25/11/2010

DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO NA CARTA DE 1988: UMA LEITURA À LUZ DA CRÍTICA DE MARX DOS DIREITOS HUMANOS

1. MARX E A CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS

Entre agosto e dezembro de 1843, à altura de seus 25 anos de idade, Marx redige Para a Questão Judaica, publicado nos Anais Franco-Alemães e editado por ele e Arnold Ruge em Paris, ano 1844[1]. Texto crítico, elaborado para combater a ideia de Bruno Bauer de que o caráter religioso do Estado impedia a emancipação política dos judeus que viviam na Alemanha. É nesse texto que Marx elabora, pela primeira vez, sua crítica aos direitos humanos.

Mas a tese de Bauer tem uma dimensão mais abrangente. Para ele, nem cristãos nem judeus poderiam ser considerados cidadãos, homens politicamente emancipados, enquanto o Estado não se libertasse das peias da religião.

Nesse aspecto, Marx não discorda de Bauer[2]. A crítica que lhe dirige é contra a ideia de que o homem, para ser politicamente livre, teria de renunciar à sua religião. Não! Protesta Marx. A emancipação política exige apenas um Estado laico, um Estado que não reconhece como oficial qualquer religião particular; um Estado que professe a liberdade de culto religioso, deixando aos indivíduos o livre arbítrio de escolher e exercer a religião que lhes aprouver. Afinal, a religião é uma questão de fórum íntimo; não é uma questão do Estado.

Mas, não só a liberdade de cultos religiosos é precondição da emancipação política como também o direito de cada indivíduo de ser tratado como pessoa livre e igual perante todos os demais membros da sociedade. Para garantir esse direito, o Estado tem apenas de anular politicamente a propriedade privada. Como exemplo desse ato político, Marx cita o caso de muitos Estados norte-americanos que extinguiram o censo eletivo, que era condição de elegibilidade ativa e passiva daqueles considerados cidadãos, isto é: o direito de votar e ser votado dependia do estatuto econômico de cada indivíduo. Com essa supressão, todos os indivíduos foram declarados politicamente iguais, graças à afirmação do princípio da soberania popular, que se resume na ideia de que todos os membros da sociedade podem votar e ser votados; consequentemente, proprietários e não-proprietários passam a ser considerados como pessoas dotadas de personalidade jurídica e, portanto, política e juridicamente iguais perante a Lei.

O Estado pode, portanto, livrar-se dos preconceitos religiosos, sem acabar com a religião. Igualmente, pode elevar-se acima dos interesses particulares sem que seja necessário erradicá-los. Com efeito, como diz Marx,

com a anulação política da propriedade privada, a propriedade privada não só é suprimida mas também é mesmo pressuposta. O Estado suprime, à sua maneira, a diferença do nascimento, do estado social [social, Stand], da cultura, da ocupação [profissional, Beschäftigung], quando declara diferenças não-políticas o nascimento, o estado, a cultura, a ocupação, quando (sem atender a estas diferenças) proclama cada membro do povo participante por igual da soberania popular, quando trata todos os elementos da vida popular real do ponto de vista do Estado. Não obstante, o Estado deixa atuar a propriedade privada, cultura, ocupação, à maneira delas (i.e., como propriedade privada, cultura e ocupação) e fazer valer a sua essência particular. Muito longe de suprimir essas diferenças fáticas, ele só existe antes no pressuposto delas, ele só se sente como Estado político, e só faz valer sua universalidade, em oposição a esses elementos[3].

O caráter universal do Estado é, portanto, uma universalidade abstrata, no sentido de que o Estado só pode representar o interesse geral, comum, elevando-se acima dos elementos particulares (religião, propriedade privada, ocupação, cultura, etc.) da sociedade. O Estado declara todos como iguais perante a lei, para deixar subsistir as diferenças espirituais e materiais entre seus membros. Consequentemente, o Estado somente pode aparecer aos indivíduos como uma comunidade ilusória na medida em que cinde o homem em dois: o indivíduo privado e o indivíduo-cidadão, isto é, detentor de direitos políticos, tais como direito de gozar de liberdade de religião, de usufruir livremente de sua propriedade sem sofrer constrangimento por parte de terceiros, de ir e vir, de ter liberdade de pensamento e expressão, dentre outros direitos.

