25/11/2010

CALDEIRA E SUA LEITURA DE CAIO PRADO JÚNIOR: UMA CRÍTICA FORA DO LUGAR

1. CONVITE AO LEITOR

Caldeira abre seu livro com um convite ao leitor para acompanhá-lo numa viagem de exploração ao Brasil colonial dos séculos XVI, XVII e XVIII. Sua intenção é mostrar e dar provas de que o mercado interno exerceu papel determinante no desenvolvimento da economia colonial; muito mais do que o setor exportador. Ao final da viagem, que consome um pouco mais de dez páginas, recheada de dados estatísticos, oferece aos seus convidados duas alternativas para a leitura do restante do seu livro. Para aqueles que concordarem com seu relato de viagem, sugere que passem

diretamente para a segunda parte do livro, intitulada “Construção”. Ela contém uma sugestão para explicar melhor o cenário: mostrar a figura do empreendedor como peça central para entender a formação do Brasil colonial ao longo dos três séculos anteriores[1].

Se o cenário desenhado nas primeiras páginas soar estranho ao leitor, Caldeira recomenda-lhe a leitura da primeira parte do livro na qual elabora sua crítica a um tipo de modelo de análise, que assume como

pressuposto aquilo que é justamente o contrário de uma economia colonial de bom desempenho. Aplicando esse modelo, produzem-se avaliações como: o latifúndio agrário-exportador impediu o desenvolvimento do mercado interno; o sentido da colonização era exportar uns poucos produtos e transferir a riqueza para o exterior, deixando apenas pobreza e devastação; a escravidão era a base do sistema, a exploração direta de produtores, o segredo da economia; a colonização escravista produziu um povo analfabeto e uma elite insensível. Tudo isso constituiria uma base de problemas que desemboca na pobreza nacional e na desigualdade de renda brasileira de hoje[2].

Esse tipo de análise, continua ele,

não explica apenas a economia interna. Todo o conjunto social é analisado com vistas ao mau resultado que o modelo descreve: a sociedade que a exploração colonial gerava seria, além de pobre, violenta. Tendo na base a exploração do trabalho escravo, no topo estaria o poder concentrado do latifundiário dominador, capaz de explorar, via dependência pessoal, os homens livres. Assim se montaria um sistema político de dominação política oligárquico, com o controle das eleições pelos senhores. Com tudo isso, o conjunto social não progrediria[3].

Entre os paradoxos do modelo, como assim entende Caldeira,

não falta um, o ideológico. Uma grande parte dos estudiosos que empregam o modelo do latifúndio agrário-exportador entende que o sucesso desse modelo é resultado da aplicação do marxismo como metodologia. Trata-se de orgulho justificado pela própria força que o modelo adquiriu - e orgulho que certamente será afetado pela necessidade de sua revisão[4].

O alvo dessa crítica não é outro que não Caio Prado Júnior (CPJ) que aplicou pela primeira vez à analise da realidade histórica brasileira a concepção materialista da história. Como o autor do presente texto não concorda com o cenário traçado por Caldeiras, resolveu aceitar sua sugestão de leitura: deixa-se de lado a segunda parte do livro, para acompanhá-lo na crítica que dirige ao autor de Evolução Política do Brasil (EPB) e Formação do Brasil Contemporâneo (FBC), ambos objetos de sua censura crítica.

Esboçado o plano de leitura, é chegada a hora de acompanhar o desenrolar da crítica que Caldeira dirige a CPJ.

2. UMA PEDRA NO COMEÇO DO CAMINHO

A primeira parte do seu livro é composta de treze capítulos, todos voltados à crítica das duas primeiras obras de CPJ - EPB e FBC.

No primeiro capítulo, Caldeira censura o autor de EPB por se aventurar a escrever uma obra de História sem nenhum conhecimento anterior com essa ciência. Em tom categórico, afirma que

o emprego de “latifúndio” como categoria central para explicar “Brasil” é geralmente atribuído ao livro Evolução Política do Brasil, de autoria de Caio Prado Júnior, 1933. Trata-se de uma atribuição muito fora do comum, e não apenas pelo fato raro de apontar para uma criação excepcional para o entendimento geral como obra de um único autor. Ela seria, mais do que isso, produto da criação de um autor que não tinha nenhuma experiência anterior com História e cuja produção intelectual até então se resumia a um artigo em jornal estudantil, tratando de política. Claro, isso tinha relação com o fato de o autor estar completando 26 anos no dia da entrega dos originais à gráfica[5].

Se EPB é criação de um autor que desconhecia por completo a história da realidade brasileira, como entender que é o próprio Caldeira, no terceiro capítulo do seu livro, História Do Brasil em Família, quem reconhece que a formação intelectual de CPJ, dos 10 aos 24 anos de idade, deve-se às leituras que fizera das anotações de pesquisa do seu tio, Paulo Prado? Apesar de suas obrigações com os negócios da família, Paulo Prado estudou com profundidade a história do Brasil. E o fez, escolhendo

um caminho próprio. Passou a financiar todos os trabalhos de pesquisa e publicação das obras de Capistrano de Abreu. Fez isso de maneira profissional: montou uma sólida estrutura para que o beneficiado pudesse encomendar cópias em massa de documentos importantes em arquivos – uma raridade reservada para os muitos ricos, naquele momento. Claro, o patrono recebia também uma cópia pessoal, de forma que teve em casa uma coleção de documentos raros da história brasileira da melhor qualidade. Ao mesmo tempo montou uma riquíssima brasiliana[6].

Mais tarde, Oliveira Viana faria parte dos estudos e debates realizados por Paulo Prado e Capistrano de Abreu. As relações entre os três

ganharam então uma grande integração. Prado recebia os documentos triados por Capistrano de Abreu, os lia e debatia com o pesquisador; Oliveira Vianna foi se incorporando na conversa, participando de reuniões quando vinha a São Paulo fazer conferências ou tratar da publicação de seus livros[7].

CPJ foi um freqüentador assíduo e disciplinado da biblioteca de seu tio, na qual se encontrava todo o material de pesquisa dos trabalhos que Paulo Prado realizou com Capistrano de Abreu e Oliveira Viana. É daí que vem a formação histórica do autor de EPB. Quem o diz é o próprio Caldeira, para quem

mais do que esmiuçar as soluções específicas de cada um dos três (Paulo Prado, Capistrano de Abreu e Oliveira Viana) para a questão única de que tratavam, interessa aqui notar que Caio Prado Júnior, entre os 10 e 24 anos, teve acesso, na casa do tio – que freqüentava regularmente – não apenas a um conjunto de fontes primárias e uma grande biblioteca, mas também aos procedimentos de pesquisa de alguns dos mais treinados homens do tempo e a um permanente debate de história. O resultado mais visível do treino que recebeu está nas fichas de leituras que ele começou a acumular. Elas foram montadas com boa ordem, com os títulos dos livros servindo de base para a organização de aglomerados de informações sobre temas[8].

