.
2.2. DOA A QUEM DOER
Se o homem soubesse que sua ação sobre a natureza chegaria tão longe, teria sido mais prudente; teria cuidado com mais parcimônia e desvelo da Mãe Natureza. Não teria sido tão imprevidente. Que o diga a Rede Globo de Televisão. Essa emissora, alarmada com a crise do meio ambiente, invoca a humanidade para organizar uma grande cruzada contra o desastre ecológico. Sua mensagem, narrada num tom emocional, é dirigida aos corações de todos os seres humanos, sem distinção de raça, nacionalidade e status social. Um verdadeiro apelo ao homem, para que ele acorde e lute contra os efeitos destruidores, que suas ações predatórias causaram sobre o Planeta Terra. Literalmente:
Se o homem soubesse antes que ia chover, não se molharia;
Se soubesse antes que a poluição destruiria o planeta, ele reciclaria suas idéias;
Se soubesse antes que haveria guerra, talvez, ele nem tivesse inventado a pólvora;
Se o homem soubesse tudo antes, sofreria menos, sonharia mais.
Dona da “cabeça” de milhões de expectadores, a Globo arvora-se do direito de poder redimir o homem do pecado que cometera contra a natureza, pois julga que ele agiu inconscientemente. Tal pretensão parece não ter limites. Vai tão longe a ponto de até mesmo derrogar o castigo que Deus infligiu aos seus filhos por transformarem o símbolo da salvação em monstros “devoradores” de homens. Mas é assim mesmo que ela consegue desviar a atenção das pessoas das verdadeiras causas da crise ecológica. Constrói sua mensagem no melhor estilo das crônicas do tipo doa a quem doer, as quais elegem um inimigo abstrato como objeto de suas críticas. Como em tais crônicas, esse homem de quem fala a TV Globo não é feito de carne e osso. Decerto que não. De que vive esse homem? Onde mora? A que classe pertence? Como vive?
Só há uma resposta possível: esse homem não existe. Não passa de uma ficção, construída para despolitizar a crise ecológica. Quanto a isso, Coggiola é mais do que preciso, quando afirma que se
fala do meio ambiente e do planeta, como se fala do tratamento de um enfermo, que se tem de curar, mas em nenhum caso descrevem que “vírus” provoca a enfermidade. Escondem-se as forças que destroem o meio ambiente , e também as milhares de milhões de marginalizados, que sofrem as principais conseqüências. É um discurso pomposo e vazio, com o qual se constrói o mito reacionário de que, diante da degradação ecológica, toda a humanidade é igual em responsabilidade (sem distinção de classes ou países) e estaria unida pelos laços indissolúveis de interesses comuns de sobrevivência[11].
Daí é fácil concluir que
as multinacionais, o FMI e o Banco Mundial, os governos dos países imperialistas, ou mesmo a ONU, teriam pouco ou nada a ver com a degradação ecológica e suas conseqüências em relação ao sofrimento de milhares de milhões de seres humanos. É uma visão conformista da ecologia, na qual somos convidados a fazer humanitarismo, enquanto deixamos nas mãos dos que sabem (os governos “democráticos e suas burocracias), dos que conhecem realmente toda a complexidade do tema, a solução[12].
Ora, o vírus que infectou o planeta, causando-lhe um permanente estado febril, já foi identificado há muito tempo atrás. Um dos primeiros “infectologista” a descobrir esse vírus foi Tomás Morus. Encontrou no fechamento dos campos a principal causa da transformação dos carneiros em monstros devoradores de homens e de terras. Pouco mais de duzentos anos depois, o diagnóstico de Rousseau era idêntico ao do autor da Utopia. Com a diferença de que, em seu tempo, a propriedade privada já assumia uma forma burguesa mais desenvolvida. Daí a razão porque a propriedade de ser a principal responsável pela transformação do homem num ser abjeto, num animal de coração miúdo, sem nervos e com profundas lacunas no cérebro. A figura humana fora tão desfigurada que parecia mais um animal do pântano. Para ele, o homem havia regredido aos tempos em que morava em cavernas, com a diferença de que, desde então, era obrigado a envenenar-se todos os dias com a exalação pestilencial das luzes da civilização. Não sem razão, Rousseau refugiou-se na floresta, para redigir sua obra, pois aí encontrou o único lugar onde ainda se podia respirar ar puro, ouvir o canto dos pássaros; sentir-se humano.
2.3. ECOLOGIA: UMA QUESTÃO DE CLASSES
Ainda que muito distantes do que viria a ser a sociedade capitalista, Morus e Rousseau deixaram para as futuras gerações uma grande lição: a crise ecológica tem suas raízes na violência das relações de produção, na propriedade privada. Ela é uma questão de classes. Não é preciso ir muito longe para saber que eles estavam com a razão. Se os carneiros de que falava Morus matou milhares de camponeses e devastou imensas extensões de terra, transformando-as em verdadeiros desertos, hoje, são as grandes corporações internacionais que fazem o que antes faziam os criadores desses animais produtores de lã. Observe-se, por exemplo, a produção de alimentos geneticamente modificados. O mercado para esses produtos é controlado por cinco grandes empresas: três dos Estados Unidos (Du Pont de Nemouurs, Dow Chemical e Monsanto), uma da Suíça (Novartis) e uma da França (Aventis). Juntas, esses gigantes multinacionais controlam 90% do mercado mundial e 100% do mercado de sementes. No ano de 2000, somente a Monsanto plantou 38 milhões de hectares no mundo. Segundo Coggiola, isto “
representa 86% da área total dedicada aos cultivos transgênicos comerciais. A uniformidade, a agricultura industrial, e a concentração corporativa são as características que melhor descrevem os cultivos transgênicos, não a diversidade nem a segurança alimentícia, nem os mercados competitivos[13].