Essa cisão do homem é, de fato, produto da cisão entre o Estado e a sociedade civil; duas esferas separadas das quais a última é o reino da particularidade contraposta à universalidade abstrata do Estado; é a essência genérica do homem em oposição à sua vida material, egoísta, porque tomada pela preocupação de cuidar exclusivamente de seus afazeres particulares. Como diz Marx,

todos os pressupostos dessa vida egoísta continuam a subsistir fora da esfera do Estado na sociedade civil, mas como propriedades [Eigenschaften] da sociedade civil. Onde o Estado político alcança o seu verdadeiro desabrochamento, o homem leva – não só no pensamento, na consciência, mas na realidade, na vida – uma vida dupla, uma [vida] celeste e uma [vida] terrena: a vida na comunidade política (em que ele se [faz] valer como ser comum) e a vida na sociedade civil (em que ele é ativo como homem privado, considera os outros homens como meio, se degrada a si próprio à [condição] de meio, e se torna o joguete de poderes estranhos)[4].

Essa oposição, Estado e sociedade civil, é a mesma separação que se encontra na religião, que impele o crente a seguir seus mandamentos, na medida em que tem de reconhecê-los como lei divina, dele separada e ditada pelo Pai celestial. É o que afirma Marx, em seguida, quando declara que

o homem, na sua realidade mais próxima, na sociedade civil, é um ser profano. Aqui onde ele se [faz] valer a si próprio e aos outros como indivíduo real – é um fenômeno não verdadeiro. No Estado, ao contrário – em que o homem vale como ser genérico -, ele é o membro imaginário de uma soberania imaginada, é roubado da sua vida individual real e repleto de uma universalidade abstrata[5].

Ainda que o Estado tenha “roubado” do homem a sua essência humana, para representá-la apenas como uma generalidade abstrata, Marx reconhece que a emancipação política representa um grande progresso, na medida em que ela é

simultaneamente, a dissolução da velha sociedade sobre o que repousa o sistema de Estado alienado do povo, o poder soberano. A revolução política é a revolução da sociedade civil[6].

Mas em que sentido a revolução política representou um grande progresso para a sociedade? Resposta: a centralização política e, com ela, a libertação da política da tutela do soberano, do Rei, do senhor feudal, como era na sociedade feudal. É o próprio Marx que assim o diz, quando afirma que

a revolução política – que derrubou esse poder soberano e levou os assuntos de Estado a assuntos do povo, que constituiu o Estado político como assunto universal, i.e., como Estado real – destroçou necessariamente todos os estados [sociais, Stände], corporações, grêmios, privilégios, que eram, precisamente, outras tantas expressões da separação do povo relativamente à sua comunidade. A revolução política suprimiu, com isso, o caráter político da sociedade civil. Destroçou a sociedade civil nas suas partes componentes simples: por um lado, nos indivíduos; por outro lado, nos elementos materiais e espirituais, que formam o conteúdo vital, a situação civil desses indivíduos. Soltou o espírito político que, de algum modo, estava dissipado, fracionado, diluído nos diversos becos da sociedade feudal; reuniu-o dessa dispersão, libertou dessa mistura com a vida civil, e constituiu-o como esfera da comunidade, dos assuntos gerais do povo, em independência ideal relativamente àqueles elementos particulares da vida civil (...). Os assuntos públicos, como tais, tornaram-se antes assunto universal de cada indivíduo, e a função política [tornou-se] a sua função universal[7].

Por tudo isso, Marx é obrigado a reconhecer que

a emancipação política é, sem dúvida, um grande progresso; ela não é, decerto, a última forma da emancipação humana, em geral, mas é a última forma da emancipação política no interior da ordem mundial até aqui. Entende-se: nós falamos aqui de emancipação real, [emancipação] prática[8].