Para quem antes afirmou que CPJ não tinha nenhum conhecimento de História, quando escreveu EPB, esta última citação desdiz a anterior. Caldeira fere assim o princípio da não-contradição, tão caro a Aristóteles. Com efeito, começa com a firmação de que o autor de EPB nada conhecia de História, para, em seguida, afirmar que esse autor detinha, bem antes de publicar esse seu primeiro livro, um amplo conhecimento da história brasileira, que adquiriu com as leituras do material de pesquisa deixado pelo seu tio, Paulo Prado. Ora, quem afirma e nega o mesmo predicado do mesmo sujeito está a negar a própria racionalidade do discurso. Como diria Cirne-Lima,

um tal vivente, que falando diz e desdiz, não está mais a dizer nada. Ele abandona o discurso racional, ele cai fora da razão, e daí em diante tem que ficar calado que nem uma planta[9].

Ainda que fira o principio da não-contradição, não é aconselhável amordaçar Caldeira; emudecê-lo a ponto de transformá-lo num planta. Afinal, Aristóteles desempenha papel central na crítica que ele faz a CPJ. Uma boa razão para continuar a acompanhá-lo.

3. PROXIMIDADE DE CAIO PRADO JÚNIOR COM ARISTÓTELES

3.1. CPJ: DISCÍPULO DE ARISTÓTELES

No último capítulo da primeira parte de seu livro, Bactérias e Telescópio, Caldeira assim resume sua crítica ao autor de EPB:

Este brevíssimo resumo do lugar teórico do mercado na estrutura categorial permite verificar que existe uma proximidade muito maior entre Caio Prado Júnior e Aristóteles, do que com Adam Smith ou Marx[10].

Qual é a razão dessa proximidade?

A resposta vem em seguida, quando Caldeira acrescenta que

no modelo de Caio Prado Júnior simplesmente inexiste qualquer espécie de instrumento para descrever a produção como resultado de troca contratual – a não ser pelo extraordinário recurso de colocá-las fora de “Brasil”, e excluir da análise todos os agentes livres e a moeda – enfim, o mercado histórico existente. Não existindo nos instrumentos por definição, não é de estranhar que nem mercado interno nem capital sejam encontrados no estudo empírico. O desaparecimento não se deve à má intenção de pesquisadores[11].

Agora, tudo começa a se esclarecer. Como não existem mercado interno na colônia e, consequentemente, nem troca de mercadorias e capital, a economia colonial assemelha-se à concepção aristotélica da economia. Como se sabe, para o filósofo grego, a produção de valores de troca é moralmente condenável e deve ser controlada, se não, evitada pelo Estado. O que deve vigorar é a economia natural, isto é, uma economia voltada à produção de valores de uso, isto é, de bens não destinados à venda no mercado. Como o comércio de mercadorias , para CPJ, como assim entende Caldeira, só existe nas relações externas da colônia com sua metrópole, predomina na economia interna uma produção unicamente voltada para atender às necessidades de consumo dos agentes econômicos; não existe, portanto, mercado interno na colônia. Daí a razão por que CPJ estaria mais próximo de Aristóteles do que de Smith e de Marx.

Mas é preciso deixar Caldeira avançar um pouco mais com essa analogia, para que se possa entender mais claramente a razão por que, para ele, CPJ estaria mais próximo de Aristóteles do que de Smith e Marx. Para tanto, faz-se necessário investigar como esse autor pensa o modelo corporativista de Portugal e sua variante aristotélica e, assim, sua semelhança com a versão do “modelo” de CPJ para explicar a relação entre o Brasil e a metrópole portuguesa.

3.2. A VARIANTE ARISTOTÉLiCA DO MODELO POLÍTICO-CORPORATIVISTA DE PORTUGAL

No capitulo VI do seu livro, Corporativismo, Caldeira contrapõe o pensamento político do filósofo grego com o dos teóricos do contrato social. Destaca que a diferença básica entre Aristóteles e os modernos está no fato de que estes últimos partem do princípio de que os homens nascem livres iguais e não naturalmente desiguais, como seria para aquele filósofo. Aos olhos de Caldeira, a filosofia política moderna realizou uma verdadeira “Revolução copernicana”, pois

entender o exercício do poder político como resultante de um contrato entre homens livres e iguais, e não da desigualdade entre os homens, exigia uma revolução no pensamento político: obviamente, colocar o princípio da igualdade no lugar central, substituindo o divino ordenamento da natureza que fez os homens desiguais; a Razão, que preside o encontro dos indivíduos no contrato, substitui o mando incontrastado (sic) e a obediência devida ao superior como virtude fundamentais da política. Essas mudanças no modo de conceber a política, proposta pelos primeiros iluministas, provocaram um debate agudo por toda Europa[12] .

Os rumos da política em Portugal tomaram caminho diverso. Esse país assumiu um modelo de gestão política que ficou conhecido pelo nome de corporativismo. Adotou uma amálgama entre o modelo aristotélico e o iluminista que se fez “pelo abrandamento”, diz Caldeira,

da dicotomia aristotélica central entre o senhor e o escravo, mandatário e obediente. O corporativismo concebia um mundo político pela finalidade de manter distinções funcionais entre as partes da sociedade, e não como espaço para impor relações de subordinação entre quem naturalmente manda e quem naturalmente obedece. “faz parte desse patrimônio doutrinal a idéia de que cada corpo social, cada órgão funcional, tem sua própria função, de modo que cada parte do corpo deve ser conferida a autonomia para que possa funcionar”[13].

Em seguida, Caldeira qualifica melhor o modelo político corporativista de Portugal. Afirma que, neste modelo,

ato de governar deixa de ser concebido, como em Aristóteles, como aquele no qual o homem livre manda e o servidor – mesmo cidadão – obedece. Passa a ser entendido como uma função específica em meio a uma totalidade de partes distintas. É visto como o exercício do papel de cabeça da sociedade, ato que só ganha sentido na medida em que as distintas partes destas são os órgãos funcionais onde as decisões da cabeça são executadas pelos demais ...[14].