Os efeitos da produção de transgênicos sobre o meio ambiente e sobre a fome de milhões de pessoas são por demais conhecidos. A corrida das corporações transacionais, para criar amplos mercados para a produção de alimentos geneticamente modificados, está criando uma uniformidade genética no meio rural. As conseqüências desse processo são percebidas por Weissheimer, para quem
a diversidade de culturas está se reduzindo nos terrenos agrícolas de todo o mundo a um ritmo galopante, conforme advertência feita esse ano pela FAO. Segundo a organização, ao longo dos últimos cem anos, perderam-se 75% das variedades agrícolas. A agricultura mecanizada e as exigências do mercado estão na raiz da redução da biodiversidade. Historicamente, o ser humano utilizou entre 7 mil e 10 mil espécies, ao passo que hoje só se cultivam tão somente 150 espécies, doze das quais representam 75% do consumo alimentar humano. E desse, só quatro espécies são responsáveis pela metade dos nossos alimentos[14].
Para que lamentar os estragos, se o que importa são os lucros. Para conseguir o que desejam, grandes corporações procuram intensificar a dependência dos agricultores recorrendo ao expediente da propriedade intelectual; uma verdadeira sagacidade fraudulenta transformada num direito irrevogável contra o direito natural dos agricultores de reproduzir ou armazenar suas próprias sementes. Desse modo, conseguem obrigar os camponeses a comprarem suas sementes, antes por eles produzidas e armazenadas.
Quem produz as sementes terá o controle sobre a disponibilidade de alimentos em todo o mundo. Por isso, além da propriedade intelectual, as corporações estão desenvolvendo pesquisas para a produção de sementes estéreis; de sementes que, uma vez semeadas, morrem, impedindo, assim, seu armazenamento para nova produção. Uma engenhosidade da biogenética a serviço do capital. Não sem razão, em 1999, a Monsanto e a AstraZeneca fundiram-se para produzir esse tipo de semente, que morre sem o direito de ressuscitar em novas sementes.
Até mesmo a produção e a reprodução da vida humana tornaram-se propriedade do capital. Com o projeto genoma, os Estados Unidos já outorgaram mais de quatro milhões de patentes sobre as seqüências do genoma humano, em sua grande maioria, sobre fragmentos de DNA cuja função é ainda ignorada. Ignorada, sim, mas com potencialidades de ser explorada com lucratividade.
Obviamente, não se pode negar que a descoberta da seqüência do genoma humano é uma conquista extraordinariamente revolucionária das ciências. Disto não há como duvidar. Segundo John Bell, da Universidade de Oxford, nas próximas décadas, as provas genéticas “preditivas” serão amplamente utilizadas tanto para as pessoas sãs, como também para diagnósticos e tratamentos de pacientes. Acredita-se que o mapeamento do DNA permitirá a cura do câncer, compreender mais as enfermidades que afligem o ser humano e até mesmo desenhar curas personalizadas, baseadas na conformação genética de cada indivíduo. Há quem vá mais longe, para predizer as possibilidades de diagnosticar os genes maus, que provocam enfermidades, e os genes bons, responsáveis por qualidades de vida desejáveis, como longevidade, inteligência, beleza, habilidade para esportes etc. Enfim, as grandes corporações têm em suas mãos o poder de criar bebês desenhados e seres humanos superiores[15].
Não sem razão, Marx definia o capital como um vampiro, que vive a roubar a vida do trabalho, pois desta precisa para reviver; somente matando o vivo pode ganhar vida. Esse deus-monstro, mais do que nunca, tem agora o poder de criar e destruir vidas. Ele arrancou a alma do mundo, patenteou-a e hoje negocia-a na bolsa de valores. Tal como um vampiro que precisa do sangue de suas vítimas para viver, o capital fez das descobertas miraculosas da genética o seu “banco de sangue”, do qual suga sua vitalidade para continuar reinando de forma absoluta sobre todas as coisas. É o que fez a Celera, empresa fundada nos Estados Unidos, por um ex-pesquisador do Projeto Genoma Humano. Essa empresa criou um grande mercado para o genoma humano. Há muito trabalha para concluir
o seqüenciamento do genoma, patenteá-lo e vender essa informação para a indústria farmacêutica e instituições de pesquisa. Caso a concessão de patentes permaneça como é, em pouco tempo a Microsoft será uma microempresa perto da Celera. Só para se ter uma idéia, o potencial de ganhos é tão grande que, no inicio de 2000, [ela] captou nada menos que 800 milhões de dólares no mercado de ações norte-americano[16].