Mas, por que a emancipação política não é ainda a verdadeira emancipação humana? Porque, dirá Marx, os direitos que a emancipação política reconhece são direitos do homem privado; como tais são direitos que excluem os homens uns dos outros, pois cada um pode gozar de seus direitos desde que os demais estejam deles excluídos, como acontece com o direito de propriedade. São direitos que fazem com que cada homem encontre no outro uma barreira da sua liberdade. Na linguagem do senso comum, a liberdade de cada um termina, quando começa a do outro.

O direito de liberdade é, portanto, um direito de exclusão; o direito de cada indivíduo gozar de sua liberdade exclui os demais de poder participar dela participar. Por isso, sua aplicação prática, como dirá Marx, e como já defendia Locke[9] em seu Tratado Sobre o Segundo Governo, bem como os demais teóricos do Contrato Social, é o direito humano à propriedade privada[10].

Ora, se a propriedade privada é o alicerce sobre o qual se erige o conceito de liberdade, este só poderá ser um direito excludente. Com efeito, para que uma pessoa possa ser livre, é preciso que lhe seja assegurado pela Lei o direito de fazer uso do que é seu sem a interferência de terceiros. “Sou livre”, sim, desde que minha liberdade não seja invadida por outra liberdade. Esse é o caráter burguês da liberdade que nenhuma Constituição pode deixar de observar por mais avançada e democrática que seja a sociedade. Como observa Marx, ao analisar a Constituição Francesa de 1848, o inevitável estado-maior das liberdades,

a liberdade pessoal, as liberdades de imprensa, de palavra, de associação, de educação, de religião, etc.,, receberam um uniforme constitucional, que as fez invulneráveis. Com efeito, cada uma dessas liberdades é proclamada como direito absoluto do cidadão francês, mas sempre acompanhada da restrição à margem, no sentido de que é ilimitada desde que não esteja limitada pelos direitos iguais dos outros e pela segurança pública ou por “leis” destinadas a restabelecer a harmonia das liberdades individuais entre si e com a segurança pública. Por exemplo: “os cidadão gozam do direito de associação, de reunir-se pacificamente e desarmados, de formular petições e de expressar suas opiniões, quer pela imprensa ou por qualquer outro modo. O gozo desse direito não sofre qualquer restrição, salvo as impostas pelos direitos iguais dos outros e pela segurança pública. (...). “O ensino é livre. A liberdade de ensino será exercida dentro das condições estabelecidas pela lei e sob o supremo controle do Estado” (...). “O domicílio de todos os cidadãos é inviolável, exceto nas condições prescritas nas lei” (...). A Constituição, por conseguinte, refere-se a futuras leis orgânicas que deverão pôr em prática aquelas restrições e regular o gozo dessas liberdades irrestritas de maneira que não colidam entre si nem com a segurança pública. E mais tarde essas leis orgânicas foram promulgadas pelos amigos da ordem e todas aquelas liberdades foram regulamentadas de tal maneira que a burguesia, no gozo delas, se encontra livre de interferência por parte dos direitos iguais das outras classes. Onde são vedadas inteiramente essas liberdades “aos outros” ou permitido o seu gozo sob condições que passam de armadilhas policiais, isso é feito sempre, apenas no interesse da “segurança pública”, isto é, da segurança da burguesia, como prescreve a Constituição (...). Pois cada parágrafo da Constituição encerra sua própria antítese, sua própria Câmara Alta e Câmara Baixa, isto é, a liberdade na frase geral, ab-rogação da liberdade na nota à margem[11].

Dentro da sociedade burguesa, a liberdade do outro se transforma, portanto, em liberdade contra o outro. Liberdade excludente, pois é a liberdade do outro e não com o outro. Hobbes, Locke, Kant e seus contemporâneos têm razão quando afirmam que o Estado é um arranjo institucional criado para que as liberdades individuais possam coexistir entre si sem romper os limites dentro dos quais cada indivíduo pode exercer seu direito de ser livre. É o mesmo princípio que rege o conceito de soberania territorial. Até os limites do outro Estado, a liberdade é absoluta; para além deles, ela é inexistente.