Ao atribuir ao pensamento político de Aristóteles uma dicotomia entre quem manda e quem obedece, Caldeira entende que o filósofo grego define o poder político como uma relação de dominação ditatorial na qual prevalece o mando de um sobre todo o corpo da sociedade. Ora, uma leitura atenta de a Política[15], especialmente dos livros III e IV, revela o contrário do que entende aquele autor. Infelizmente, aqui não há espaço para discussão dessa natureza. Adiante-se apenas que Aristóteles nega toda a forma de governo que toma o princípio da justiça distributiva como critério para definir a questão da soberania, ou seja, a quem compete governar. E nega porque o poder não obedece às regras daquele princípio. Se obedecesse, então, os pobres poderiam reclamar para si o direito de governar a cidade, pois constituem a maioria da comunidade. Critério semelhante, diria Aristóteles, poderia ser aplicado à minoria rica da cidade, pois detém a maior parcela da riqueza, consequentemente, caberia a ela, e não a maioria, o direito de governar. Como sair desse impasse? – Simples: o poder não deve ser exercido para defender as pessoas, mas para assegurar a felicidade de todos[16], pois a comunidade não é uma associação de pessoas que teria por objetivo a defesa de seus interesses. Que o diga o filho de Estagira, para quem,

a cidade é formada não somente com vistas a assegurar a vida, mas para assegurar uma vida melhor (...), e seu objetivo não é o mesmo de uma aliança militar para defesa contra ofensas de quem quer que seja, e ela não existe por causa do comércio e relações de negócios (...). É claro, portanto, que qualquer cidade digna desta designação e que não seja cidade apenas no nome, deve estar atenta às qualidades de seus cidadãos, pois de outra maneira a comunidade se torna uma simples aliança, deferindo apenas na localização se comparada com as alianças propriamente ditas (...). A lei, então, passa a ser um convênio, ou, na frase do sofista Licofron, "uma garantia de justiça recíproca", e já não se destina a fazer com que os cidadãos sejam bons e justos [17].

Se a cidade existe para assegurar uma vida boa, pergunta então Aristóteles a quem deve caber o exercício da soberania: às massas, aos homens ricos, aos homens bons, ou a um só homem melhor que todos os outros, ou a um tirano? Sua resposta é clara: a nenhum deles, pois não é justo considerar o poder como um bem a repartir segundo o princípio “a cada um segundo o seu mérito”.

Mas não é assim que pensa Caldeira. Ao que tudo indica, ele define o poder político em Aristóteles como se o Estagirita o definisse de acordo com o princípio da justiça distributiva. Talvez a pressa o tenha levado a elaborar uma síntese descuidada da política em Aristóteles, para formular sua tese de que a categoria de totalidade, que preside o pensamento desse filósofo, cai como uma luva para explicar o modelo corporativista português e assim estabelecer uma analogia com a análise que faz CPJ da economia colonial brasileira.

Quanto a isto Caldeira não deixa dúvidas. Referindo-se à variante corporativista do pensamento aristotélico, acrescenta que, nela,

o centro é deslocado da desigualdade natural senhor/escravo (...) para a desigualdade que descreve a superioridade da “cabeça” governamental sobre um “corpo social”composto de proprietários, mas que possui vários “órgãos”. É assim porque já não se trata da cidade-estado, mas de governar sobre impérios, organismo muito mais complexos, compostos de diversas esferas de pessoas e entidades, cuja separação funcional o direito adquirido garante. Com a crescente pressão do iluminismo - e depois do liberalismo – este tipo de pensamento foi sobrevivendo numa definição normativa de Brasil como espaço onde a igualdade iluminista não penetrava[18].

3.3. CALDEIRA E O “PENSAMENTO POLÍTICO-CONSERVADOR DE CPJ”

O cenário está pronto para nele incluir a análise de CPJ. Basta imaginar, diz Caldeira, “que nessa definição, se montasse uma nova versão de ‘Brasil’, não mais como simples objeto normativo”, como o era no pensamento político de Oliveira Vianna,

mas como pretenso fruto marxista, e, portanto, com a capacidade de ir além da norma ideológica e descrever processos históricos. E que, nessa montagem, a arte da aquisição ficasse “dentro”, no corpo da colônia, e a arte de enriquecer se reservasse para “ fora”, para o cérebro da Metrópole[19].

Partindo daí, Caldeira se pergunta se essa metáfora corporativa “seria (...) aplicável a ‘sentido da colonização’? “. Sua resposta é afirmativa. Com base no último capítulo de FBC, intitulado Vida social e política, cita uma passagem na qual CPJ afirma que o “tom geral da vida social da colônia” é um produto da “obra da colonização portuguesa no Brasil”. “O cumprimento desse propósito”, comenta Caldeira, em seguida,

numa obra marxista, eventualmente poderia levar a pensar numa contextualização histórica das diferenças entre classes sociais nascidas da produção. No entanto, a economia é apenas subsidiária de uma outra ordem de preocupações...”[20].

Ai está a razão da “decepção” de Caldeira. Esperava de CPJ, como um autor marxista, uma análise das diferenças entre classes sociais, tão importantes para o autor de História do Brasil com empreendedores, para explicar a formação do mercado interno da colônia. Por isso, esta não teria vida interna própria; sua economia doméstica, diria ele, era uma vasta seara de atividades voltadas à produção de valores de uso, de bens não destinados ao mercado, tal como assim o é no “modelo de economia dual de Aristóteles”, no qual as atividades comerciais são moralmente condenáveis.

Decepcionado com CPJ, de quem esperava uma análise das “diferenças entre as classes sociais nascidas da produção”, Caldeira fecha seu décimo segundo capítulo, da primeira parte do seu livro, com uma crítica cáustica ao autor de FBC. Acusa-o de ver a colônia apenas como um imenso sistema em que impera a desagregação social, pobreza e miséria na economia, uma sociedade reduzida quase exclusivamente a tênues laços que resultam do trabalho servil, único setor organizado da colônia. Em meio a tal cenário, diz Caldeira,

Caio Prado Júnior se vê então obrigado a enfrentar a explicação da inserção de “Brasil” na era da acumulação mercantil burguesa com a mais tradicional resposta corporativa: trazer de “fora” as forças que a construíram. Assim o livro termina na análise das “importações de ideias”, sejam maçons, inglesas ou francesas. O último parágrafo, que conclui todo o raciocínio recoloca, com um acento racista, a tese de todos os corporativistas, segundo a qual as idéias liberais, embora importadas, não tinham sentido próprio no Brasil justamente porque a escravidão era a instituição “natural” básica[21].