Que diria Rousseau de tudo isso? Certamente, não mais acusaria o homem, esse ser genérico e abstrato, de ser o autor do mal que causara a si mesmo[17]. Não mais lhe pediria para que suprimisse seus erros e vícios, seus funestos progressos. Não mais acreditaria que as pessoas foram ingenuamente enganadas, quando acreditaram naqueles que cercaram um pedaço de terra e lhes “disseram isto é meu”. Seu discurso, certamente, mudaria de endereço. Gritaria: suprimi o capital, se quereis ser dono de novo de vossas vidas!
3. ASSIM FALARM MARX E ENGELS
É o que faz Marx. Seu discurso teórico não é endereçado ao homem, mas, sim, ao capital. Ele não é um humanista desvairado, que não mede as conseqüências de suas ações e, por isso mesmo, é capaz de até pregar o evangelho no inferno. Ora, no capitalismo as pessoas só existem como representantes de mercadorias, portanto, como possuidores de mercadorias. Nada mais são do que personificação das relações econômicas e, como tais, relacionam-se entre si.
Exatamente por isso, Marx não compartilha dos sistemas tradicionais da ética. Ele não é um moralista. Não aposta no melhoramento e no aperfeiçoamento do homem. Não acredita que a consciência moral seja capaz de libertar o homem da condição de suporte de relações que ele não domina. Como apropriadamente esclarece Luiz Bicca,
as características essenciais da sociedade capitalista-burguesa são pois, para Marx (como para Hegel), aquilo que, de princípio, se contrapõe às intenções de reforma moral (...). Os sistemas tradicionais da ética ficam presos à dicotomia fundamental ser-dever-ser, todos compartilham a ilusão do melhoramento, do aperfeiçoamento do indivíduo e crêem, por isso, estarem em oposição à realidade existente. Do ponto de vista da teoria marxiana, eles nem sequer são capazes de tocar a única instância real do existente – o ser social, o processo de produção capitalista da vida humana – e muito menos de questioná-lo[18].
A exploração, a opressão, o individualismo possessivo, dentre outras paixões mercantilizadas pelo capital, não podem ser superadas sem que se mude a estrutura mesma do capitalismo. Essa forma de sociabilidade é marcada por uma inversão estrutural, que transforma as pessoas em coisas e estas em entes dotados de vontade. É assim mesmo que Marx define o conceito de capital. Ele é sujeito que domina, sujeito automático, sujeito de um processo. Ele é movimento autônomo, um objeto-movimento, que tem nele mesmo a força motriz do seu movimento. Que o diga Marx, para quem
o valor torna-se, portanto, valor em processo, dinheiro em processo e, como tal, capital. Ele provém da circulação, entra novamente nela. Sustenta-se e se multiplica nela, retorna aumentado dela e recomeça o mesmo ciclo sempre de novo. D - D’, dinheiro que gera dinheiro – maney which begets money -, diz a discrição do capital na boca dos seus primeiros tradutores, os mercantilistas[19].
Mais do que isso, o capital é uma relação privada consigo mesmo. Ele, diz Marx,
se distingue, como valor original, de si mesmo como mais-valia, assim como Deus Pai e distingue de si mesmo como Deus Filho, e ambos são de mesma idade e constituem de fato, uma só pessoa, pois só por meio da mais-valia de 10 libras esterlinas tornam-se as 100 libras esterlinas adiantadas capital, e assim que se tornam isso, assim que é gerado o filho e, por meio do filho, o pai, desaparece a sua diferença e ambos são unos, 110 libras esterlinas[20].
Estas duas citações deixam claro que o capital só é capital se permanecer em constante movimento. Nesse movimento incessante, ele transforma o dinheiro em mercadoria, para logo abandonar essa forma e voltar a ser dinheiro, para, em seguida, voltar novamente à forma mercadoria e, assim, permanecer nesse movimento ad infinituum. A mercadoria e o dinheiro são, pois, as suas formas imediatas de existência. Conseqüentemente, como as pessoas só existem como personificação das relações econômicas, como representantes das mercadorias, então, não passam de predicados desse sujeito automático.
O capital é essa monstruosidade antropológica, que não passou despercebida aos olhos de Graciliano Ramos. Em seu romance São Bernardo, ele retrata os trabalhadores de Paulo Honório como bichos. É assim mesmo que esta personagem fala dos seus empregados. Em sua fazenda, diz ele,
havia bichos domésticos, como o Padilha, bichos do mato, como Casimiro Lopes, e muitos bichos para o serviço do campo, bois mansos. Os currais que se escoram uns aos outros, lá em baixo, tinham lâmpadas elétricas. E os bezerrinhos mais taludos soletravam a cartilha e aprendiam de cor os mandamentos da lei de Deus[21].
Dono das pessoas, o capital transforma os homens em coisas. Arranca-lhes suas almas para dar vida às coisas. Essa transmigração de almas é representada por Shakespeare, em Tímon de Atenas. Dela, assim falava ele:
Ouro! Ouro vermelho, fulgurante, precioso!
Uma porção dele faz do preto, branco; do feio, bonito;
Do ruim, bom; do velho, jovem; do covarde, valente; do vilão, nobre.