Mas de volta ao texto de 1843, Para a Questão Judaica, é esse mesmo princípio da liberdade que rege o direito de igualdade [égalité] e de segurança [sûreté].

Referindo-se a esses dois direitos, Marx comenta que, tal como expressa a Constituição francesa de 1795,

a égalité – aqui no seu significado não-político – não é senão a igualdade de liberté acima descrita, a saber: quer cada homem seja, de igual modo, considerado como essa mônada que repousa sobre si [própria][12].

Quanto à segurança, afirma que esta

é o supremo conceito social da sociedade civil, o conceito da polícia, porque a sociedade existe para garantir a cada um dos seus membros a conservação da sua pessoa, dos seus direitos e da propriedade (...). Pelo conceito de segurança, a sociedade civil não se eleva acima do seu egoísmo. A segurança é, antes, o asseguramento do seu egoísmo[13].

Esclarece-se, assim, de uma vez por todas, a razão por que a emancipação política não é a verdadeira emancipação humana. Na esfera da política, o homem “é o membro imaginário de uma soberania imaginada”[14]; sua independência política é uma “independência ideal”[15], uma vez que ele está separado de sua essência genérica. Esta é tão somente uma idealidade, uma universalidade abstrata.

Se assim é, o que Marx entende por emancipação humana? Sua resposta é simples: a verdadeira emancipação exige que a separação entre o homem, como cidadão abstrato, e o homem, como indivíduo particular, seja abolida. Aí, então, como ele diz, estará consumada a emancipação humana. Em suas próprias palavras,

só quando o homem individual retoma em si o cidadão abstrato e, como homem individual – na sua vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais -, se tornou ser genérico; só quando o homem reconheceu e organizou as suas forces propers [forças próprias] como forças sociais e, portanto, não separa mais de si a força social na figura da força política – [é] só então [que] está consumada a emancipação humana[16].

Nesta última passagem, Marx deixa claro que o homem, se quer ser verdadeiramente livre, senhor de si, não deve conferir à esfera política poderes que somente ele, como ser social, pode alcançar e realizar. Ele estará emancipado quando, portanto, “não separa mais de si a força social na figura da força política”.


2. DEMOCRACIA INIMIGA DA DEMOCRACIA

Da crítica de Marx aos direitos humanos, conquistados com a emancipação política, cabe guardar os itens dispostos abaixo para então perguntar se essa crítica continua atual:

(1) o princípio da soberania popular, que se resume na ideia de que todos membros da sociedade podem votar e ser votados; conseqüentemente, proprietários e não-proprietários passam a ser considerados como pessoas dotadas de personalidade jurídica e, portanto, políticos e juridicamente iguais perante a Lei;

(2) que o Estado nada mais é do que uma universalidade abstrata, no sentido de que essa instituição só pode representar o interesse geral, comum, elevando-se acima dos elementos particulares. O Estado declara todos como iguais perante a lei, para deixar subsistir as diferenças espirituais e materiais entre seus membros;

(3) a cisão do homem como produto da cisão entre o Estado e a sociedade civil; duas esferas separadas das quais a última é o reino da particularidade contraposta à universalidade abstrata do Estado;

(4) a ideia de que a esfera da política reconhece tão somente os direitos do homem privado; como tais são direitos que excluem os homens uns dos outros, pois cada um pode gozar de seus direitos desde que os demais estejam deles excluídos, como ocorre com o direito de propriedade. São direitos que fazem com que cada homem encontre no outro uma barreira à sua liberdade;

(5) que, na sociedade burguesa, a liberdade do outro se transforma em liberdade contra o outro. Nesse sentido, o Estado é um arranjo institucional criado para que as liberdades individuais possam coexistir entre si sem romper os limites dentro dos quais cada indivíduo pode exercer seu direito de ser livre. É o mesmo princípio que rege o conceito de soberania territorial. Até os limites do outro Estado a liberdade é absoluta; para além deles, ela é inexistente;

(6) e, finalmente, guardar a ideia de que o conceito de “segurança é, antes, o asseguramento do (...) egoísmo” burguês.