E encerra seu “desabafo filisteu de acusações”, com a afirmação de que

tamanha é a homologia entre essa análise e as teses centrais do pensamento conservador, que não se pode ignorar a hipótese de que “sentido da colonização” venha dessa fonte[22].

São acusações muito sérias que mereciam ser discutidas uma a uma. Infelizmente não há espaço para tanto, mesmo porque se pode encontrar em outros estudiosos de CPJ[23] respostas para cada uma delas. Destaque-se apenas o fato de que Caldeira parece desconhecer por completo a literatura que trata do papel desempenhado pelas colônias no processo de acumulação primitiva de capital em escala mundial. Não se dá conta de que o contexto da análise de CPJ é o da ação do capital mercantil sobre a produção. Como apropriadamente esclarece Oliveira,

é a ação do capital mercantil, criando o mercado mundial, que engendra os mercados amplos adequados ao surgimento da manufatura, cujas escalas de produção são relativamente grandes, e é ele, também, que vai alargando os mercados, condição para o crescimento da produção manufatureira. Vale dizer, é o desenvolvimento do capital mercantil que regula e imprime o ritmo de acumulação do capital manufatureiro. E isso é expressão da dominação do capital mercantil sobre o capital industrial, próprio desse momento do processo de constituição do capitalismo[24].

É nessa fase de formação do capitalismo que o mercado colonial se constitui como alavanca para o desenvolvimento da produção mercantil das metrópoles, e, assim, condição necessária para a produção manufatureira. Recorrendo mais uma vez a Oliveira, ele esclarece que

os descobrimentos e a corrida colonial marcam o surgimento do mercado mundial. Utilizamos o conceito de mercado mundial não somente pela regularidade com que são mantidas as trocas , ou ainda porque agora o globo participa do comércio, que movimenta valores extremamente superiores aos do comércio medieval. Na verdade, o mercado mundial conforma uma totalidade orgânica, pois não se trata simplesmente de estabelecimentos de circuitos comerciais bilaterais entre a Europa e os outros continentes, mas sim da constituição de fluxos mercantis interdependentes já que seria impossível o desenvolvimento de determinados circuitos sem o avanço de outros, num processo de mútua estimulação. Concretamente, o comércio entre metrópole e colônias era equilibrado pelo fornecimento de escravos enviados às colônias juntamente com produtos europeus. O fornecimento de escravos, por sua vez, era viabilizado pela oferta de produtos colônias (tabaco, aguardente etc.) na África, que evidentemente conformava uma cadeia de fluxos dependentes entre metrópoles e colônias, feitorias africanas e metrópoles, e ainda colônias e feitorias. De maneira semelhante, o comércio dos europeus com o Oriente, deficitário para os primeiros, dependia, para seu equilíbrio, dos metais preciosos da América, e os produtos orientais, por sua vez, eram também vendidos nas colônias americanas. Em suma, o mercado é mundial não somente porque grandes volumes de mercadorias são transacionados entre os cincos continentes, mas porque é composto de fluxos comerciais interdependentes, o que lhe imprime uma dinâmica específica[25].

É uma longa citação, porém necessária, na medida em que ela mostra que o sistema colonial marca a formação do mercado mundial; é dele parte integrante. Ao contrário do que imagina Caldeira, a formação do mercado mundial resulta numa totalidade organicamente articulada em que as colônias se inserem de forma subordinada, como força propulsora da acumulação primitiva de capital, particularmente, da Europa. Isto não tem nada a ver com o “modelo corporativista de Portugal” nem tampouco com sua variante aristotélica, se é que existe alguma relação entre o pensamento político de Aristóteles e política moderna, como entende o autor de História do Brasil com empreendedores.

E é como parte integrante dessa totalidade orgânica do mercado mundial que CPJ pensa a relação do Brasil com sua metrópole. Em carta dirigida a Lívio Xavier, dirigente da Liga Comunista Internacional (LCI), de 1933, CPJ responde às críticas desse dirigente à EPB, que o acusava de ter sido insuficiente na análise da economia do segundo reinado porque nela não está incluída a acumulação capitalista.

Sua resposta:

Se o Brasil, como colônia, semi-colônia ou país dependente que sempre foi, serviu como uma das bases de acumulação para os países da Europa, não se pode contudo dizer que houve acumulação primitiva para nós mesmo[26].

Ignorar esse processo de subordinação das colônias americanas, asiáticas e africanas à acumulação capitalista, que tem lugar nos países europeus, como assim o faz Caldeira, significa adotar um critério estreito de análise, quando não marcado por viés ideológico. Ainda que o Brasil tenha servido de alavanca para a acumulação primitiva de capital dos países europeus, mesmo assim, CPJ não nega que houve formação do mercado interno durante o período colonial e imperial[27]. Não sem razão, EPB e FBC fazem do início do século XIX, quando se dá a transferência da sede da monarquia portuguesa para o Brasil, ponto de partida de suas análises. Qual é a razão desse marco histórico? Com a resposta CPJ:

Brasil começa a se renovar (...). Apenas, inicio de um longo processo histórico que se prolonga até os nossos dias e que ainda não está terminado (...). Naquela passado se constituíram os fundamentos da nacionalidade: povoou-se um território semideserto, organizou-se nele uma vida humana que diverge tanto daquela que havia aqui, dos indígenas e suas nações, como também, embora em menor escala, da dos portugueses que empreenderam a ocupação do território. Criou-se no plano das realizações algo de novo. Este “algo de novo” não é uma expressão abstrata; concretiza-se em todos os elementos que constituem um organismo social completo e distinto: uma população bem diferenciada e caracterizada, até etnicamente e habitando um território; uma estrutura material particular, constituída na base de elementos próprios; uma organização social definida por relações específicas; finalmente, até uma consciência, mas precisamente uma certa atitude mental coletiva particular. Tudo isso naturalmente já se vem esboçando desde longa data[28].

A censura que Caldeira dirige a CPJ, acusando-o de negar que havia vida interna na colônia, é, no mínimo, uma crítica fora do lugar. É desconhecer que, para esse pensador, a emancipação política do país se dá num ambiente em que o Brasil já estava geograficamente integrado através de várias vias de comunicação e transporte, além de contar com uma população bem diferenciada e caracterizada, habitando todo o território brasileiro e até mesmo com certa consciência nacional. Exemplo dessa consciência é o projeto constitucional de 1823, marcado que foi por uma profunda xenofobia, que afastou para sempre o perigo da recolonização,

excluindo dos direitos políticos as classes inferiores e praticamente reservando os cargos da representação nacional aos proprietários rurais; concentrando a autoridade política do Parlamento e proclamando a mais ampla liberdade econômica, o projeto consagra todas as aspirações da classe dominante dos proprietários rurais, oprimidos pelo regime de colônia, e que a nova ordem política vinha justamente liberar[29].

