25/11/2010

O Mundo Reificado de Graciliano Ramos: uma leitura na perspectiva da economia política

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Graciliano Ramos não inventou novelas ou romances para entretenimento de um público besta, rico e vazio. Não via o mundo do alpendre da casa grande, como muitos de seus contemporâneos regionalistas o fizeram. Provavelmente, diria de Rachel de Queiroz o que pensava de José Lins. Em Memórias do Cárcere, pergunta a seus botões se seu amigo realmente conheceria a vida daqueles que nasceram para servir ao coronel José Paulino, avô do sinhozinho Carlinho, menino do engenho Santa Rosa. Responde que “provavelmente não conhecia”. E acrescenta:

acusavam-no de ser apenas um memorialista, de não possuir imaginação, e o romance mostra justamente o contrário. Que entendia ele de meninos nascidos e criados na lama e na miséria, ele, filho de proprietários? Contudo a narração tinha verossimilhança. Eu seria incapaz de semelhante proeza: só me abalanço a expor a coisa observada e sentida (Graciliano, 2001, p.71).

“Só me abalanço a expor a coisa observada e sentida” - destaque-se.

Com esta frase, Graciliano deixa claro que a matéria-prima da sua imaginação literária não cai do céu e mais uma vez provoca José Lins por se abalançar a escrever sobre coisas de um mundo que não conhecia. Censura-o ao vê-lo

afastar-se da bagaceira e do canavial, tratados com segurança e vigor em obras anteriores, discorrer sobre Fernando de Noronha, onde nunca esteve (...). Pessoa de tanta experiência, de tanto exame, largar fatos observados, aventurar-se a narrar coisas de uma prisão distante. Os indivíduos livres não entendem a nossa vida além das grades, as oscilações do caráter e da inteligência, desespero sem causa aparente, covardia substituída por atos de coragem doida. Somos animais desequilibrados, fizeram-nos assim, deram-nos almas incompatíveis (...). Zanguei-me com José Lins. Porque se havia lançado àquilo? O admirável romancista precisava dormir no chão, passar fome, perder as unhas nas sindicâncias. A cadeia não é um brinquedo literário. Obtemos informações lá fora, lemos em excesso, mas os autores que nos guiam não jejuaram, não sufocaram numa tábua suja, meio doidos. Raciocinam bem, tudo certo. Que adianta? Impossível conceber o sofrimento alheio se não sofremos. O começo do livro de José Lins torturava-me. Quase desejei ver o meu amigo preso (Graciliano, 2001, p. 215/16).

No parágrafo seguinte, assim arremata suas meditações:

- Somos sapateiros. Devemos fazer sapatos, bons sapatos. Para que fabricar pulseiras e brincos? Sapateiros, bons sapatos (Graciliano, 2001, p. 216).

GRACILIANO RAMOS: UM “EMPIRISTA” VULGAR?

Seria Graciliano um escritor de espírito empirista rasteiro, que não consegue ir além do alcance imediato dos sentidos? Se ele se apega extremamente à realidade sensível, não seria a sua obra apenas um relato do imediatamente observado?

Claro que não. Sua obra não só não tem um imenso valor literário, como também oferece uma profunda análise da realidade. Sem exagero, pode-se até dizer que seus escritos podem ser lidos como um verdadeiro tratado de Economia Política.

Isso mesmo! Um verdadeiro tratado de Economia. Quem Vidas Secas e o compara com O Quinze, de Rachael de Queiroz, escritos quase na mesma época, percebe a enorme diferença entre esses dois romances, que têm como tema central a questão da seca.

Um mesmo tema, duas abordagens radicalmente distintas. E como! Chico Bento, vaqueiro da fazenda das Aroeiras, de propriedade de Dona Maroca, caiu na desgraça quando São José avisou que a seca veio para ficar. No paiol, não sobrou uma espiga de milho. Aperreado, o vaqueiro conta o pouco que conseguiu juntar com a “quarta” - um boiote, uma vaca solteira e um garrote. Seu compadre Vicente compra suas três reses pela metade do preço. Como era homem de coração bom, daqueles que nunca deixa seus “cabras numa desgraça”, ainda lhe dá de lambuja uma burra velha.

No dia seguinte, antes de o sol sair, Chico Bento pega a mulher, Dona Cordulina, os cinco filhos, e bota o pé na estrada no rumo da Capital do estado. Na viagem, perde o menino do meio. Coitado? Comeu mandioca - foi a conta. Morreu envenenado, com o bucho mais esticado do que couro de pandeiro. O mais velho apartou-se da família e tomou destino ignorado.