Antes, porém, cabe observar que todos esses pontos destacados podem ser resumidos na ideia de que, para Marx, o igualitarismo jurídico, promovido pela esfera da política, faz com que o direito serem iguais promova maior desigualdade em nome de uma igualdade abstrata. Nesse sentido, a universalidade dos direitos não passa de uma universalidade abstrata. Isso equivale a dizer que a democracia burguesa não vai além de uma democracia formal.

Ainda que boa parcela do liberalismo contemporâneo defenda a ideia do direito igual, não se pode negar que, hoje, esse direito, de modo geral, foi substituído pelo direito desigual. Prova disto, são os direitos sociais que reconhecem que a relação contratual entre capital e trabalho é uma relação entre desiguais. Por isso, procura corrigir-se ou minimizar as diferenças entre os contratantes ao amparar a parte mais fraca (o trabalho) contra os abusos econômicos do mais forte (o capital).

Essa foi uma das maiores conquistas do chamado Estado do bem-estar social. E foi mais além. Reconheceu as diferenças de gênero, universalizou educação, saúde, transporte, dentre outras garantias jurídicas de amparo aos menos favorecidos, como apregoa a social-democracia liberal.

Estaria, por isso, superada a crítica de Marx aos direitos humanos? A resposta a esta questão só poderia ser afirmativa, caso a democracia formal, que ainda tem “um pé” no igualitarismo jurídico, pudesse ser considerada igualmente ultrapassada. Mas isso não pode acontecer, como assim reconhecem os teóricos do pensamento político contemporâneo. Afinal, não se pode esquecer que a Constituição não é senão a Lei máxima e fundamental do Estado. Por mais avançada que ela seja, não pode quebrar a lógica do Estado burguês. Que o diga Habermas, para quem a capacidade de planejamento do Estado foi incapaz de criar as condições para uma vida digna, na qual o homem pudesse realizar sua felicidade num convívio social livre de violências e ameaças destrutivas.

De um ponto de vista mais concreto, o Estado não pode quebrar, de forma absoluta, a racionalidade que rege a economia de mercado. Sua ação só acontece mediante intervenções ajustadas ao sistema; são atividades de contorno. Por isso, para Habermas[17], o Estado social

[1] é obrigado a deixar intacto o modo de funcionamento do sistema econômico; não lhe é possível exercer influência sobre a atividade privada de investimentos, senão mediante ações ajustadas ao sistema;

[2] não pode evitar a racionalização crescente do processo de trabalho torna a força de trabalho cada vez mais ociosa; vale dizer, o programa social não pode assegurar uma política de pleno emprego;

[3] não é capaz de promover uma redistribuição da renda entre capital e trabalho, limita-se, no essencial, a um realinhamento horizontal dentro do grupo de trabalhadores dependentes e não toca na estrutura específica do poder de classe, especialmente na propriedade dos meios de produção;

[4] e, não é um manancial de abastança autônomo e não pode, por isso, assegurar lugar ao trabalho como um direito civil.

Ora, se o Estado não pode assegurar o direito do trabalho como um direito civil, igualmente não poderá garantir o direito à vida. A não ser que essa instituição rompesse com os limites da lógica de mercado. Mas, se o fizesse, teria que eliminar a contradição básica do sistema: a apropriação privada da produção social. Habermas sabe disso muito bem, pois, para ele,

a genuína participação dos cidadãos no processo de formação da vontade política (...), isto é, na democracia substantiva, traria à consciência a contradição entre produções administrativamente socializadas e a continuada apropriação e uso privado da mais-valia. Para evitar que essa contradição torna-se objeto de discussão, o sistema administrativo deve ser suficientemente independente da formação da vontade legitimante[18].

Não sem razão, Bobbio reconhece que

a democracia não cumpriu a promessa do autogoverno. Não cumpriu a promessa da igualdade não apenas formal mas também substancial. Terá cumprido a promessa de derrotar o poder invisível?[19].

Claro que não. Há mais coisas por trás do que dizem e fazem os governantes do que se expressa na opinião pública, sempre forjada e moldada pelo poder da mídia. A democracia não poderia mesmo cumprir tais promessas. Afinal, como Bobbio mesmo reconhece, “nada mais ameaça a democracia que o excesso de democracia”[20]. Com efeito, uma democracia substantiva poria em xeque a própria democracia burguesa, formal.