Ó deuses! Por que isso? Por que isso, deuses;
Ah, isso vos afasta do sacerdote e do altar:
E arranca o travesseiro de quem nele repousa;
Sim, esse escravo vermelho ata e desata
Vínculos sagrados; abençoa o amaldiçoado;
Faz a lepra adorável; honra o ladrão,
Dá-lhe títulos, genuflexões e influência,
No conselho dos senadores;
Traz à viúva carregada de anos pretendentes;
Metal maldito, é da humanidade a comum prostituta."[22]
Shakespeare não poderia ter sido mais perspicaz. O capitalismo é isso mesmo de que fala em Tímon de Atenas. Uma forma de sociabilidade em que o homem se transformou em coisas e as coisas em sujeito. Daí a razão por que Marx não acreditava no aperfeiçoamento moral do homem. Para ele, nessa forma de sociedade, não há lugar para a ética. E com razão, pois num mundo em que todos só se reportam uns aos outros na condição de possuidores de mercadorias, a única lei que conhecem é a do mercado. É o que revela num trecho de O Capital, em que ele cria um diálogo entre o trabalhador e o capitalista, no qual aquele cobra deste último seus direitos de vendedor de mercadorias. Literalmente,
a mercadoria que te vendi distingue-se da multidão das outras mercadorias pelo fato de que seu consumo cria valor e valor maior do que ela mesma custa. Essa foi a razão por que a comprastes (...)Tu e eu só conhecemos, no mercado, uma lei, a do intercâmbio de mercadorias (...) Tu me predicas constantemente o evangelho da "parcimônia" e da abstinência. Pois bem! Quero gerir meu único patrimônio, a força de trabalho, como um administrador racional, parcimonioso, abstendo-me de qualquer desperdício tolo da mesma. Eu quero diariamente fazer fluir, converter em movimento, em trabalho, somente tanto dela quanto seja compatível com a sua duração normal e seu desenvolvimento sadio (...). Eu exijo, portanto, uma jornada de trabalho de duração normal e exijo sem apelo a teu coração, pois em assuntos de dinheiro cessa a boa vontade. Poderás ser um cidadão modelar, talvez sejas membro da sociedade protetora dos animais, podes até estar em odor de santidade, mas a coisa que representas diante de mim é algo em cujo peito não bate nenhum coração. Eu exijo a jornada normal de trabalho, porque eu exijo o valor de minha mercadoria, como qualquer outro vendedor[23].
Conclusão: “entre direitos iguais decide a força”. Conseqüentemente, a superação do capitalismo depende da ação política dos trabalhadores. Estes não têm tarefas morais a cumprir, mas, sim, políticas.
É dessa perspectiva que se deve abordar a questão ecológica. Assim como o fim da exploração depende da luta de classes, a crise do meio ambiente só pode ser resolvida no plano da política, isto é, da luta da classe trabalhadora. Uma e outra estão intimamente ligadas, pois o capital não é só um progresso na arte de saquear o trabalhador, mas também na arte de saquear a terra. É o que diz Marx nessa passagem de O Capital:
com a predominância sempre crescente da população urbana que amontoa em grande centros, a produção capitalista acumula, por um lado, a força motriz histórica da sociedade, mas perturba, por outro lado, o metabolismo entre homem e terra, isto é, o retorno dos componentes da terra consumidos pelo homem, sob a forma de alimentos e vestuário, à terra, portanto, a eterna condição natural de fertilidade permanente do solo (...). Assim, como na indústria citadina, na agricultura moderna o aumento da força produtiva e a maior mobilização do trabalhador são conseguidos mediante a devastação e o empestamento da própria força de trabalho. E cada progresso da agricultura capitalista não é só um progresso na arte de saquear o trabalhador, mas ao mesmo tempo na arte de saquear o solo, pois cada progresso no aumento da fertilidade por certo período é simultaneamente um progresso na ruína das fontes permanente dessa fertilidade. Quanto mais um país, como, por exemplo, os Estados Unidos da América do Norte, se inicia com a grande indústria como fundamento do seu desenvolvimento, tanto mais rápido esse processo de destruição. Por isso, a produção capitalista só desenvolve a técnica e a combinação do processo de produção social ao minar simultaneamente as fontes de toda riqueza: a terra e o trabalho[24].
Alto lá! Uma simples citação, arrancada das páginas de O Capital, não é suficiente para demonstrar que Marx tinha consciência de que o capital é uma relação social anti-ecológica. Decerto que não o é. Prova disso, poder-se-ia argumentar, é a sua aposta incondicional no desenvolvimento das forças produtivas, como condição necessária para criar as bases para a emergência de uma sociedade de abundância, na qual os produtores associados estariam livres do pesadelo do trabalho. Conseqüentemente, diriam seus críticos, Marx não estava preocupado com os limites impostos pela natureza e com as conseqüências que ação do homem traria sobre o meio ambiente.
Uma argumentação forte e consistente! É preciso levá-la a sério. De fato, para Marx,
uma formação social nunca perece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas para as quais ela é suficientemente desenvolvida, e novas relações de produção mais adiantadas jamais tomarão o lugar, antes que suas condições materiais de existência tenham sido geradas no seio mesmo da velha sociedade. É por isso que a humanidade só se propõe as tarefas que pode resolver, pois, se se considera mais atentamente, se chegará a conclusão de que a própria tarefa só aparece onde as condições materiais de sua solução já existem, ou, pelo menos, são captadas no processo de seu devir[25].