Com dois filhos a menos, Chico Bento e D. Cordulina chegam a Fortaleza. Estropiados, só coros e ossos, com a barriga pregada no espinhaço, arranjam abrigo nos campos de concentração, para onde as autoridades mandavam os retirantes. O menino de colo, entre a vida e a morte, é salvo pela bondade de Conceição - sua madrinha de batismo. Era uma candidata a vitalina atrás de companhia. Certamente, precisaria de alguém para lhe guardar a velhice.

A família de Chico Bento ficou reduzida a quatro almas. Esse controle de natalidade, providenciado pela fome, foi até bom. Ficou mais fácil arranjar passagens, para embarcar rumo a São Paulo. Quem sabe se pelas bandas de lá não faria fortuna. Terra boa, onde nunca havia seca, haveria de nela fazer seu pé de meia; talvez pudesse ficar rico, voltar ao seu torrão natal, comprar uma propriedade grande, botar os filhos na escola. Quem sabe se um deles não viraria doutor.

Nunca mais fugiria da seca.

Que importa! Por trás da maestria com que Rachel move a sua pena se esconde uma visão de mundo carregada de preconceitos. A autora de O Quinze narra a história de Chico Bento e de sua família debruçada sobre o batente da janela que dá para o alpendre da casa grande. A distância que separa o seu mundo daquele em que vivem os Chicos Bentos da vida é enorme. Isso lhe permite transformar o coitado do vaqueiro em um objeto terapêutico, para trazer à tona os sentimentos de terror e de piedade dos seus leitores. Descarrega, em cada página do seu romance, suas impressões sentimentais de compaixão e comoção, tão bem expressas no gesto piedoso de Conceição e de seu compadre Luís Bezerra, delegado da cidade do Acarape. Graças a ele, que conseguira arrumar quatro passagens de trem, os mais de 200 quilômetros de caminhada de Chico Bento e sua família foram reduzidos em pouco mais de 20%.

Fabiano divide com Chico Bento a mesma sina. Ambos são vaqueiros, porém são representados de formas radicalmente distintas. Diferentemente de Rachel, Graciliano Ramos não vê Fabiano como objeto da caridade alheia, mas como um bicho que nasceu para cuidar das coisas alheias. Um objeto de exploração do capital, como foram seu avô e seu pai. “Nascera com esse destino, ninguém tinha culpa de ele haver nascido com um destino ruim”.

Retrata-o, assim, o autor de Vidas Secas. Podia Fabiano arribar para São Paulo, para lá tentar a sorte? Decerto que sim. Mas quem nasceu para a cangalha jamais vira burro de sela. Se lhe dissessem

que era possível melhorar de situação, espantar-se-ia. Tinha vindo ao mundo para amansar brabo, curar feridas com rezas, consertar cercas de inverno a verão. Era sina. O pai vivera assim, o avô também. E para trás não existia família. Cortar mandacaru, ensebar látegos – aquilo estava no sangue. Conforma-se, não pretendia mais nada. Se lhe desse o que era dele, estava certo. Não davam. Era um desgraçado, era como um cachorro, só recebia ossos. Porque seria que os homens ricos ainda lhe tomavam uma parte dos ossos? Fazia até nojo pessoas importantes se ocuparem com semelhantes porcarias (Graciliano, 2002, p. 96).

Não tinha jeito mesmo, não. Fabiano era uma coisa da fazenda, um traste. Vaqueiro de aluguel, poderia ser despedido a qualquer hora. Um deslize, era a conta. Tinha que entregar de volta ao patrão tudo o que recebera ao ser contratado: o cavalo de fábrica, perneiras, gibão, guarda-peito e os sapatões de couro cru. Toda essa tralha ficava com o vaqueiro que o substituiria.

Com seca ou sem seca, não havia tempo bom para Fabiano. Vivia de trouxa arrumada. Era sua sina. Sua saga, narrada em Vidas Secas, é um capítulo resumido de toda sua vida. Entra na narrativa do romance da mesma forma que dele sai. Vinha tangido pela seca e termina empurrado por ela. Chega de mãos abanando e sai com uma na frente e outra atrás, sem nada.