Se assim é, independentemente dos avanços do direito, a esfera do político continua sendo o reino da universalidade abstrata, como dizia Marx já em 1843. Sua crítica permanece, portanto, atual. E é com base nela que, agora, serão considerados alguns direitos e garantias fundamentais da Constituição brasileira de 1988.

3.GARANTIAS E DIREITOS FUNDAMENTAIS INDIVIDUAIS

Os pilares sobre os quais se assentam os princípios fundamentais da Constituição de 1988, soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da iniciativa privada, são normas jurídicas de caráter obrigatório; têm força de Lei e como tais devem ser cumpridas. São normas jurídicas e não meras declarações ou postulados morais.

Assim teria de ser. Acontece que, entre a obrigatoriedade da lei e a realidade, há uma grande distância. A soberania, por exemplo, é um dos princípios fundamentais muito pouco observado. Num país, como o Brasil, que vive sob a tutela de patentes das empresas multinacionais, e que remete anualmente para o exterior vinte e cinco bilhões de dólares a título de pagamento de royalties, lucros e dividendos, não pode ter uma política interna de desenvolvimento social soberana. Esta estará sempre condicionada ou restringida por essa sangria desatada de recursos para fora do país.

E o que dizer da dignidade da pessoa humana? Esse princípio não passa de um postulado moral. Com efeito, podem um favelado, um beneficiário do Bolsa Família, um desempregado permanente que vive de “bicos”, dentre outras tantas categorias, reclamar o título de dignidade? Que é a dignidade senão uma condição humana na qual a pessoa pode fazer uso não só do seu próprio entendimento como também usufruir dos bens materiais conseguidos com seu próprio trabalho? A dignidade humana não pode ser serva da gratidão alheia, seja essa de pessoas, instituições privadas ou da caridade pública, como é o Programa Bolsa Família. Uma pessoa digna é aquela que deve a si própria sua existência material e espiritual.

Essas observações ligeiras são apenas para introduzir a discussão de alguns direitos e garantias fundamentais do indivíduo. Estes têm de ser analisados à luz do que se discutiu nesses dois últimos parágrafos, sob pena de tomá-los de forma abstrata, de não ir além de um panegírico de enaltecimento emocional.

O caput do Art. 5º é, na verdade, um verdadeiro panegírico liberal de fazer inveja ao pai do liberalismo político: John Locke. Com efeito, lê-se aí que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”.

Tomando-se daí o preceito da “inviolabilidade da vida”, como garantir tal princípio se o direito ao trabalho, como condição necessária de uma vida digna, não pode ser assegurado, como diz Habermas, como um direito civil? Se o pudesse, um bilhão de pessoas no mundo não estariam a morrer de fome nem desempregadas; mais de dez por cento da população dos países da OCDE não estariam à procura de trabalho. No Brasil, as coisas não são diferentes. Com feito, seis milhões de aposentados estão trabalhando para complementar sua magra aposentadoria; dois milhões de crianças, com menos de 14 anos de idade, estão nas ruas a trabalhar para ajudar a família, e outros três milhões de pessoas têm mais de um emprego por causa dos baixos salários. São onze milhões de trabalhadores que estão no mercado de trabalho ocupando vagas que poderiam ser preenchidas por quem está à procura de trabalho.

Isso deveria ser suficiente para mostrar o abismo que separa a vontade do constituinte de 1988 e a realidade de um mundo em que, como diria Adam Smith, o pai do liberalismo econômico, as leis do mercado falam mais alto do que o direito à vida. Afinal, o mercado não produz valores de uso para a satisfação das necessidades humanas, mas, sim, para atender às exigências do lucro. Daí a máxima desse liberal, para quem, nas sociedades de mercado, vale como regra geral a ideia de que cada um obtém o que deseja se consegue despertar o interesse do outro a seu favor: “Dê-me isso que eu quero e você terá isto aqui que você quer”. Noutras palavras, são as coisas que valem mais do que o homem. Como falar de dignidade humana, do direito à vida, num mundo em que as pessoas não são donas de sua vontade, mas, sim, o mercado?