Marx não deixa margem para dúvidas: é o desenvolvimento das forças produtivas que abre o caminho para o socialismo. Essa “visão prometéica”, diriam os seus críticos, mostra que ele fora um defensor incondicional do desenvolvimento da tecnologia; não estava, portanto, preocupado com suas conseqüência sobre o meio ambiente. A natureza figuraria, em sua teoria do valor, apenas como um meio do qual se serve o homem para alcançar o reino da liberdade.
Uma leitura cuidadosa de O Capital revela justamente o contrário do que pensam os críticos de Marx. Sua dialética não se reduz a uma crítica unicamente das formas sociais, na qual as questões sobre o meio ambiente passariam a largo dela. Isso está longe da verdade. Infelizmente, não é assim que pensam alguns marxistas. Preocupados em acentuar a crítica de Marx à forma social capitalista, esquecem que, para ele, dos meios de produção, a terra figura como o mais importantes deles. Ora, esses marxistas não perceberam que o valor de uso é um das categoriais centrais da analise de Marx. Em seu livro, Teoria do Desenvolvimento Capitalista, Paul Sweezy julga que Marx
exclui o valor de uso /.../ do campo de investigação da economia política sob a alegação de que não representa diretamente uma relação social. Impõe ele (Marx) a rigorosa condição de que as categorias da economia política devem ser categorias sociais, ou seja, categorias que representam relações entre pessoas[26].
Teria Marx cometido tamanho desatino? Ninguém melhor do que ele próprio, para desautorizar a leitura de Sweezy. Suas notas sobre o manual de A. Wagner poderiam ser dirigidas a ele. Com efeito, contra aquele, Marx escreve que
o vir obscurus não viu que já na análise da mercadoria o meu texto não se limita ao duplo modo (Doppelweise) em que ela se apresenta, mas vai adiante imediatamente até que, nesse ser duplo (Doppelsein) da mercadoria se apresenta o duplo (Zweifacher) caráter do trabalho, de que ela é produto: o trabalho útil, os modos concretos (den konkreten Modi) dos trabalhos que criam valores de uso, e o trabalho abstrato, o trabalho enquanto gasto de força de trabalho, qualquer que seja a forma útil pela qual ela é gasta (sobre o que mais adiante se baseia a apresentação do processo de produção); que no desenvolvimento da forma do valor da mercadoria, e em última instância, da sua forma dinheiro, portanto do dinheiro, o valor de uma mercadoria se apresenta no valor de uso, isto é, na forma natural de outra mercadoria, que a própria mais-valia é deduzida de um valor de uso específico da força de trabalho, o qual pertence exclusivamente a esta última etc. etc.; que, em conseqüência, o valor de uso tem no meu texto um papel muito mais importante do que (aquele que ele desempenhou) até aqui na economia[27].
Segue-se daí que os valores de uso são o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a sua forma social. Não é diferente no capitalismo. Acontece que nessa forma de sociabilidade, o valor de uso é relegado à função de mero portador do valor de troca. Assim tem de ser, pois, onde reina a produção de mercadorias, o valor de troca é primeiro com relação ao valor de uso. O capitalista não tem amor às coisas que produz; não produz sapatos porque os acha bonitos, ou porque tem amor a eles. Os valores de uso são produzidos, diz Marx,
na medida em que sejam substrato material, portadores de valores de troca. Primeiro ele (o capitalista) quer produzir um valor de uso que tenha um valor de troca, um artigo destinado à venda, uma mercadoria. Segundo, ele quer produzir uma mercadoria cujo valor seja mais alto que a soma dos valores das mercadorias exigidas para produzi-la, os meios de produção e a força de trabalho, para os quais adiantou seu bom dinheiro no mercado. Quer produzir não só valor de uso, mas uma mercadoria, não só valor de uso, mas valor e não só valor, mas também mais-valia[28].
Não é Marx que rebaixa o valor de uso à mera condição de suporte do valor de troca, mas, sim, o capital. Sendo assim, sua crítica ao sistema produtor de mercadorias é, ao mesmo tempo, uma crítica que liberta o valor de uso dessa condição “antinatural” da produção da riqueza social. Não é por acaso, a crítica que ele faz a Lassalle por ter feito do trabalho a única fonte de riqueza, ignorando, assim, a contribuição da natureza. Lassalle parece que não leu, com a devida atenção, O Capital. No primeiro capitulo dessa obra, seção II, lê-se que
os valores de uso casaco, linho etc., enfim, os corpos da mercadorias, são ligações de dois elementos, matéria fornecida pela natureza e trabalho. Subtraindo-se a soma total de todos os trabalhos úteis contidos no casaco, linho etc., resta sempre um substrato material que existe sem a ação adicional do homem, fornecido pela natureza. Ao produzir, o homem só pode proceder como a própria natureza, isto é, apenas mudando as formas materiais. Mais ainda: Nesse trabalho de formação ele é constantemente amparado por forças naturais. Portanto, o trabalho não é a única fonte dos valores de uso que produz, da riqueza material. Dela o trabalho é o pai, como diz William Petty, e a terra a mãe[29].
