19/09/2007

O LUGAR DO TRABALHO NO MUNDO, HOJE E AMANHÃ

1. LIÇÕES DA HISTÓRIA

Com o fim do socialismo real, entram em cena duas correntes de pensamento. De um lado, os defensores da ordem não se cansam de repetir a lengalenga de sempre: a imprescindibilidade do mercado, considerada como uma instituição natural que cresce e se afirma como a única forma possível de sociabilidade. A queda do muro de Berlim transformou-se na pedra de toque dessa verdade, que se diz eterna. De outro, estão os socialistas que acreditam não ser mais possível uma sociedade sem classes; por isso apostam na possibilidade de dividir o poder político com a classe capitalista. Estes últimos entendem que decretar a falência total das teorias socialistas seria o mesmo que fechar os olhos ao crescimento da pobreza e da miséria, à intensificação da exploração de classe, à concentração monopólica. Noutras palavras, seria o mesmo que jogar mais “lenha na fogueira” ideológica do neoliberalismo ou legitimar as políticas de desmantelamento do Estado social.
Para os socialistas, que defendem a possibilidade de dividir o poder político com a burguesia, nunca é demais lembrar que essa posição tem história; vem de longe, desde os tempos em que a Social-Democracia Alemã apostou que seria possível tomar o poder político pela via legal, pela via eleitoral. Os debates em torno dessa questão deixaram lições extremamente ricas. Dentre eles destaque-se a polêmica de Lênin contra Hilferding e Kautsky, que pode ser acompanhada, em parte, na crítica que ele dirige ao oportunismo dos social-democratas, expressa em seu livro Imperialismo, fase superior do capitalismo, no qual ele acusa, principalmente, Kautsky, de haver cometido o mesmo erro de certos autores burgueses. Estes defendiam a idéia de que

os cartéis internacionais, uma das mais acentuadas expressões da internacionalização do capital, permitiram ter a esperança de que a paz há de reinar entre os povos em regime capitalista. Do ponto de vista teórico, esta opinião é inteiramente absurda; e do ponto de vista prático, é um sofisma e um meio de defesa desonesto, do pior oportunismo (...). Kautsky comete o mesmo erro. E, evidentemente, o que está em jogo não é a burguesia alemã, mas a burguesia mundial[1].

Ora, dizia Lênin, quando o mundo já se encontra totalmente partilhado entre um punhado de grandes monopólios, é um erro, como assim cometeram os kautskistas, tentar atenuar esse fato,

dizendo que ‘seria possível’, sem política colonial, ‘dispendiosa e perigosa’, procurar matérias-primas no mercado livre, e que seria ‘possível’ aumentar em proporções gigantescas a oferta de matérias-primas, graças a uma ‘simples’ melhoria nas condições da agricultura em geral. Estas declarações, porém, redundam na apologia do imperialismo, na sua idealização, pois silenciam a particularidade essencial do capitalismo contemporâneo: os monopólios. O mercaado livre cada vez mais se distancia no passado; os sindicatos e os trustes monopolistas limitam-no a cada dia que passa. E, a ‘simples’ melhoria das condições da agricultura reduz-se à melhoria da situação das massas, à alta dos salários e à diminuição dos lucros. Mas existirão, para lá da imaginação dos suaves reformistas, trustes capazes de se preocuparem com a situação das massas em vez de pensarem na conquistas de colônias[2]?