Mas, destacando alguns princípios do Art. 5º, cabe ressaltar inicialmente os incisos XI e XII. O primeiro reza que “a casa é o asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. No segundo, lê-se que “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.

Se a casa “é o asilo inviolável do indivíduo”, como se explica que nas favelas das grandes metrópoles a polícia não pede licença para entrar? E o que dizer da inviolabilidade do sigilo de correspondência? Favelado, por acaso, tem endereço? Que se saiba, não! Esses dois incisos, portanto, não são dirigidos à enorme parcela de moradores que vive aos arredores das grandes cidades.

Por essa razão, o inciso LXI, segundo o qual ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito, não passa de letra morta para essa parcela de brasileiros, que são verdadeiros párias produzidos pela exclusão social histórica, que tem suas raízes fincadas no Brasil Colônia. Mas, para esses deserdados sociais, o legislador estabeleceu como obrigação do Estado, inciso LXXIV, “... prestar assistência jurídica integral e gratuita ...”. Mas, como fazê-lo, num país em que praticamente a Defensoria Pública não existe?

Os juristas, pelo menos grande parcela deles, discordariam de tudo isso. Poderiam alegar que o Art. 5º estabelece o que é ser cidadão detentor de direitos e garantias fundamentais. Para ser digno de tais garantias é preciso ter. E isto está garantido no Art. 6º que trata dos direitos sociais. A Emenda Constitucional 26, de 14/02/2000, que deu nova redação ao caput deste artigo, determina que “são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

Mas uma coisa é determinar constitucionalmente a obrigatoriedade do Estado de criar as condições para a afirmação dos direitos sociais, outra, bem diferente, é torná-los realidade. No que diz respeito à saúde, à previdência e à assistência sociais, sabe-se que o orçamento da seguridade social foi praticamente desmantelado para que sobrassem recursos para o pagamento da dívida interna. Começou com a chamada desvinculação das receitas da União (DRU), que retirou vinte por cento desse orçamento para fazer face a outros pagamentos mais “importantes” do que os da saúde, por exemplo. Que diabo de direito à vida é esse se a saúde é menos importante do que o capital?

Ainda no Art. 5º da Constituição, o direito de propriedade figura como um direito fundamental dentre os demais direitos e garantias individuais. Um direito absoluto, tal como assim entendiam os teóricos do direito natural, notadamente Locke. É assim mesmo que o Código Civil, Art. 1228, define o direito de propriedade, como já citado anteriormente, como um “direito de usar, gozar e dispor da coisa da maneira mais completa possível, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou a detenha”. Esta definição não faz do direito de propriedade um direito absoluto tal como era admitido no antigo direito romano? Do ponto de vista lógico-formal, não. Trata-se e um direito que é parte integrante dos direitos e garantias fundamentais e, sendo assim, impõe a todos a obrigação de respeitá-lo, como os demais direitos fundamentais.

Nesse sentido, o Código Civil não contraria a Constituição. Ainda no mesmo artigo. 1.228, o § 1º determina que “o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”. Logo, o direito absoluto de propriedade não é inconstitucional, uma vez que se obriga a cumprir uma função social tal como expressa esse parágrafo, e, além disso, está em consonância com o que determina os incisos XXIII, XXIIV e XXV da Constituição.

Mas, mesmo que o direito de propriedade cumpra a sua função social, não é esta que o determina. Pelo contrário, como está expresso no Código Civil, trata-se de um direito de usar, gozar e dispor da coisa da maneira mais completa possível, de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou a detenha. Se é assim, há que se admitir que o direito de propriedade assim definido não deixa nada a dever ao direito natural, para o qual a propriedade é um direito sagrado e inviolável porque produto do trabalho individual.

Isso enfraquece sobremaneira o que expressa o Art. 186 da Constituição, que assim define a função social da propriedade: “A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I - aproveitamento racional e adequado;

II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”.