Fabiano era um assalariado disfarçado sob o véu da “quarta”. Como seus consortes da cidade, seu emprego não era para a vida toda. Com a diferença de que o ciclo do sertão é marcado pelo calendário da seca. Mas a lógica é a mesma: quando os negócios vão mau, o jeito é cortar despesa. As empresas reduzem o ritmo de produção, jogam fora o excesso de trabalhadores. Os patrões invisíveis, que só visitam suas fazendas no dia da ferra do gado, agem da mesma forma. Quando chega a seca, abrem as porteiras, soltam o gado nas matas, despedem o vaqueiro. Endividado, vende por uma ninharia o pouco que juntou com a “quarta”. Pega as trouxas, mulher e filhos, e arriba novamente.

A incerteza e o medo são as companhias de vida do vaqueiro Fabiano, sina que ele divide com o professor Padilha, contratado por Paulo Honório, dono do império São Bernardo, para ensinar o bê-á-bá aos moleques dos seus trabalhadores. Como Fabiano, Padilha parecia o cágado, vivia encolhido dentro do corpo com medo de perder o emprego. Qualquer deslize era motivo para ir para o olho da rua, como aconteceu no dia em que foi flagrado falando de socialismo. Soltando fogo pelas ventas, Paulo Honório deu-lhe um esbregue daqueles:

Em minha terra não (...). Das cancelas para dentro ninguém mija fora do caco. Pegue suas burundangas e dana-se. Com um professor assim, estou bonito. Dou por vista o que esse sem-vergonha ensina aos alunos Graciliano, 2001, p. 59).

Os berros de Paulo Honório eram conhecidos de Fabiano. E sabia por que. Seu patrão atual

berrava sem precisão. Quase nunca vinha à fazenda, só botava os pés nela para achar tudo ruim. O gado aumentava, o serviço ia bem, mas o proprietário descompunha o vaqueiro. Natural. Descompunha porque podia descompor, e Fabiano ouvia as descomposturas com o chapéu de couro debaixo do braço, desculpava-se e prometia emendar-se. Mentalmente jurava não emendar nada, porque estava tudo em ordem, e o amo só queria mostrar autoridade, gritar que era dono. Quem tinha dúvida? Graciliano, 2002, p. 22/23).

Não há mesmo diferença entre o professor Padilha e o vaqueiro Fabiano. Ambos estão ligados pelos laços invisíveis da divisão capitalista do trabalho. Com funções distintas, é verdade, porém um mesmo cambão pesa sobre seus pescoços: o poder dos donos do dinheiro. O que os distingue é apenas o lugar que cada um ocupa no interior do processo de produção de mercadorias: um é professor; o outro, vaqueiro. Comem apenas o pouco que ganham com seus salários de miséria.

O sertão de Graciliano Ramos é, portanto, bem diferente daquele pintado por Rachael de Queiroz. Para ela, o sertão é feito de homens bons, como Vicente, Conceição e o delegado Luís Bezerra, mas também gente ruim, como o dono da cabra, que Chico Bento se viu obrigado a matá-la para saciar a fome dos filhos e da mulher. Mal terminara de tirar o coro do animal, o proprietário aparece aos berros: - “Cachorro! Ladrão! Matar minha cabrinha! Desgraçado!” Pegou o animal, jogou-o nos ombros, deixando para o pobre vaqueiro o fato do bicho: “ se quiser, que mate a fome com isso, seu ladrão miserável”. Pior é a Dona Maroca, das Aroeiras, a quem Chico Bento serviu a vida toda. Por causa de sua sovinice, o vaqueiro caiu na desgraça. Na hora em que ele mais precisava dela, deixou-o entregue ao deus-dará. Bem diferente de Vicente que não é dessas coisas, homem de coração bom, nunca abandona seus cabras em tempos de aperreio.

No sertão estampado nas páginas de Vidas Secas, não há homens bons nem maus. Seus personagens nada mais são que personificações das relações econômicas. Fabiano é um assalariado; seu patrão é um proprietário, um criador de gado. Cria-o não porque acha bonito ou tem amor aos bichos, mas, sim, porque lhe rende dinheiro. Por isso a relação que tem com Fabiano não é de amizade ou de solidariedade, mas de interesse. Na hora da ferra dos animais, tudo tem de passar pela ponta do lápis. Qualquer suspeita é motivo para ralhar com o vaqueiro, ou até mesmo despedi-lo, caso o patrão desconfie que está sendo roubado.