A ideologia do projeto constitucional de 1823 era extremamente liberal, pois, como o diz CPJ, suprimiu todas as restrições de ordem econômica – monopólios, privilégios, etc. – estabelecendo a mais ampla liberdade econômica e profissional. Bem diferente do que pensa Caldeira, para quem, “as ideias liberais, embora importadas, não tinham sentido próprio no Brasil justamente porque a escravidão era a instituição ‘natural’ básica”[30]. Ora, não é assim que entende o autor de EPB. Para ele, o projeto de 1823,

apesar de todo o seu apregoado liberalismo, não se embaraça com a questão dos escravos, adaptando-lhes a situação às exigências da filosofia rousseauísta, de que fazia timbre em não se afastar, com a eufêmica disposição do art. 265 do projeto: “A constituição reconhece os contratos (!) entre os senhores e escravos; o governo vigiará sobre a sua manutenção”[31].

E conclui:

É este o mais perfeito retrato do liberalismo burguês ...[32]

Se as ideias liberais não tinham sentido próprio no Brasil, como entende Caldeira, também não deveriam ter lugar no pensamento político de Locke, considerado por muitos como o fundador do liberalismo político. Este não era contra a escravidão, justifica-a quando afirma que

tendo por culpa própria perdido o direto à vida por algum ato que mereça a morte, aquele a quem a entregou pode, quando o tem entre as mãos, demorar em tomá-la, empregando-o a seu próprio serviço...[33]

Certamente, para Locke, os africanos devem ser culpados por sua escravidão, “acovardaram-se” diante dos invasores europeus que, por piedade cristã, “pouparam-lhe a vida” fazendo-os trabalhar em suas colônias do Novo Mundo. Quanto Bondade!. Que dizer da Convenção de Filadélfia, 1787, sete anos depois da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América do Norte? A Constituição daí resultante, redigida por grande proprietários, todos donos de escravos, excluía o povo de participar das deliberações mais importantes uma vez que,

com exceção da Câmara dos Deputados (uma concessão aos liberais), todas as autoridades importantes do governo - presidente, senadores e juizes – não deviam ser escolhidos diretamente pelo povo, mas respectivamente, pelo colégio eleitoral, pelos legislativos estaduais e por nomeação (... ) Essa constituição conservadora foi aprovada em grande parte como reação ao que os convencionais consideravam “os excesso do povo” (...), bem como ao perigo que viam na retórica utópica-democrática, da qual a Declaração de Independência seria um documento típico[34]

Era uma Constituição liberal, não há dúvida; mas não era para todos. A massa e os escravos, estes últimos que teriam de esperar ainda até 1863 por sua libertação dos grilhões de ferro, estavam dela excluídos. Os federalistas, de ideias democrático-liberais, tinham medo do povo, como assim declarava John Adams, para quem,

os ricos ... têm o direito claro e sagrado de possuir as grandes propriedades como outros têm de possuir as suas, que são pequenas... Os ricos, por conseguinte, devem encontrar na Constituição uma barreira que impeça de serem roubados...”[35].

Com os olhos voltados para as cidades-Estado da Grécia Antiga, os federalistas queriam criar no Novo Mundo

uma elite que chamaram de “aristocracia natural”, baseada na propriedade, na educação e no senso de responsabilidade moral. Acreditavam que, assim, criariam condições para defender a liberdade. Homens sem propriedade, diziam eles, não tinham interesse pela manutenção da ordem social e, portanto, não podiam constituir cidadãos estáveis. Entre outros Madison assim expressa suas preocupações: “no futuro, a grande maioria do povo não terá terra nem qualquer outro tipo de propriedade. Ou ela se associa , influenciada pela sua situação comum – caso em que os direitos de propriedade e a liberdade pública não estarão seguros em sua mão -, ou, o que é mais provável, ela se tornará instrumento de opulência e ambição, caso em que haverá o mesmo perigo. Os federalistas recorriam a exemplos históricos para confirmar suas concepções políticas. As cidades-Estado da Grécia, da Europa medieval e do início da época moderna eram as repúblicas que lhes serviam de modelo...”[36].

Se os Estados Unidos, considerado como país modelo da democracia-liberal, instituíram sua Constituição quando ainda estava longe a abolição da escravidão, bem que se poderia perguntar a Caldeira por que somente no Brasil as ideias liberais não tinham sentido próprio? Será que ele desconhece que todas as democracias liberais do século XIX nascem cercadas da garantias para impedir a participação popular e a dos escravos, considerados que eram como cidadãos desclassificados? Para o liberalismo, liberdade é sinônimo de propriedade, como apropriadamente esclarece Marx, em O Dezoito de Brumário, quando se refere à Constituição francesa de 1848. Nela, declarava-se

o inevitável estado-maior das liberdades (...), a liberdade pessoal, as liberdades de imprensa, de palavra, de associação, de educação, de religião, etc.,, receberam um uniforme constitucional, que as fez invulneráveis (...). O gozo desse direito não sofre qualquer restrição, salvo as impostas pelos direitos iguais dos outros e pela segurança pública. (...). “O ensino é livre. A liberdade de ensino será exercida dentro das condições estabelecidas pela lei e sob o supremo controle do Estado” (...). “O domicílio de todos os cidadãos é inviolável, exceto nas condições prescritas na lei” (...). A Constituição, por conseguinte, refere-se a futuras leis orgânicas que deverão pôr em prática aquelas restrições e regular o gozo dessas liberdades irrestritas de maneira que não colidam entre si nem com a segurança pública (...). Onde são vedadas inteiramente essas liberdades “aos outros” ou permitido o seu gozo sob condições que passam de armadilhas policiais, isso é feito sempre, apenas no interesse da “segurança pública”, isto é, da segurança da burguesia, como prescreve a Constituição (...). Pois cada parágrafo da Constituição encerra sua própria antítese, sua própria Câmara Alta e Câmara Baixa, isto é, a liberdade na frase geral, ab-rogação da liberdade na nota à margem [37].

Certamente, nada disso deve ser estranho a Caldeira. Se não o é, sua crítica a CPJ, como diz Marx, referindo-se ao cidadão Weston, no pronunciamento que fez ao Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores, em 1865, “poderia ser condensada a ponto de caber numa casca de noz”.