A crítica de Lênin está ancorada em bases teóricas sólidas. Porque foi capaz de pensar o movimento da economia capitalista como uma totalidade, porque foi capaz de pensá-la do ponto de vista da reprodução do capital, ele pôde atualizar as propriedades essenciais do capitalismo em geral, investigadas e expostas por Marx em O Capital, cuja tendência de desenvolvimento resultou numa nova fase de acumulação do sistema: o imperialismo. Essa nova fase marca o inicio da virada, segundo Lênin, do antigo num novo capitalismo, no qual o domínio do capital em geral, isto é, industrial, fora substituído pelo capital financeiro. Vale dizer: a antiga divisão social do trabalho entre os setores bancário e industrial, como expressão das formas de existência do capital em geral[3], desapareceu para dar lugar ao domínio do capital financeiro, que é a um só tempo capital-dinheiro e capital produtivo[4]. Daí sua exclamação oportuna: “o antigo capitalismo fez a sua época. O novo constitui uma transição”. Duas formas distintas de acumulação? Decerto que sim. Mas, longe de representar uma ruptura do sistema, o imperialismo expressa o acirramento das contradições do capital.
Nesse contexto, Lênin advertia que

se a luta contra a política dos trustes e dos bancos não atingir as suas bases econômicas, ela reduzir-se-á a um reformismo e a um pacifismo burguês, a piedosos e inofensivos desejos. Iludir as contradições existentes, esquecer as mais essenciais em vez de lhes desvendar toda a profundidade, eis ao que conduz a teoria de kautsky que nada tem de comum com o marxismo[5].