Daí a preocupação de Marx com a questão da terra, com o progresso do capitalismo que não é só um progresso “na arte de saquear o trabalhador, mas também, na arte de saquear o solo”, como deixa claro na nota citada anteriormente[30]. Afinal, para ele, dos objetos de trabalho, a terra, incluindo aí a água, é o principal deles. Sua apropriação é indispensável para que os elementos do processo de trabalho possam ser utilizados. Com efeito,
todas as coisas, que o trabalho só desprende de sua conexão direta com o conjunto da terra, são objetos de trabalho preexistentes por natureza. Assim, o peixe que se pesca ao separá-lo do seu elemento de vida, a madeira que se abate na floresta virgem, o minério que é arrancado do seu filão[31].
Não há como duvidar: a natureza é, para Marx, condição eterna de existência do homem, que dela depende para viver. Conseqüentemente, ela não pode ser vista como um mero meio de produção de riqueza, como assim o é para o capital, mas, sim, como condição necessária da produção e reprodução da vida. Daí a preocupação de Engels com o futuro da terra. Vale a pena facultar-lhe a palavra, sem limitação de espaço. Afinal, o que ele tem para dizer é mais importante do que a deselegância que uma longa citação possa causar ao leitor. Como Marx, ele tinha consciência de que
o animal apenas utiliza a Natureza, nela produzindo modificações somente por sua presença; o homem a submete, pondo-a a serviço de seus fins determinados, imprimindo-lhe as modificações que julga necessárias, isto é, domina a Natureza. E esta é a diferença essencial e decisiva entre o homem e os demais animais; e, por outro lado, é o trabalho que determina essa diferença.
Mas não nos regozijemos demasiadamente em face dessas vitórias humanas sobre a Natureza. A cada uma dessas vitórias, ela exerce a sua vingança. Cada uma delas, na verdade, produz, em primeiro lugar, certas conseqüências com que podemos contar; mas, em segundo e terceiro lugares, produz outras muito diferentes, mas previstas, que quase sempre anulam essas primeiras conseqüências. Os homens que na Mesopotâmia, na Grécia, na Ásia Menor e noutras partes destruíram os bosques, para obter terra arável, não podiam imaginar que, dessa forma, estavam dando origem à atual desolação dessas terras ao despojá-las de seus bosques, isto é, dos centros de captação e acumulação de umidade. Os italianos dos Alpes, quando devastaram, na sua vertente Sul, os bosques de pinheiros, tão cuidadosamente conservados na vertente Norte, nem sequer suspeitavam que, dessa maneira, estavam arrancando, em seu território, as raízes da economia das granjas leiteiras; e menos ainda suspeitavam que assim estavam eliminando a água das vertentes da montanha, durante a maior parte do ano e que, na época das chuvas, seriam derramadas furiosas torrentes sobre as planícies. Os propagadores da batata, na Europa, não sabiam que, por meio desse tubérculo, estavam difundindo a escrófula. E assim, somos a cada passo advertidos de que não podemos dominar a Natureza como um conquistador domina um povo estrangeiro, como alguém situado fora da Natureza; mas sim que lhe pertencemos, com a nossa carne, nosso sangue, nosso cérebro; que estão no meio dela; e que todo nosso domínio sobre ela consiste na vantagem que levamos sobre os demais seres de poder chegar a conhecer suas leis e aplicá-las corretamente[32] .
Engels vai mais longe, para dizer, em alto e bom som, que
a ciência social da burguesia, a economia política clássica, ocupa-se apenas com os efeitos sociais imediatos a serem obtidos através das atividades humanas dirigidas no sentido da produção e do intercâmbio. Isso corresponde inteiramente à organização social da qual ela é a expressão teórica. Daí a razão por que os capitalistas, cada um por seu lado, produzem e trocam tendo apenas em vista o lucro imediato e, assim sendo, só podem colocar em primeiro lugar os resultados mais próximos e diretos. Considerando que qualquer industrial ou comerciante apenas se preocupa em vender, com um pouquinho de lucro embora, a mercadoria fabricada ou comprada, está claro que fica satisfeito e não mais se interessa pelo que possa acontecer com a mercadoria e com seu comprador. O mesmo (sucede) com as conseqüências naturais dessas mesmas atividades. Aos agricultores espanhóis, estabelecidos em Cuba, que queimaram as matas nas encostas das montanhas (tendo conseguido, com as cinzas daí resultantes o adubo suficiente para uma só geração, para cafeeiros muito lucrativos), que lhes importava o fato de que, mais tarde, os aguaceiros tropicais provocassem a erosão das terras que, sem defesas vegetais, transformaram-se em rocha nua? Em face da Natureza, como em face da Sociedade, o modo atual de produção só leva em conta o êxito inicial e mais palpável; e, no entanto, muita gente se surpreende ainda pelo fato de que as conseqüências remotas das atividades assim orientadas sejam inteiramente diferentes e, quase sempre, contrárias ao objetivo visado; admiram-se de que a harmonia entre a oferta e a procura se transforme em seu oposto polar, como se verifica no transcurso de cada ciclo decenal da indústria e como também à Alemanha o experimentou, com um pequeno prelúdio, no krach; surpreendem-se de que a propriedade privada, fundada no trabalho próprio, se desenvolver necessariamente no sentido da carência de propriedade entre os trabalhadores, enquanto toda a propriedade se concentra, cada vez mais, nas mãos dos que não trabalham[33].
