TEMPOS DE ANOREXIA INTELECTUAL
Francisco José Soeres Teixeira[1]
O homem desaprendeu a pensar. Já não lê mais textos demorados, que exijam dele o mínimo esforço para compreendê-los; prefere textos que o dispensem de pensar, pois é mais cômodo que outros o façam por ele, que simplifiquem para ele tudo que demanda tempo para ser compreendido; se possível, que reduzam as teorias sistêmicas, complexas, em meia dúzia de enunciados, que caibam em poucas páginas.
Coisas dos tempos pós-modernos? Antes fosse! Para falar de acordo com Kant, é mais fácil ser menor. Pensar dá trabalho, pois exige o esforço da reflexão, o que só se adquire quem ousa abrir mão dos prazeres comezinhos imediatos da vida, para se dedicar às coisas do espírito e nelas encontrar a “alegria do pensar”[2]. Experimentar tal sentimento é como mergulhar num grande lago, sem pressa de atravessá-lo de um só nado. Somente aqueles que cultivam “a paciência do mergulho”, que vão até as águas mais profundas, encontrarão “as pérolas do encantamento”. Quem ler por obrigação ou para matar o tempo jamais poderá voltar a se encantar com o mundo, que de tão familiar e conhecido, nada lhe espanta.
Quando as pessoas preferem de bom grado os braços da preguiça, a razão e a imaginação são as primeiras a ser banidas da vida dos homens. Hegel já pressentia isto, quando aconselhava os estudantes de Filosofia a tomarem distância do mundo imediato, para mergulhar na íntima noite da alma e assim voltar a enxergar o mundo com outros olhos, para conhecer de forma diferente o que já é habitualmente conhecido e de todos sabido.
Poucos anos depois, Tocqueville batia na mesma tecla. Com a diferença de que, para ele, o descaso com a leitura e a reflexão são um mal-estar permanente das sociedades modernas, que ele as denomina de democráticas. É o preço que se paga, diz ele, quando as formas tradicionais de vida são superadas por um estado social igualitário no qual os homens preferem cultivar certo gosto intelectual depravado, que os habitua a querer o espetáculo à literatura, as emoções do coração aos prazeres do espírito[3]. Implicações de uma forma de sociedade que leva os homens a dedicarem a maior parte de suas vidas aos negócios e, consequentemente, pouco tempo às letras. Por isso,
gostam dos livros obtidos sem dificuldades, que se leem depressa, que não exigem eruditas pesquisas para serem compreendidos. Pedem belezas fáceis, que se entregam por si mesmas e que se podem deleitar de imediato; necessitam de emoções vivas e rápidas, e clarões súbitos, verdades ou erros brilhantes que os arranquem no ato de si mesmos e os introduzam de repente e, como por violência, no meio do tema[4].
Em que pesem as acusações preconceituosas sobre a sua obra, principalmente por parte da intelectualidade de esquerda, Tocqueville não enxerga o presente com os olhos fixos no passado. Simplesmente reconhece que não há mais lugar para o cultivo desinteressado das ciências. Para ele, o capitalismo não hostiliza as ciências para celebrar a ignorância. Não é isso que acontece. O que muda é o fato de não mais cultivá-las por elas mesmas, pois a produção do conhecimento desinteressado, como assim Aristóteles definia a Filosofia, foi substituída pelo conhecimento com aplicação prática imediata. Que o diga o autor da Democracia na América, para quem não é verdade que os homens
que vivem nas eras democráticas sejam indiferentes às ciências, às letras e às artes; cumpre somente reconhecer que eles a cultivam da sua maneira e introduzem, nesse âmbito, as qualidades e os defeitos que lhes são próprios[5].
É assim que ele vê a sociedade americana, onde o igualitarismo social estava mais plenamente desenvolvido. Nela,
os americanos só podem se dedicar à cultura geral da inteligência nos primeiros anos da vida. Aos quinze anos, eles entram numa carreira; assim, sua educação acaba, na maioria dos casos, no ponto em que a nossa começa. Se vai além, dirige-se apenas para uma matéria especial e lucrativa; estudam uma ciência como se abraça um ofício e só se interessam pelas aplicações cuja utilidade presente é reconhecida[6].
Por essa razão, acrescenta que lhes faltam tanto a vontade como o poder para dedicarem ao trabalho da inteligência, as coisas do espírito. Afinal, o desejo universal de bem-estar material e a busca incansável para consegui-lo levam os homens a preferirem o útil ao belo, a cultivarem as artes que servem para tornar cômoda a vida. Para “espíritos dispostos dessa maneira”, comenta que
qualquer método novo que leve por um caminho mais curto à riqueza, qualquer máquina que reduza o trabalho, qualquer instrumento que diminua os custos da produção, qualquer descoberta que facilite os prazeres e os aumente, parece o mais magnífico esforço da inteligência humana. É principalmente por esse lado que os povos democráticos se interessam pelas ciências, as compreendem e honram. Nas eras democráticas, requerem-se em particular das ciências os prazeres do espírito; nas democracias, os prazeres do corpo[7].
Num mundo assim, os homens têm muita curiosidade e pouco vagar. A vida deles, sublinha Tocqueville,
é tão prática, tão complicada, tão agitada, tão ativa, que lhes sobra pouco tempo para pensar. Os homens dos séculos democráticos apreciam as idéias gerais, porque elas os dispensam de estudar os casos particulares; elas contêm (...) muitas coisas num pequeno volume e proporcionam em pouco tempo um grande produto[8].