Críticas ao vento! Os oportunistas social-democratas fizeram vista grossa às censuras de Lênin. Com seus discursos do tipo “dêem-nos 50,1% dos votos e realizaremos vossos objetivos”, ganharam a confiança da classe trabalhadora e conquistaram não poucas vitórias políticas e econômicas. Conseguiram transformar o voto censitário num direito universal; em muitos países europeus, reduziram a semana de trabalho de 72 para 35 horas; ampliaram o sistema de proteção social e, hoje, os inválidos e doentes contam com serviços de assistência médica e aposentadoria; criaram o seguro-desemprego; universalizaram a educação; além de outros direitos sociais e políticos.
Este é o legado deixado pelos oportunistas da social-democracia. Mas é preciso considerar o reverso da medalha. Não se pode esquecer que toda essa vitória cobrou um preço muito alto, cujas cifras estão registradas na história com números indeléveis de sangue e fogo. O balanço é de Mandel[6], para quem a social-democracia internacional, com honrosas exceções, justificou e facilitou a carnificina de dez milhões de seres humanos durante a Primeira Guerra Mundial, em nome de pretensas razões de defesa nacional. Os governos social-democratas, ou com a participação da social democracia, organizaram ou defenderam guerras na Indochina, Malásia, Indonésia e Argélia. Foram mais longe ainda. Defenderam práticas de tortura e limitaram as liberdades democráticas na Índia, Indonésia, Egito, Iraque e Singapura. Protegeram o regime do apartheid na África do Sul. Participaram da Guerra Fria, além de se tornarem cúmplices das políticas imperialistas. Apoiaram e organizaram as políticas de austeridade monetárias e fiscais, feitas em nome do grande capital, que tiveram como conseqüência o desmantelamento do Estado social, que ajudaram a construir.
Os resultados dessa política oportunista não poderiam ter sido mais desastrosos. Mais de 15% da classe trabalhadora estão desempregadas - quase um bilhão de pessoas; metade da população do Planeta passa fome; 100 mil pessoas morrem de fome por dia[7]. A distância entre os países ricos e pobres cresceu assustadoramente. O consumo per capita de um francês, por exemplo, é da ordem de 5 vezes e meia superior ao de um egípcio; um alemão consome 17 vezes mais do que um indiano; um americano, 35 vezes mais do que um tanzaniano. Se, no final da Segunda Guerra Mundial, a relação entre o Norte e o Sul era de 30 para 1, atualmente, é de 74 para 1, e não pára de crescer[8]. Se, na época de Lênin, não havia mais “territórios sem donos”, hoje o capital está mais concentrado do que nunca. E como! O mundo tornou-se propriedade particular de meia dúzia de empresas. No ramo de supermercado, por exemplo, a Wal-Mart, considerada a maior empresa do mundo, tem seis mil fábricas produzindo para ela, das quais 80% estão na China. Na produção de sementes, a Monsanto controla 90% das sementes transgênicas do globo. As dez maiores empresas farmacêuticas e de produtos veterinários respondem por 59% do mercado mundial. Na área de biotecnologia, a concentração da produção é ainda maior: as dez maiores empresas são donas de 73% das vendas realizadas em todo o mundo. A Bayer, Syngenta, BASF, Dow, Monsanto, Dupont, Koor, Sumitomo, Nufarm e Arista, que exploram a produção e venda de agrotóxicos, juntas, concentram 84% das vendas globais[9].
A voracidade imperialista do capital tornou o mundo deveras abstrato; isto é, num enorme e gigantesco mercado sem fronteiras, onde tudo é mercadoria. Por mais cintilante e ofuscante que sejam as coisas, suas diferenças qualitativas acabam por desaparecer sob o signo dos seus preços; afinal, todas nada mais são do que valores de troca. Até mesmo a geração da vida tornou-se mercadoria negociada na bolsa de valores. Com efeito, protegidas pelo direito intelectual de propriedade, as grandes corporações são donas do mapeamento do DNA humano, das plantas e dos animais; podem fabricar vidas. As experiências mendelinas parecem brincadeiras de jardim da infância diante do poder avassalador das grandes corporações, que, atualmente, têm em suas mãos a capacidade de criar bebês desenhados e seres humanos superiores, todos ao gosto do consumidor.
O mundo todo virou um grande mercado, que opera segundo “leis eternas”, as quais todos estão acorrentados. Nele tudo é tão igual, tão repetitivo, tão apressado, que até mesmo as pessoas chegam a esquecer de si mesmas; só se dão conta de que existem, quando vão ao banheiro. Mundo sem memória, pois tudo parece se reduzir a momentos, que só duram enquanto um novo modelo de mercadoria entra no mercado, para logo ser substituído por outro, também, com data de vencimento marcada. Tudo e todos são apanhados e atirados ao redemoinho do mercado mundial, do qual não podem mais fugir, porque não há mais portas de entrada e saída; todos já nascem dentro dele, crescem nele e nele morrem. O mundo todo virou um grande supermercado.