Se assim é, por que não é motivo de desapropriação a grande propriedade que se baseia na monocultura, na utilização excessiva de agrotóxicos e na redução da mão-de-obra empregada? Isso, para não falar do trabalho escravo, das condições subumanas dos trabalhadores rurais. Não se trata, portanto, de um tipo de propriedade antidemocrática e, portanto, inconstitucional?

É aqui que a crítica de Marx aos direitos humanos se mostra mais atual do que nunca. Na sociedade capitalista, conceber os homens como sujeitos de direito, porque está na lei, não os faz de fato livres e igualmente possuidores dos mesmos direitos. Por isso, o caput do Art. 5ª da Constituição, que estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, não passa de uma universalização abstrata.


[1] Para uma leitura contextual de Para questão Judaica, recomenda-se a excelente introdução a essa obra, elaborada por José Paulo Neto. Nela, o leitor encontra não só uma contextualização histórica da época em que aparece o texto como também uma leitura esclarecedora das teses defendidas por Bauer e da crítica que Marx lhe dirige. Ver, portanto, Marx, Karl. Para a Questão Judaica. Expressão Popular, 2000, p. 9-38.

[2] Como Bauer, Marx entende que “o Estado que pressupõe a religião ainda não é nenhum Estado verdadeiro, nenhum [Estado] real. [ Marx, Karl. Para a Questão Judaica, p. 44].

[3]Idem,ibidem., p. 49/50. (Os itálicos são de Marx.)

[4] Idem,ibidem, p. 50/51.(Os itálicos são de Marx).

[5] Idem,ibidem., p. 51. (A passagem sublinhada é por nossa conta.)

[6] Idem,Ibidem., p. 68.

[7] Idem,Ibidem., p. 69. .(Os itálicos são de Marx; as passagens sublinhadas são por nossa conta).

[8] Idem,Ibidem., p. 52.

[9] É necessário que se esclareça que, para Locke e os demais contratualistas, a liberdade de propriedade é um direito natural, e que, por isso, é um direito positivo. Bem diferente do que pensa Marx, para quem o direito de propriedade é puramente negativo.

[10] Para Locke, “Deus, que deu o mundo em comum aos homens, também lhes deus a razão para que utilizasse para maior proveito da vida e da própria conveniência. Concedeu-se a terra e tudo quanto ela contém ao homem para sustento e conforto da existência (....). Seja o que for que ele (o homem) retire do estado que a natureza lhe forneceu e no qual o deixou, fica-lhe misturado ao próprio trabalho, juntando-se-lhe algo que lhe pertence, e, por isso mesmo, tornando-o propriedade dele. Retirando-o do estado comum em que a natureza colocou, anexou-lhe por seu trabalho, algo que o exclui do direito comum de outros homens” [Locke, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. São Paulo: Abril Cultural, 1978; p. 45. Os grifos são por nossa conta]. A propriedade é, para Locke, um direito natural que deve ser assegurado e protegido pelo Estado. Sua principal função, diria ele, é a defesa da propriedade privada.

[11] Marx, Karl. Dezoito de Brumário de Luis Bonaparte. São Paulo: Editora Alfa-Omega, Obras Escolhidas, Volume I, p. 213.

[12] Marx, Karl. Para a Questão Judaica., op, cit, p. 64-65.

[13] Idem,Ibidem., p. 65. [Os itálicos são de Marx].

[14] Ver passagem referente à nota de pé de página nº 6.

[15] Ver passagem referente à nota de pé de página nº 8.

[16] Para a Questão Judaica., op. cit. p. 71/72.

[17] Habermas, Jürgen. Legitimation Crisis. Boston: Beacon Press, 1973.

[18]Idem., ibidem. Tradução livre, p.36: "a genuine participation of citizens in the process of political will-formation [...], that is, substantive democracy, , would bring to consciousness the contradiction between administratively socialized productions and the continued private appropriation and use of surplus value. In order to keep this contradiction from being thematized, then the administrative system must be sufficiently independent of legitimating will-formation".

[19] Bobbio, Noberto. O futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 114.

[20] Idem, ibidem, p. 39.

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