4. UMA CRÍTICA FORA DO LUGAR

4.1. PARA INÍCIO DE CONVERSA

Mas de volta à questão central da acusação que Caldeira faz a CPJ, por ver o Brasil apenas em suas relações com a metrópole, esquecendo a vida interna da colônia, é chegado o momento de acompanhá-lo mais de perto nessa crítica. Para tanto, o restante deste texto se propõe a examinar até que ponto, como assim entende Caldeira, a riqueza da interpretação de EPB decorre não do “método marxista”, mas de uma intuição genial do seu autor. Em segundo lugar, o conhecimento que Caldeira alega ter de Marx é suficiente para acusá-lo de não ter compreendido a teoria do autor de O Capital, como se lê no décimo primeiro capítulo do seu livro, O Ouro Desclassificado? Noutras palavras, Caldeira conhece suficientemente bem a teoria de Marx para criticar as análises marxistas de CPJ?

4.2. A QUESTÃO DO MÉTODO: UMA COBRANÇA INDEVIDA

No primeiro capítulo do seu livro, Pela Primeira Vez Na História do Brasil, Caldeira afirma que

a grande dificuldade de se fazer uma reconstrução da metodologia de Evolução Política do Brasil permite inclusive julgamentos de que, na obra, o marxismo apareceria mais como defeito que virtude – lago perfeitamente possível quando o foco passa da metodologia geral para as formas de ordenação do assunto propriamente dito, isto é, do marxismo para as análises sobre o Brasil[38].

Para fundamentar essa afirmação, passa em revista os melhores e principais comentadores da obra de CPJ, tais como Henrique Martinez Teixeira, Paulo Iumatti, Bernardo Ricupero, dentro outros. Não poupa citações desses autores para dar razão às suas argumentações. Para sustentar o que afirmou acima, cita, de Bernardo Ricupero, uma passagem na qual ele comenta que

o pensamento de Caio Prado Jr., tanto no que tem de analítico como no que tem de normativo, está fortemente marcado pela influência marxista. Na análise, Caio Prado utiliza-se do marxismo para explicar Colônia e a grande exploração, elemento mais característico dela, como totalidades e interpreta a transição entre situação colonial e a situação nacional brasileira, de forma similar a Lênin em O desenvolvimento do capitalismo na Rússia[39].

Esta citação está fora do lugar por duas razões. Primeira, Caldeira não pode inferir dessa passagem, citada da obra de Ricupero, elementos para mostrar as dificuldades de entender as origens marxistas de EPB. Por acaso, Lenin não era marxista? Segunda, não se dá conta que o Desenvolvimento do capitalismo na Rússia é um exercício rigoroso dos esquemas de reprodução de Marx, livro II, de O Capital, aplicados àquele país. Com efeito, em sua crítica aos populistas russos, principalmente a Vorontsov e Nikolaion, para quem o desenvolvimento do capitalismo na Rússia seria impossível por falta de consumo interno, Lênin responde-lhes que o capitalismo cria seus próprios mercados. Para tanto, lança mão desse esquemas para demonstrar como o capital, na medida em que se desenvolve, é capaz de criar seus mercados para a realização da produção. .

Se assim é, será que Caldeira conhece suficientemente a teoria de Marx e de Lênin, para fazer tal afirmação, como volta a repeti-la, quase literalmente, no final do primeiro capítulo do seu livro, onde afirma que EPB é uma obra que não permite que se demonstre como o método [marxista] gerou sua construção”?

Quem realmente conhece Marx e o Lenin do Desenvolvimento do capitalismo na Rússia sabe muito bem que a passagem que Caldeira cita de Ricupero atenta contra ele mesmo. O autor de História do Brasil com empreendedores não desconfia, nem por um instante, que Ricupero afirma o contrário do que ele deduz da passagem citada por ele. Caldeira deveria saber, para seu prejuízo, que não se pode violar impunemente o princípio de não-contradição. Quem comete tamanho desatino, resta-lhe o castigo de ficar calado, mudo feito uma pedra.

Mas Caldeira é um autor abusado. Seguro do que pensa que sabe, acusa CPJ de não ter feito uma aplicação rigorosa do método marxista e de fazer uso de categorias que não encontram respaldo em Marx. Quanto a este último aspecto afirma que o emprego que CPJ faz da categoria latifúndio não encontra “referência marxista específica[40].

Ora, sabe-se que CPJ era radicalmente contra a importação de esquemas teóricos predeterminados para aplicá-los à realidade do Brasil, como deixa claro em diversas passagens de A Revolução Brasileira[41]. Para ele, a solução dos problemas sociais de uma determinada realidade histórica deve ser buscada neles mesmos. “É numa tal linha de pensamento”, comenta o autor de FBC,

que se há de fazer a determinação das reformas e transformações da revolução brasileira. Isto é, não pela dedução a priori de algum esquema teórico preestabelecido; de algum conceito predeterminado da revolução. E sim pela consideração, análise e interpretação da conjuntura econômica, social e política real e concreta, procurando nela sua dinâmica própria que revelará tanto as contradições presentes, como igualmente as soluções que nela se encontram imanentes e que não precisam ser trazidas de fora do processo histórico e a ele aplicadas numa terapêutica de superciência que paira acima das contingências históricas efetivamente presenciadas [42].

Nisto consiste o verdadeiro método dialético. Este somente pode ser aplicado depois de um longo trabalho de pesquisa, que revele as conexões internas dos fatos. Não sem razão, no posfácio da segunda edição de O Capital, Marx chama a atenção de seus leitores para a necessidade de distinguir o método de exposição do método de pesquisa. Cabe a este último, diz ele,

captar detalhadamente a matéria, analisar as suas várias formas de evolução e rastrear sua conexão interna. Só depois de concluído esse trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento do real[43].

Sem este trabalho prévio de pesquisa, o leitor pode ser levado a pensar que a exposição das determinações do objeto é produto do pensamento, que pensa separado e acima da intuição e da representação. Para Marx, o método não pode ser indiferente ao seu objeto; não se trata de uma aplicação de “um sistema de lógica”, pronto e acabado, para apreender e explicar o objeto. Pelo contrário, porque o objeto tem sua própria racionalidade, o método deve ser adequado às suas determinações constitutivas, reveladas pelo trabalho de pesquisa. Por isso, a

crítica do capitalismo e da economia política não decorre de uma mera adesão a esse método, como se ele devesse valer por si mesmo, independentemente do objeto a que se aplicasse. Esta indiferença entre método e objeto, forma e conteúdo, seria em si mesmo totalmente não dialética. Ao contrário, é porque seu objeto se constitui de modo contraditório que Marx percebe ter de investigá-lo dialeticamente[44].