Nesse contexto, os atuais militantes de esquerda perderam qualquer esperança de encontrar uma saída política desse imenso mercado. Diferentemente dos históricos da antiga social-democracia, que apostaram na possibilidade de construção de um novo mundo, aqueles afirmam o presente e julgam que já não podem mais transformá-lo. Não estão mais preocupados com buscar novas formas de vida, mas, sim, se adaptarem ao existente e aceitar seus valores e representações como evidências inquestionáveis de um mundo que não tem mais futuro. São pragmáticos empedernidos, que se agarram à faticidade do presente existente, para elevá-la à condição única de toda e qualquer práxis humana. Assim pensam e agem os sindicatos, ao transformarem suas entidades em agências de emprego e de auxílio aos seus filiados, com serviços médicos, odontológicos, jurídicos empréstimos consignados, dentre outras coisas. Não é diferente do que acontece com os partidos políticos de esquerda. Trocaram os projetos ideológicos de outrora pela administração do sistema, na medida em que aceitam os fatos do dia-a-dia como medida do seu agir e pensar. Mais uma vez procuram iludir as contradições do sistema, em vez de procurar desvendá-las em toda a sua profundidade, como advertia Lênin em seu Imperialismo: fase superior do capitalismo. Da forma mais desavergonhada e desonesta, enveredam pelo caminho da solidariedade; elegem a urgência como principio motor de suas ações. Noutras palavras, trocaram a militância política de outrora pela ação humanitária, pois acreditam que salvar uma vida humana, lidar com o imediato, para enfrentar situações particulares é muito mais importante do que lutar pelo socialismo ... tão distante do presente! Assim, fazem do pragmatismo humanitário uma opção ideológica.
Quanta hipocrisia! Nisso nada há de opção ideológica, e, sim, de sobrevivência, de conformismo.
2. O CAPITALISMO NÃO É MAIS O MESMO
Que importa que assim sejam julgados, se estão convencidos de que podem apagar o fogo da floresta, carregando água com as mãos. Quando todos se fazem de surdos, não adianta gritar-lhes; melhor deixá-los em paz e retomar o diálogo com Lênin. Dessa feita, para convidá-lo a visitar o presente, no qual o capitalismo adquiriu novo fôlego e novas determinações, que, em seu tempo, não podiam se realizar dentro das formas estabelecidas de existência do capital financeiro.
Somente a partir da década de sessenta do século passado, são criadas as condições políticas e econômicas[10] para a consolidação de um verdadeiro mercado mundial do dinheiro, que abriu uma nova fase de financeirização da economia, que se expressa [1] no declínio da moeda e dos depósitos bancários enquanto fontes de financiamento do processo de acumulação; [2] na desintermediação financeira, por conta da expansão das técnicas mediante a emissão de títulos, que passaram a substituir os empréstimos bancários convencionais; [3] na ampliação das funções financeiras no interior das corporações produtivas; [4] na transacionalização de bancos e empresas; [5] na interdependência de taxas de juros e de câmbio, [6] no déficit público endogeneizado, isto é, financiado mediante a emissão de títulos públicos renegociáveis do mercado de capitais; [7] na compra e venda de corporações como um negócio específico das empresas produtivas; [8] fusões como modalidade mais importante de investimento; [9] na natureza multinacional, multissetorial e multifuncional das grandes corporações que operam no mercado mundial; e [10] na permanência do dólar como moeda estratégica mundial[11].
Nesse contexto, as diferentes unidades de capital tornam-se indiferentes à forma concreta [comércio, indústria, serviços, etc] de se que reveste no processo de valorização. As empresas não se configuram mais como unidades particulares de capital, operando num determinado setor da economia, a produzir uma mercadoria específica. Não são mais células petrificadas dentro do universo da produção de mercadorias, explorando uma atividade, ou sob a forma de capital-dinheiro, ou de capital produtivo, ou de capital-mercadoria. Essas configurações do capital, que foram ossificadas pela divisão do trabalho, perderam sua independência relativa e deixaram de ser campos específicos de investimentos de capitais particulares. Que o diga Chenais, para quem a companhia multinacional
está assumindo, cada vez mais, o papel de regente da orquestra, em relação a diversas atividades de produção e transações, que se dão no interior de um 'cacho' ou 'rede' de relações transnacionais, tanto internas como externas às companhias, e que podem incluir ou não um investimento de capital, mas cujo objetivo consiste em promover seus interesses globais[12].
A empresa multinacional apagou as fronteiras setoriais da economia, na medida em que sua estratégia de atuação abstrai as formas concretas em que investe seu capital. Ela deixa de ser cada vez mais uma empresa predominantemente industrial ou de serviços, bem como uma companhia bancária ou financeira. E deixa, porque sua estratégia de valorização apóia-se numa lógica tecno-financeira, que tem sua base de competitividade alicerçada
... na definição de um know-how e na P&D. Ela tenta valorizar essa vantagem em todos os setores onde for possível sua competência tecnológica. Com isso ela tenderá a sair do seu setor de origem e diversificar-se em modalidades totalmente originais. Sua nova força reside em sua capacidade de montar 'operações complexas', [que] que irão exigir a combinação de operadores vindo de horizontes muito diferentes: empresas industriais, firmas de engenharia, bancos internacionais, organismos multilaterais de financiamento. Destes, uns serão locais, outros terão estatuto internacional[13].