Se Marx e Engels estão com a razão, direito difícil de lhes negar, então, não se pode deixar de concluir que não há solução para a crise ecológica nos marcos da sociedade capitalista. O capital, pelo que foi visto ao longo destas páginas, é inimigo mortal da natureza. Daí o ceticismo do cientista Roland Sheppard, para quem
se não derrubarmos o capitalismo, não teremos chance de salvar ecologicamente o mundo. Penso ser possível uma sociedade ecológica sob o socialismo. Não a acredito possível sob o capitalismo[34].
[1] Esses dados são da ONU e constam num artigo de Marco Aurélio Weissheimer, publicado na Carta Maior, edição de 01/03/2007.
[2] Tomás Morus escreveu a Utopia tomando como modelo a República e as Leis de Platão.
[3] Morus, Sir Tomás, Santo. Utopia. Porto Alegre: L&PM, 2001. p. 31/32.
[4] Rousseau, Jean-Jackes. Rousseau, Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens. – São Paulo: Abril Cultural, 1978; p. 259.
[5] Rousseau não é inimigo da razão. Sua crítica não se faz em nome de um regresso do homem ao chamado “estado de natureza”, que, para ele, não mais existe, talvez, nunca existiu e, provavelmente, nunca existirá. Sua crítica é dirigida, pois, à razão instrumental, que “aprisiona os homens na subjetividade turva da opinião e da ilusão”. Sua intenção é, pois, recuperar a dimensão libertadora da razão, tirá-la desse lamaçal em que se encontra. Mas, como isso seria possível? Só há uma saída, diria ele, é preciso envolvê-la com o calor do coração, pois é aí que a consciência moral construiu a sua morada, para nela guardar e velar as verdadeiras regras do agir moral. Em suas próprias palavras, “revesti a razão de um corpo, se quereis torná-la sensível a ela. Fazei com que passe pelo coração a língua do espírito; para que ele se faça compreender” [Rousseau, Jean-Jacques. Emilio, ou, da Educação. – São Paulo: Martins Fontes, 1999., p.441].
[6] Idem, Ibidem. p.366: “A experiência e a observação fizeram-nos conhecer as leis do movimento; tais leis determinam os efeitos sem mostrar as causas; não bastam para explicar o sistema do mundo e a marcha do universo (...). Newton descobriu a lei da atração, mas a atração sozinha logo reduzira o universo a uma massa imóvel; a esta lei foi preciso uma força projétil para fazer com que os corpos celestes descrevessem curvas. Diga-nos Descartes que lei física fez co que seus turbilhões girassem; mostre-nos Newton a mão que lançou os planetas na tangente de suas órbitas”.
[7] Da Silva, Cylon Gonçalves. O que é nanotecnologia, in http://www.comciencia.br.
[8] Para se ter uma idéia da escala em que opera a nanotecnologia “imagine uma praia começando em Salvador, na Bahia, e indo até Natal, no Rio Grande do Norte. Pegue um grão de areia nesta praia. Pois bem, as dimensões desse grão de areia estão para o comprimento desta praia, como o nanômetro[8] está para o metro. É algo muito difícil de imaginar. Mesmo cientistas que trabalham com átomos todos os dias, precisam de toda sua imaginação e muita prática para se familiarizar com quantidades tão pequenas” [Da Silva, Cylon Gonçalves].
[9]Segundo Silva, “no Brasil, a nanotecnologia ainda está começando. Mas, já há resultados importantes. Por exemplo, um grupo de pesquisadores da Embrapa, liderados pelo Dr. L. H. Mattoso, desenvolveu uma "língua eletrônica", um dispositivo que combina sensores químicos de espessura nanométrica, com um sofisticado programa de computador para detectar sabores. A língua eletrônica da Embrapa, que ganhou prêmios e está patenteada, é mais sensível do que a própria língua humana. Ela é um produto nanotecnológico, pois depende para seu funcionamento da capacidade dos cientistas de sintetizar (criar) novos materiais e de organizá-los, camada molecular por camada molecular, em um sensor que reage eletricamente a diferentes produtos químicos. Você pode imaginar alguns usos para uma língua eletrônica? (...) Não é só na Embrapa, entretanto, que se faz nanotecnologia no Brasil. O mesmo acontece nas principais universidades e centros de pesquisa do país” [Idem, Ibidem].
[10] Wikipedia.org./wiki/nanotecnologia. “O DDT (sigla de Dicloro-Difenil-Tricloroetano) é o primeiro pesticida moderno tendo sido desenvolvido após a Segunda Guerra para o combate dos mosquitos causadores da malária e do tifo. O DDT é insolúvel em água mas solúvel em compostos orgânicos como a gordura e o óleo e tem um odor suave. O químico suíço Paul Hermann Müller da Geigy Pharmaceutical recebeu o prêmio Nobel de medicina em 1948 por descobrir a eficiência do DDT para a erradicação de vários tipos de artrópodes. Apesar de sua eficiência a bióloga norte-americana Rachel Carson denunciou em seu livro "Primavera Silenciosa" que o DDT causava cancro e interferia com a vida animal causando por exemplo o aumento de mortalidade dos pássaros. Por este e outros estudos o DDT foi banido na década de 1970 de vários países. O DDT tem uma meia vida de vários dias em lagos e rios. O DDT se acumula na cadeia alimentar pois animais são contaminados por ele e depois são ingeridos por seus predadores que absorvem o DDT. Como os predadores se alimentam de várias presas, absorvem muito DDT. Como resultado o DDT pode causar uma mortalidade maior para os predadores naturais de uma determinada praga do que para a própria praga. Isto pode causar um aumento descontrolado da população da praga devido a ausência de predadores. O DDT pode estar presente em níveis aceitáveis em um lago mas vai se acumulando ao longo de uma cadeia de predadores até chegar em um peixe de consumo humano que pode apresentar uma concentração de DDT muito tóxica”.