SÃO BERNARDO: MOINHO DE ALMAS

Quando Vidas Secas veio a público, em 1938, encontrou um sertão em processo acelerado de transformações. O capitalismo invadia o campo e submetia suas relações de produção à lógica mercantil. O antigo contrato da “quarta”, que ninguém escreveu e que o vaqueiro cumpria fielmente, sem juizes e testemunhas, virou coisa do passado. Se antigamente valia o que estava apalavrado, agora, não; tudo tinha de passar pela contabilidade do administrador da fazenda, o braço estendido do proprietário da terra.

Os tempos mudaram. A modernidade invadiu o sertão e virou tudo de cabeça pra baixo. Afogou todos os valores e tradições sertanejas, como diria Marx, nas “águas geladas do cálculo egoísta”. Se antes a palavra dada valia mais do que um pedaço de papel timbrado, assinado e registrado, agora, ninguém mais acredita na promessa empenhada.

Em São Bernardo, romance de 1934, Graciliano Ramos mostra a chegada do capitalismo, que arranca o sertanejo de sua vida pacata e sossegada para atirá-lo ao redemoinho do mercado. O tempo criou asas, ganhou velocidade. Quem permanecer parado ou marcando passo, ou não sobe ou se afunda. Foi o que aconteceu com seu Ribeiro. Seu drama é narrado por Paulo Honório, personagem central do romance, que escreve um livro para contar a sua história de como conseguiu transformar a fazenda São Bernardo, encravada no meio do sertão, num grande império econômico, feito que levou o bajulador Azevedo Gondim, redator da Gazeta, a compará-lo a Ford e a Delmiro Gouveia.

Em rápidas pinceladas, Paulo Honório assim descreve o que aconteceu com o major:

Nas noites de São João uma fogueira enorme iluminava a casa do seu Ribeiro. Havia fogueiras diante das outras casas, mas a fogueira do major tinha muitas carradas de lenha. As moças e os rapazes andavam em redor dela, de braço dado. Assava-se milho verde nas brasas e davam-se tiros medonhos de bacamarte. O major possuía um bacamarte, mas se desenferrujava pelos festejos de São João.

Ora, essas coisa se passaram antigamente.

Mudou tudo. Gente nasceu, gente morreu, os afilhados do major cresceram e foram para o serviço militar, em estrada de ferro.

O povoado transformou-se em vila, a vila transformou-se em cidade, com chefe político, juiz de direito, promotor e delegado de polícia.

Trouxeram máquinas – a bolandeira do major parou.

Veio o vigário, que fechou a capela e construiu uma igreja bonita. As histórias dos santos morreram na memória das crianças.

Chegou o médico. Não acreditava nos santos. A mulher de seu Ribeiro entristeceu, emagreceu e finou-se.

O advogado abriu consultório, a sabedorias do major encolheu-se – e surgiram no foro numerosas questões.

Efetivamente a cidade teve um progresso rápido. Muitos homens adotaram gravatas e profissões desconhecidas. Os carros de bois deixaram de chiar nos caminhos estreitos. O automóvel, a gasolina, a eletricidade e o cinema. E impostos.

As moças e os rapazes não rodeavam, de braço dado, as fogueiras de São João: dançavam o tango, no frevo.

Um dia seu Ribeiro reconheceu que vivia numa casa grande demais. Vendeu-a e adquiriu outra pequena. Como havia agora liberdade excessiva, a autoridade dele foi minguando, até desaparecer (...).

Seu Ribeiro enraizou-se na capital. Conheceu enfermarias de indigentes, dormiu nos bancos dos jardins, vendeu bilhetes de loterias, tornou-se bicheiro e agente de sociedades ratoeiras. Ao cabo de dez anos era gerente e guarda-livros da Gazeta, com cento e cinqüenta mil-réis de ordenado, e pedia dinheiro aos amigos.

Quando o velho acabou de escorrer a sua narrativa, exclamei:

- Tenho a impressão de que o senhor deixou as pernas debaixo de um automóvel, seu Ribeiro. Por que não andou mais depressa? É o diabo (Graciliano, 2001, p. 37).

De fato, é o diabo. O capitalismo afogou o passado de seu Ribeiro, deixou a comer poeira. Não só ele, mas todos que não se preparam para viver sob a lógica mercantil. Padilha, antigo dono de S. Bernardo, dormia e amanhecia bêbado. O pouco dinheiro que ainda conseguia com a venda das safras de sua fazenda, que minguavam com o tempo, perdia-o nas mesas de jogo.