A companhia multinacional se configura, assim, como um verdadeiro grupo congregando várias filiais, sob o controle de um centro de decisão financeiro chamado holding. Este centro estabelece uma teia de vínculos, principalmente financeiros, entre um número variado de empresas envolvidas em múltiplas atividades, de modo a tirar vantagens das diferentes oportunidades de valorização do capital. Para isto, ele precisa adquirir uma extrema mobilidade, de modo a permitir à direção do centro investir ou desinvestir massas de capitais, de acordo com as exigências de valorização do mercado.
Não sem razão, Chesnais define a empresa multinacional como uma unidade de capital, cujo
... objetivo é a auto-valorização, a obtenção de lucro, em condições nas quais o ramo industrial, bem como a localização geográfica do comprometimento do capital têm, em última análise, caráter contingente. Nessas condições, um dos atributos idéias do capital, que é também, mais do que nunca, um dos objetivos concretos colocados pelos grupos, é a mobilidade, a recusa a se prender a determiminadas modalidades de comprometimento setorial ou geográfico - qualquer que tenha sido sua importância na formação e crescimento do grupo - , bem como a capacidade de se soltar, de desinvestir tanto quanto de investir.[14]

Nisto reside o novo de que se reveste a empresa multinacional. Mais precisamente, sua particularidade consiste no fato de que ela rompeu os limites da divisão social do trabalho, na medida em que não é apenas uma unidade dentro da cadeia da produção social, voltada para produzir uma mercadoria específica e destinada a satisfazer uma necessidade particular. Como capital em geral, ela é um lugar abstrato de valorização de valor, que não importa a forma concreta que assume. Ela é capital-dinheiro, capital produtivo e capital comercial, sem deixar se petrificar em nenhuma dessas formas. Ela assume e abandona essas formas, sem se perder em nenhuma delas, na medida em que se modificam as exigências de valorização. Todas são igualmente meios milagrosos para fazer de dinheiro mais dinheiro. Assim, a empresa multinacional realiza o ideal do capital, que tem a si próprio como fim, e que, por isso, é indiferente à qualidade particular do setor em que se encontra investido[15].
A partir de então, não há mais domínio de uma fração do capital sobre as demais, pois cada unidade de capital (empresa) opera simultaneamente como capital-dinheiro, capital produtivo e capital-mercadoria. Essas diferentes formas de existência do capital não estão mais subsumidas ao capital financeiro, pois o capital se tornou uno, sem formas empiricamente distinguíveis. Conseqüentemente, a categoria de capital em geral volta a ser a única forma de existência do capital. Nesse sentido, essa categoria é bem mais apropriada do que a de capital financeiro, para dar conta das novas determinações do capitalismo contemporâneo[16]. Até mesmo do ponto de vista de suas implicações políticas, a categoria capital em geral traduz com mais precisão o capitalismo de hoje. Com efeito, quando se fala do capital financeiro, a impressão, que vem à mente, é a de que se trata de uma forma especulativa de capital, que impede a expansão do capital industrial e, assim, a geração de riqueza e de postos de trabalho. Ora, na sua nova configuração, o capital industrial é tão especulativo quanto o é o capital financeiro. Prova disto é o fato de que 40% dos lucros das grandes corporações industriais japonesas, por exemplo, são provenientes de atividades não-operacionais, isto é, são produtos de especulação no mercado financeiro. É, portanto, um erro político acreditar que o combate ao capital financeiro recolocaria a economia nos trilhos da prosperidade, como acreditam aqueles que vêem no neoliberalismo a causa da crise do capitalismo.


3. O FUTURO DO TRABALHO

Qual é o lugar do trabalho nesse novo estágio de desenvolvimento do capitalismo? Ainda é possível apostar nas políticas públicas do Estado? Noutras palavras, o Estado, como o fez no passado, teria poder suficiente para assegurar uma política de trabalho de pleno emprego?
Ninguém melhor do que Celso Furtado para responder a essas questões. Otimista por natureza como o foi, quem sabe se ele não pode trazer alguma esperança, para desfazer o pessimismo que carregam as idéias até aqui desenvolvidas. Quem conhece sua obra sabe que, para ele, o desenvolvimento e o subdesenvolvimento são dimensões de um mesmo processo histórico. Eis a razão porque, segundo assim pensava, a divisão internacional do trabalho tenderia a aprofundar ainda mais a distância entre o centro e a periferia do sistema. Conseqüentemente, sua conclusão não poderia ser outra: as forças de mercado não seriam suficientes para superar tal estado de coisas. Daí a sua aposta na construção de um projeto político, que deveria ser orientado por duas idéias-força: (1) deslocar o eixo da lógica da acumulação do lucro pelo lucro, para uma lógica dos fins, em função do bem-estar social, e (2) incentivar a cooperação e solidariedade entre os países do centro e da periferia.
Infelizmente, Furtado morreu sem ver concretizado o seu projeto político. Pouco tempo antes de sua despedida definitiva, chegava à conclusão que