[11] Coggiola, Osvaldo. Crise Ecológica, Biotecnologia e Imperialismo; in www.insrolux.org. / textos 2006/cogiolla.pdf.; p. 15.
[12] Idem, Ibidem., p. 15/16.
[13] Idem, Ibidem., p. 31.
[14] Weissheimer, Marco Aurélio., op. cit.
[15] Ver Coggiola, Osvaldo., op. cit. p. 41.
[16] Idem, Ibidem., p.. 37.
[17] Rousseau, Jean-Jacques. Emilio., op. cit. p. 379/80: “homem, não mais procures o autor do mal; esse autor és tu mesmo. Não existe outro mal além do que fazes ou do que sofres, e ambos vêm de ti. O mal geral só pode estar na desordem, e vejo no sistema do mundo uma ordem que não se desmente (...). Suprimi nossos funestos progressos, suprimi nossos erros e nossos vícios, suprimi a obra do homem e tudo estará bem”
[18] Bicca, Luiz. Marxismo e Liberdade. – São Paulo: Edições Loyola, 1987., p. 136.
[19] Marx, Karl. Marx, Karl. O capital: crítica da economia política. – São Paulo: Nova Cultural, 1985. Liv. I, Vol.I., p. 127.
[20] Idem, Ibidem., p. 127.
[21] Ramos, Graciliano. São Bernardo. - Rio de Janeiro: Record, 2001., p. 185.
[22] Shakespeare, Apud Marx, Karl. O Capital. op. cit. Liv. I, Vol. I. p. 112.
[23] Marx, Karl. O Capital., op. cit. Liv. I, Vol. I., p. 180/81.
[24] Idem, Ibidem., I, Vol. II., p. 102.
[25] Marx, Karl. Para a crítica da economia política. – São Paulo: Abrilç Cultural, 1982., p. 26 (os grifos são por minha conta).
[26] Paul Marlor SWEEZY, Teoria do Desenvolvimento Capitalista: Princípios de Economia Política Marxista, São Paulo, Nova Cultural, 1986, p. 33.
[27] Marx, Apud Ruy Fausto, Marx: Lógica e Política. – São Paulo: Editora Brasiliense, 1983., p. 767, Tomo I.
[28] Marx, Karl. O Capital, op. cit. Liv. I, Vol. I, p. 155.
[29] Idem, Ibidem. Liv. I, Vol. I., p. 50/51.
[30] Veja nota 25.
[31] Marx, Karl. op. cit. Liv. I, Vol. I, p. 150.
[32] Engels, Friedrich. A Dialética da Nautreza. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979; p. 223/24.
[33] Idem, Ibidem., p. 226/27.
[34] Sheppard, Roland. Whither Humanity? The environmental crisis of capitalism. Apud, Coggiola, Osvaldo. op. cit. p. 72.
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5 comentários:
grande texeira!
bom saber que você tem um blog, passarei mais vezes por aqui.
quiser dá um pulo no meu... o conteudo nào é lá essas coisas...
abraço.
grande texeira!
bom saber que você tem um blog, passarei mais vezes por aqui.
quiser dá um pulo no meu... o conteudo nào é lá essas coisas...
abraço.
aconteceu um erro acima... Maria Lima é minha mãe, não tem nada haver com o blog. Portanto, o blog está no link "rodrigo colares".
Um belo texto, certamente. Assim como Marx fez século e meio atrás, a crítica à sociedade não pode ser feita senão mediante a crítica à economia política. Nesse sentido, a problemática ambiental, cujo limiar já tocamos e estamos a ponto de transpassar, só pode ser adequadamente respondida pela crítica de toda a vida social, e, portanto, do modo de produção social contemporâneo, ainda reticentemente capitalista. Qualquer outra tentativa de se abordar o problema incorrerá fatidicamente em respostas vazias, quando não ideológicas e conservadoras. É precisamente a partir desse viés conservador que se ângulam as "críticas" da mídia empresarial e, por que não, do discurso ideológico a respeito da "responsabilidade socioambiental", responsabilidade esta tomada como prerrogativa privada. As empresas e, sobretudo, os indíviduos são chamados a salvarem o mundo, valendo-se apenas de medidas pontuais e ações esparsas e triviais. "Salvar o mundo dá-se dia-a-dia", diriam estes ideólogos. Assim, a questão maior, ou seja, o modo como o homem produz e reproduz suas condições de existência, passa despercebido. Enfim, é importante remarmos contra a corrente. Apenas uma reserva, caro Texeira: achei desnecessário o tom moralizador do seu discurso. De resto, é um texto digno de nota. Grande abraço!
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