Ora, uma vez que método não pode ser pensado a priori, separado do seu objeto, entende-se por que CPJ se recusava a copiar Marx. E com razão, pois não se pode tomar os fatos históricos ocorridos na Europa, que o autor de O Capital tinha como referencial empírico, como

modelo universal que necessariamente haveria de se reproduzir em quaisquer outros lugares e, portanto, no Brasil também. Essa maneira de abordar a consideração dos fatos históricos, escusado dizê-lo, é inteiramente descabida[45].

É assim mesmo que pensa Marx. Numa carta dirigida ao russo Mikhailovsky que entendia o capítulo XXIV de O Capital não só como um esboço histórico dos primórdios do capitalismo, mas também como elaboração de uma teoria da filosofia da História, Marx reponde-lhe que aplicação à Rússia que ele poderia fazer desse “esboço histórico” era

apenas esta: se a Rússia tende a transformar-se numa nação capitalista, à maneira das nações da Europa ocidental – e nos últimos anos ela tem-se dado muito mal nesse sentido - não o conseguirá sem antes transformar uma boa parte de seus camponeses em proletários; e então, uma vez introduzido na seio do regime capitalista, ela experimentará suas leis impiedosas, como ocorreu com outros povos profanos. Isto é tudo. Mas não o é para o meu crítico. Ele se sente obrigado a metamorfosear meu esboço histórico da gênese do capitalismo na Europa ocidental em uma teoria histórico-filosófica da marcha fatalmente imposta a todos os povos, sejam quais forem as circunstâncias históricas em que se encontrem, para chegar, finalmente, a esta formação econômica que assegure, juntamente com o maior impulso das forças produtivas do trabalho social, o mais completo desenvolvimento do homem. Mas ele que me perdoe: isso, ao mesmo tempo, muito me honra e muito envergonha[46].

A resposta de Marx ao seu crítico Mikhailovsky bem que poderia ser dirigida a Caldeira, à cobrança que faz a CPJ sobre a origem da categoria latifúndio. Se vivo fosse, o autor de EPB certamente ficaria envergonhado com as exigências que lhe faz o autor de História do Brasil com empreendedores. Diria a ele que uma coisa é copiar Marx, outra bem diferente é compreender que a “aplicação” do método dialético não significa fazer uso das mesmas categorias empregadas pelo o pai do materialismo histórico. Infelizmente, disso Caldeira não demonstra ou não tem o mínimo conhecimento.

4.2.CALDEIRA E A FORMAÇÃO DO MERCADO INETRNO COLONIAL

Os desatinos teóricos de Caldeira não param por aí. No décimo primeiro capítulo do seu livro, O Ouro Desclassificado, acusa CPJ de neglicenciar esse metal amarelo como elemento desencadeador do processo de formação do mercado interno colonial. Abusado como sempre, cita uma passagem de FBC para concluir que ela

é suficiente para que possamos depreender se o texto do livro que fala do ouro trata de realidades históricas empiricamente verificáveis ou apenas afirma normas ideolófgicas que não têm relação com a história real[47].

Obviamente, para Caldeira, o capítulo de FBC que fala da atividade mineradora no Brasil-Cônia não passa de um amontoado de “normas ideológicas que não têm relação com a história real”. Pensa assim porque

em vez de entender o ouro como moeda e capital, produto capaz de criar, com sua cimples circulação, uma economia interna de mercado, a definição de Caio Prado Júnior produzirá um milagre econômico normatiivo. O ouro, no lado “interno de “Brasil”, é definido como apenas uma mercadoria, sem outra função que a de ser exportada para alimentar terceiros – como se fosse cana ou tabaco, sem jamais se tornar capital, riqueza mercado. Por definição dessa norma, apesar de desejado por todos, e mesmo circulando livremente na economia colonial como dinheiro, o ouro “não teria relação com a vida social”, não serviria para “satisfezer as necessidades dos moradores” com mercado e enriquecimento. Somente exportado o ouro “ganha sentido” para exercer as funções mais elevadas de dinheiro e capital[48].

Para encerrar a discussão e dá provas de que CPJ nada entendeu da teoria do dinheiro, Caldeira recorre mais uma vez a Marx. Entende que o autor de O Capital

define a moeda como mercadoria com poder fetichista de “projetar entre os homens o caráter social de seus trabalhos como se estes fossem o caráter material dos produtos de seu trabalho”[49].

Em seguida, cita um trecho daquela obra em que Marx diz que

o intercâmbio de mercadorias começa onde termina a comunidade, onde ela entra em contato com outras comunidades. E, assim que os objetos adquirem o caráter de mercadoria nas relações da comunidade com o exterior, este caráter se adere também, em consequencia, na vida interior da comunidade[50].

Caldeira deveria ter sido mais cuidadoso nas citações e interpretações que faz da teoria do dinheiro em Marx. Na citação referente à nota 47, o autor de História do Brasil com empreendedores comete um erro crasso, que deixaria Marx enfurecido se vivo fosse. Não existe na obra de o autor de O Capital nada parecido com a ideia de que o ouro, como entende Caldeira, é um “produto capaz de criar, com sua simples circulação, uma economia interna de mercado”.

Caldeira deveria saber, para seu prejuízo, que o ouro por si só não tem esse poder de se transformar em dinheiro. Quem o diz é proprio Marx, para quem,

a relação-capital durante o processo de produção só aparece porque existe em si no ato da circulação, nas diferenciadas condições econômicas de base em que comprador e vendedor se defrontam, em sua relação de classe. A relação não é dada pela natureza do dinheiro; é antes as existência dessa relação que pode transformar aa mera função mlonetária em função de capital[51].

Mais adiante Marx comenta que a compra e venda de escravos são, formalmente, compra e venda de mercadoria, mas,

sem a existência de escravidão, porém, o dinheiro não pode desempenhar essa função. Havendo escravidão, então o dinheiro pode ser desembolsado na compra de escravos. Inversamente, o dinheiro em mãos do comprador não basta, de maneira alguma, para tornar possível a escravidão[52].

Na citação referente à nota 49, Caldeira comete outro desatino teórico que chega a beirar as rais da desonestidade intelectual. Encerra a citação referida no ponto em que Marx afirma que o caráter das relações exteriores de intercambio entre as comunidades penetra na vida interior de cada comunidade. Mas, depois dessa frase, o autor de O Capital acrescenta que essa relação quantitastiva de troca “é por enquanto inteiramente casual”[53].