hoje, mesmo na Europa, não se vê horizonte para uma relativa harmonia baseada no pleno emprego. Para manter o nível de agressividade das economias capitalistas tornou-se necessário abandonar as políticas de emprego. O aumento de produtividade se desassociou de efeitos sociais benéficos. Esta é a maior mutação que vejo nas economias capitalistas contemporâneas”.

Pessimismo de quem se cansou de lutar por um sonho que não viu realizar-se? Ou se trata da disposição de ânimo de um espírito abatido pelos reveses do tempo? Quem dera que assim fosse! Furtado não é o único a não mais acreditar numa sociedade de pleno emprego. Seu pessimismo faz eco com outras vozes. Para Juán Somavia, diretor geral da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o crescimento econômico não é mais capaz de gerar postos de trabalho suficientes para acabar com o desemprego. Segundo ele, em 2004, a taxa de crescimento da economia mundial, que foi da ordem de 5,1%, resultou apenas num aumento de 1,8% no número de pessoas ocupadas. Mas isso ainda não traduz toda a questão. Até 2015, argumenta Somavia, “cerca de 400 milhões de pessoas se incorporarão à força de trabalho. Isto quer dizer que mesmo que se consiga um crescimento acelerado do emprego para produzir 40 milhões de postos por ano, a taxa de desemprego baixaria apenas 1% em 10 anos”.
No Brasil, as perspectivas para o trabalho são igualmente desanimadoras. Estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o mercado de trabalho no Brasil está encolhendo. Uma pesquisa realizada por essa instituição junto à indústria automotiva, revela que nos anos 80, para uma capacidade de produção de um milhão e quinhentos mil veículos, este setor empregava 140 mil trabalhadores. Hoje, para uma capacidade de produção de três milhões de veículos, as montadoras empregam apenas 90 mil trabalhadores.
Diante dessa realidade, o IBGE sugere duas políticas de intervenção no mercado de trabalho: (1) um agressivo programa de requalificação profissional, e (2) uma drástica redução da jornada de trabalho. Infelizmente, o alcance de tais medidas depende de uma séria de outras condições. No que concerne às políticas de formação profissional, seus resultados estão diretamente sujeitos ao desempenho da economia. Com efeito, para Beatriz Azeredo, economista do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), “... a eficiência desses programas tende a reduzir-se pela disputa de um maior número de desempregados pelas vagas existentes”. Vale dizer, tais políticas são de pouco valor se a economia não estiver criando novos e bons empregos.
Quanto à redução da jornada de trabalho, o IBGE reconhece que seu alcance é, também, limitado. Num contexto de economias globalizadas, a diminuição do tempo de trabalho, diz essa instituição, “não pode ser um ato isolado e unilateral de um só país ou dois. É preciso estabelecer uma nova jornada de trabalho de caráter universal, algo como uma resolução da Organização das Nações Unidas por todos os países e para ser fiscalizada a sua aplicação por um órgão tipo OIT, a Organização Internacional do Trabalho, para que não haja um desequilíbrio nos custos de produção e quebra da eqüidade competitiva entre países no mercado mundial. E, também, para que não haja redução de salários ...”.
Mesmo que se admita uma menor jornada internacional do trabalho, ainda assim não se podem esperar grandes resultados. No caso do Brasil, seria preciso retirar do mercado de trabalho 11 milhões de pessoas, que não deveriam estar trabalhando. Estudos realizados pelo economista Marcio Pochmann mostram que cerca de 2 milhões de crianças, com menos de 14 anos de idade, estão trabalhando ou procurando trabalho. Some-se a este contingente de pessoas, que deveriam estar na escola, 6 milhões de aposentados e pensionistas que continuam trabalhando. Mais grave ainda: 3 milhões de pessoas têm mais de um emprego. Conseqüentemente, menores oportunidades para quem está chegando ao mercado pela primeira vez ou se encontra em busca de um novo trabalho.