Diferente de Padilha e seu Ribeiro, Paulo Honório é um típico representante da modernidade que entra pelo sertão adentro. É um homem de negócios que não vacila em usar de todos os meios para conseguir o que deseja. Percebe que Padilha é um viciado inveterado. Empresta-lhe dinheiro para jogar, mesmo sabendo que ele não tem condições de saldar a dívida. Que importa! Se não tem dinheiro, tem como honrá-la: a fazenda São Bernardo. No dia do vencimento das promissórias, botou o desgraçado no canto da parede. Comprou-lhe a fazenda por uma aninharia, descontando o que lhe havia emprestado.

Paulo Honório não sente remorso por ter explorado a fraqueza do desgraçado do Padilha. Ele queria dinheiro para jogar, emprestou-lhe. Que há de imoral nisso? Não lhe roubou a fazenda, fez tudo dentro da lei. Por que se culpar? Que se danem os pregadores da moral santa se

acham que andei mal. A verdade é que nunca soube quais foram os meus atos bons e quais foram os maus. Fiz coisas boas que me trouxeram prejuízo; fiz coisas ruins que deram lucro. E como sempre tive a intenção de possuir as terras de S. Bernardo, considerei legítimas as ações que me levaram a obtê-las (Graciliano, 2001, p. 39).

Paulo Honório não pensa com o coração, ele é um homem de negócios que sabe que em matéria de dinheiro não há lugar para boas ações. Construiu uma escola para os filhos dos seus trabalhadores não porque julgava a educação um valor, mas porque lhe era útil, poderia lhe “trazer a benevolência do governador para certos favores” que esperava dele receber. Fez até um bem ao desgraçado do Padilha que não tinha onde cair morto. Contratou-o para ser professor.

Não foi só seu Ribeiro que “deixou as pernas debaixo de um automóvel”. Padilha tropeçou na bebida e no jogo, perdeu a fazenda, passou a viver com um salário de miséria, virou bicho. S. Bernardo era cheia de bichos. Nela,

Havia bichos doméstico, como o Padilha, bichos do mato, como Casimiro Lopes, e muitos bichos para o serviço do campo, bois mansos. Os currais que se escoram uns aos outros, lá embaixo, tinham lâmpadas elétricas. E os bezerrinhos mais taludos soletravam a cartilha e aprendiam de cor os mandamentos da lei de Deus.

Bichos. Alguns mudaram de espécie e estão no exército, volvendo à esquerda, volvendo à direita, fazendo sentinela. Outros buscaram pastos diferentes (Graciliano, 2001, 39).

É o diabo do capitalismo que transforma os homens em coisas e dota as coisas de vontade. Transformou Paulo Honório em escravo do seu poder, a ponto de convertê-lo num monstro sem coração e sem alma. Tinha mesmo de se transformar num monstro, pois em matéria de dinheiro cessa toda boa vontade.

Paulo Honório tem consciência do aleijão em que se transformou. Fecha o último capítulo do seu livro, no qual narra sua história, dizendo

Que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins.

É a desconfiança terrível que aponta inimigos em toda parte!

A desconfiança é também conseqüência da profissão.

Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens, uma boca enorme, dedos enormes.

(...).

Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades monstruosas.

A vela está quase a extinguir-se.

(...).

Lá fora há uma treva dos diabos, um grande silêncio. Entretanto, o luar entra por uma janela fechada e o nordeste furioso espalha folhas secas no chão.

É horrível! Se aparecesse alguém ... Estão todos dormindo.

Se ao menos a criança chorasse ... Nem sequer tenho amizade a meu filho. Que Miséria!

Casimiro Lopes está dormindo. Marciano está dormindo. Patifes!

E eu vou ficar aqui, à escuras, até não sei que hora, até que morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos (Graciliano, 2001, p. 190/91).

S. Bernardo é um moinho de almas. Nela, tudo está de cabeça para baixo. Os bichos soletram a cartilha e aprendem os mandamentos da lei de Deus; os homens viram bichos.

É a reificação do ser humano levada às últimas consequências.

Uma lição de Economia Política que deixaria Marx humilhado, se vivo fosse.

Bibliografia

Queiroz de, Rachael. O Quinze - São Paulo: Editora Siciliano, 2001.

Ramos, Graciliano. Memória do cárcere. – .37.ed. – Rio, São Paulo, Record. 2001

____. São Bernardo. – 71. ed. – Rio de Janeiro: Record, 2001

_____.Vidas secas. – 84ª ed. – Rio, São Paulo: Record, 2002.,

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