Nessas comunidades, onde a troca ainda não se constituiu na relação social básica e o intercâmbio de mercadorias é inteiramente casual,

o produto aí só se transforma em mercadoria por meio do comércio. Aí é o comércio que leva os produtos a se transformar em mercadorias ...

.

Bem diferente do capitalismo em que é

a mercadoria produzida que, movimentando, forma o comércio[54].

Disso Caldeira nada sabe; não compreendeu coisa alguma da teoria do dinheiro em Marx. Não pode, portanto, fazer uso dessa teoria para criticar CPJ, acusando-o de ter negligenciado o papel do ouro na formação do mercado interno colonial. Seus descalabros teóricos parecem não ter limites, não só contra Marx, como também contra a obra de quem nacionalizou o marxismo no Brasil de forma autêntica e original. Talvez por isso, o seu livro tenha recebido, com todo merecimento, uma acolhida silenciosa por parte daqueles que realmente conhecem Marx e CPJ.

Essa defesa apaixonada que se faz de CPJ pode parecer sectária, como se o autor de EPB já tivesse dito tudo sobre a formação do Brasil e nada do que dissera merece ser julgado por outros estudiosos do assunto. Nada disso! Nem Marx e nem CPJ estão imune à crítica. Mas antes de interpretar e criticar é absolutamente necessário compreender e dar prova de ter compreendido. Sem essa pressuposição, a crítica cai no vazio do silêncio.

Esse é o castigo que merece o autor de História do Brasil com empreendedores por parte daqueles que deram prova de ter compreendido CPJ, antes de criticá-lo.


[1] Caldeira, Jorge. História do Brasil com empreendedores. – São Paulo: Mameluco, 2009., p. 19.

[2] Caldeiras, p. 20.

[3] Caldeira, p. 20.

[4] Caldeira, p. 21.

[5] Caldeira, p. 27.

[6] Caldeira, p. 48.

[7] Caldeira, p. 50.

[8] Caldeira, p. 52.

[9] Cirne-Lima, Carlos. Dialética para principiante. – Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996., p. 126.

[10] Caldeira, p. 161.

[11] Caldeiras, p. 161/62.

[12] Caldeira,p. 78.

[14] Caldeira, p. 79 (Os grifos são por nossa conta). .

[15] Aristóteles. Política. – Editora Universidade de Brasília, 1977.

[16] Uma excelente leitura comentada da política em Aristóteles encontra-se em Wolff, Francis. Aristóteles e a política. – São Paulo: Discurso Editorial, 2001. Ver também Verniégeres, Solange. Ética e política em Aristóteles: physis, ethos, nomos. – São Paulo: Paulus, 1988. – (Ensaios filosóficos).

[17] Aristóteles, p. 93/94.

[18] Caldeira,p. 148.

[19] Caldeira, p. 148.

[20] Caldeira, p. 148/49.

[21] Caldeira, p. 151.

[22] Caldeira, P. 151.

[23] A esse respeito recomendam-se os seguintes livros: Secco, Lincoln Ferreira. Caio Prado Junior: o sentido da revolução. – São Paulo: Boitempo, 2008. Martinez, Paulo Henrique. A dinâmica de um pensador crítico: Caio Prado Jr. (1928-1935). – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Fapesp, 2008. Ricupero, Bernardo. Caio Prado Júnior e a nacionalização do marxismo no Brasil. – São Paulo: Departamento de Ciências Políticas da Universidade de São Paulo; Fapesp; Ed. 34.2000. Rêgo, Rubem Murilo Leão. Caio Prado Júnior: - Continuidade e mudanças no desenvolvimento da sociedade brasileira. – Campinas, SP: Editora Unicamp, 2000. Iumatti, Paulo Teixeira. Caio Prado Júnior: uma trajetória intelectual. São Paulo: Editora Brasiliense, 2007 & Diálogos Políticos de Caio Prado Júnior: 1945. São Paulo: Editora Brasiliense, 1998.

[24] Oliveira, Carlos Alonso Barbosa de. Processo de industrialização do capitalismo originário ao atrasado. – São Paulo: Editora UNESP; Campinas, SP: UNICAMP, 2003., p. 48.

[25] Oliveira, Carlos Alonso Barbosa de., p. 108/109 (os grifos são por nossa conta).

[26] CPJ Apud Martinez, Paulo Henrique. A dinâmica de um pensamento crítico: Caio Prado Jr. (1928-1935). – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Fapesp, 2008., p. 278.

[27] A respeito da discussão do mercado interno em CPJ, ver Secco, Lincoln. Tradução do Marxismo no Brasil:

Caio Prado Junior. In Revista Mouro .....

[28] FBC., p. 10.

[29] EPB., p. 57.

[30] Ver nota nº 22.

[31] EPB. , p. 57.

[32] EPB., p. 57.

[33] Locke, John. Segundo Tratado sobre o governo. – São Paulo: Abril Cultural, 1978., p. 43.

[34] Jefferson, Thomas. O Federalista. – São Paulo: Abril Cultural, 1979., p. XI.

[35] O Federalista.., p. XI.

[36] O Federalista., p. XI-XII.

[37]Marx, Karl. O Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte. – São Paulo: Editora Alfa-Omega. Obras Escolhidas . Vol. I., p.213.

[38] Caldeira., p. 33.

[39] Ricupero, Bernardo Apud Caldeira., p. 33.

[40] Caldeira., p. 64.

[41] Caio Prado Júnior. A revolução brasileiras. – São Paulo: Brasiliense, 2004.

[42] A Revolução Brasileira., p. 16.

[43] Marx, Karl. O Capital: crítica da economia política. – São Paulo: Nova Cultural, 1985., p. 20.

[44] Grespan, Jorge. A dialética do avesso. Crítica Marxista. – São Paulo: Boitempo Editoral, 2002., Revista nº 14., p. 27.

[45] A revolução brasileira., p. 33.

[46] Marx, Karl. À Redação de “Otietchestvienniie Zapiski”, in Fernandes, Rubem César (org). Dilemas do marxismo: a controvérsia entre Marx e Engels e os Populistas Russos. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.,p. 167.

[47] Caldeira., p. 135.

[48] Caldeira., p. 141 (os grifos são por nossa conta). .

[49] Caldeira., p. 140.

[50] Marx, Karl Apud Caldeira., p. 140/41.

[51] O Capital. Livro II, Vol. III., p. 27.

[52] O Capital. Livro II. Vol III., p. 28.

[53] O Capital. Livro I. Vol. I., p. 81/82.

[54] O Capital. Livro III. Vol. IV., p. 234

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