Na “Terra do Sol”, o cenário não é menos desanimador. Com uma população estimada de 2,4 milhões de pessoas, Fortaleza tem, hoje, mais de 164 mil desempregados. É muita gente de braços cruzados. Segundo dados do Instituto do Desenvolvimento do Trabalho (IDT), em 1984, 14,74% da força de trabalho estavam procurando trabalho. No ano seguinte, em 1985, essa situação não se alterou; 14,72% continuavam à procura de trabalho. Nos anos 90, somente em 1993, o desemprego caiu abaixo de dois dígitos: 9,13%. Daí em diante, o desemprego voltou a crescer até atingir a taxa de 13,56%, em 1999. Nos anos que abrem o século 21, o desemprego continuou a afligir parcela significativa da força de trabalho. Em 2000, Fortaleza tinha 12,95% de desempregados; em 2001, o desemprego jogava na rua 16,12% dos trabalhadores; atinge 15,30%, em 2002; 16,91%, em 2003 e 17,03%, em 2004. No ano passado, em 2005, 15,68% dos trabalhadores estavam desempregados. Uma queda significativa, se comparada com o ano anterior, 2004. Mas, não há muito a comemorar. Em 2006, o desemprego volta a crescer, atingindo, em março deste ano, 16,21% da força de trabalho. São mais de 20 anos com taxas de desemprego bem acima de 10%. Que coisa! Parece que não há mais lugar para o trabalho no mundo de hoje. A julgar pelo diagnóstico aqui desenhado, não há como afirmar o contrário. Felizmente, nenhum ceticismo é de todo absoluto. Como diria David Hume, a natureza sempre trabalha contra o cético. Por mais que ele insista em não acreditar em nada, até mesmo em sua própria existência, o mundo não se acaba. Há que continuar a lutar para permanecer vivo. Se é assim, não é descabido pensar num mundo diferente; num mundo onde haja lugar para o trabalho. Quem sabe se não seria possível resgatar o sonho de Celso Furtado? A social-democracia um dia tentou substituir a lógica do lucro pela lógica dos fins, em função do bem-estar social. Conseguiu avanços importantes, a despeito de hoje ser obrigada a abrir mão de muito de suas conquistas históricas. Se uma vez deu certo, não seria oportuno tentar de novo? Quem sabe se, desta vez, não se possa abrir uma porta para o socialismo?
[1] Lênin, V. O Imperialismo: fase superior do capitalismo. – São Paulo: global editora distribuidora ltda, 1982. p. 73.
[2] Idem, Ibidem., p. 82.
[3] Marx, Karl. Para a crítica da economia política. – São Paulo: Abril Cultural., 1982. Liv. II, p. 53. “Na circulação, o capital industrial" ... assume duas formas, a do capital-dinheiro e a do capital-mercadoria; no estágio de produção, a forma de capital produtivo. O capital que no decurso do seu ciclo ora assume ora abandona essas formas, executando através de cada uma delas a função correspondente, é o capital industrial (....), no sentido de abranger todo ramo de produção explorado segundo o modo capitalista".
[4] Lênin, V. Op. cit. p. 45: “o século XX marca o ponto de partida de viragem em que o antigo capitalismo deu lugar ao novo, em que o domínio do capital financeiro substituiu o domínio do capital em geral”
[5] Idem, Ibidem. P. 92.
[6] Mandel, Ernest. Situação e Futuro do Socialismo, in O Socialismo do Futuro: Revista de debate político. – Lisboa: Publicações Dom Quixote Ltda. Vol. 1, Nº 1, 1990., p. 84/86.
[7] Idem, Ibidem: p. 91: “Segundo a UNICEF, morrem todos os anos de fome e por causa de doenças curáveis, nos Países do Terceiro Mundo, 16 milhões de crianças. Em cinco anos, este índice de mortalidade equivale ao total de baixas ocorrido em toda a Segunda Guerra Mundial. Em cada cinco anos desenrola-se pois uma guerra mundial contra os meninos do Terceiro Mundo: este é o resultado do funcionamento real da economia capitalista internacional tão prezado por alguns socialistas”.
[8] As estatísticas sobre a concentração da renda são de George, Susan. O Relatório Lugano: sobre a manutenção do capitalismo no século XXI. . – São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.
[9] Relatório do Grupo ETC, Oligopoly Inc 2005: www.etcgroup.org
[10] Para uma análise das condições políticas e conômicas que possibilitaram a criação de um mercado mundial do dinheiro, ver Moffitt, Michael. O dinheiro do Mundo: de Bretton Woods às beira da insolvência - Rio de janeiro: Paz e Terra, 1994.
[11] Ver Braga, José Carlos. Financeirização Global: o padrão sistêmico de riqueza do capitalismo contemporâneo - in O Poder do Dinheiro: uma economia política da globalização - Maria da Conceição Tavares/ José Luis Fiori (organizadores). - Petrópolis, Rj. Vozes, 1997.
[12] Chenais, François. Chenais, François. A Mundialização do Capital - São Paulo: Xamã, 1996, p.69.

[13] Idem, ibidem. P. 77.
[14] Idem, ibidemj. P. 81.
[15] Essa mobilidade e autonomização do processo de acumulação diante as diferentes formas de existência do capital têm um preço político muito alto: a perda de poder do Estado para disciplinar e normatizar o crescimento e o desenvolvimento da economia. O Estado torna-se refém da lógica do capital, pois no movimento de financeirização do processo de acumulação, como diz Braga, “... se insere a interdependência patrimonial - e não apenas comercial e creditícia, como antes, dos proprietários dos principais países industrializados, pela qual seus ativos e passivos estão conectados a ponto de tornar a gestão público-privada da riqueza forçosamente interativa e supranacional, ainda que sem a coordenação virtuosa pretensamente almejada pelo G-7”. Em conseqüência disso, acrescenta que “... está a transformação das finanças públicas em reféns ao ponto de lhes reduzir sensivelmente a capacidade de promover o gasto autônomo dinamizador do investimento, da renda e do emprego; de tornar financeirizada a dívida pública que, como tal, sanciona os ganhos financeiros privados e amplia a financeirização geral dos mercados [Braga, José Carlos. op. cit. 233/8].

[16] Lênin fala da dependência do capital industrial e comercial com relação ao capital bancário, não do fim dessas formas de existência do capital. Os bancos apropriam-se de fatias crescente do lucro industrial e comercial sem, contudo, perderem sua característica de capital-dinheiro. Para ele, “se um banco desconta duplicatas de um industrial, se lhe abre uma conta corrente, etc., essas operações, enquanto tais, em nada diminuem a independência deste industrial. Porém, se estas operações se multiplicam e ocorrem regularmente, se o banco reúne, nas suas mãos, enormes capitais, se a escrituração das contas correntes de uma empresa permite ao banco – e tal é o que sucede – conhecer, com cada vez maior amplitude e precisão, a situação econômica do cliente, daí resulta uma dependência, cada vez mais completa, do capitalista industrial em relação ao banco” [Lênin, op. cit. p. 40]. Dependência crescente, atente-se, que não elimina a divisão social do trabalho entre bancos e indústria.

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