Homens que dedicam a vida toda a fazer fortuna, não têm mesmo estima pela arte. Se vão ao teatro, vão em busca de divertimento. Não procuram no palco os prazeres do espírito, mas, sim, as emoções vivas do coração; não esperam encontrar uma obra literária e sim o espetáculo; se a encontram, não a entendem; acham-na tediosa e enfadonha. Por isso, se os personagens representados suscitam
a curiosidade e despertem a simpatia, ficam contentes; sem pedir mais nada à ficção, entram imediatamente de volta ao mundo real. O estilo se faz menos necessário, portanto; porque, no palco, a observação dessas regras escapa mais[9].
Tocqueville enxergou longe. Foi contemporâneo teórico de um tempo que ainda não estava plenamente desenvolvido, mas que, de certa forma, já se anunciava. Nisto consiste sua genialidade. Compreendeu que o desenvolvimento das ciências dependeria da sua utilidade prática. A seu modo, percebeu que os homens somente estudam e desenvolvem as ciências como se abraça um negócio lucrativo. Com isso, anteviu um futuro em que nada que não fosse útil teria interesse para a sociedade.
Mas a maior implicação de tudo isso reside no fato de que a aplicação das ciências, para obter lucros, exige sua crescente especialização, a ponto de transformá-la num “saber de migalhas”. Somente assim ela consegue atender às exigências de valorização do capital que requerem especialistas e não filósofos, isto é, homens letrados, com formação humanística. As empresas não precisam de pensadores, de homens sábios. Basta que seus trabalhadores saibam ler, escrever e calcular; nada mais. Afinal, a indústria, como dizia Marx, é a mãe da ignorância. Um paradoxo, se julgado sob perspectiva de um tempo em que a maioria das pessoas interage de forma diária, cotidiana, com alguma tecnologia da informação e da comunicação.
Antes fosse! As pessoas não precisam conhecer como essas tecnologias funcionam; basta-lhes seguir o “script” que cada máquina traz inscrito em seu visor: “pressione este botão, para obter isto”. Errou? É só desfazer a digitação e começar de novo. É até mesmo vantajoso para os donos do capital que as pessoas ajam como autômatos, pois tais tecnologias são os meios pelos quais são geradas, registradas e distribuídas as informações para acumular e apropriar os valores econômicos dos representantes do “senhor capital[10]”.
Mundo de analfabetos é o que é a sociedade da tecnologia da informação e da comunicação. Nela, as pessoas vivem mergulhadas na mais profunda indigência científica, cultural e política que chega a beirar a idiotia. Melhor exemplo não poderiam oferecer os Estados Unidos. Nesse país, celeiro de prêmios Nobel, que comanda o destino do mundo e que já enviou naves para os confins do Sistema Solar, 11% de sua população não sabe o que é uma molécula. E o que é pior: 44% dos americanos rejeitam o darwinismo e 52% ignoram que a terra gira ao redor do sol[11]. Pesquisas realizadas pelo astrônomo norte-americano, Carl Segan, revelam que o norte-americano vive num mundo em que impera a ignorância científica; uma sociedade, comenta ele, dominada pelo analfabetismo científico[12]. De acordo com seus estudos, 95% dos americanos são cientificamente analfabetos, não têm o mínimo conhecimento de como se dá a aplicação das leis da natureza aos processo de produção da riqueza.
Não é só o analfabetismo científico que apavora o mundo. Antes assim fosse! O homem converteu-se num homo ignotus, caiu num estado de anorexia intelectual. Já não lê mais os grandes clássicos da Economia e da Filosofia, que edificaram o pensamento político da modernidade. Prefere os manuais didáticos, que lhe poupam o aborrecimento de pensar. Também não conhece Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Kafka, Drumond, Fernando Pessoa, Shakespeare, dentre outros. Caso tenha oportunidade de se deparar com um livro desses monstros da literatura nacional e mundial, desanima com o tamanho do seu volume; se lê as primeiras páginas, logo cai em desânimo e o abandona por um texto que fale de bruxaria, esoterismo e coisas do gênero.
Em sua crítica ao ensino universitário norte-americano, Allan David Bloom, em 1987, Clossing of the American Mind,
lamentava a desvalorização dos grandes livros do pensamento ocidental e a emergência de uma cultura popular que embalava os novos estudantes, incapazes de buscar um sentimento do filosófico para a vida e movidos apenas pela satisfação de desejos imediatos de conhecimento e sucesso comercial[13].
Bloom não é uma voz solitária. Susan Jacoby, em seu livro The Age of American Unreason[14], reconhece que a substituição da cultura escrita pela cultura do vídeo resultou no decréscimo da capacidade de concentração das pessoas por períodos mais longos. A impaciência para conseguir informações no menor espaço de tempo criou nas pessoas o hábito pela mensagem em vez do texto; as palavras abreviadas, no lugar de sua escrita completa. Tudo que demanda tempo e raciocínio é recebido com a famigerada e batida frase: “não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe”.
Nesse mundo, as pessoas estão a adoecer coletivamente; todas parecem que foram acometidas de anorexia intelectual. Até os professores já não sentem mais prazer em dar aula, pois a maioria dos seus alunos já não quer saber de nada que lhes tome mais tempo do que consegue permanecer em sala e aula; nem ler sabe mais.
Que fazer, quando todos parecem perdidos? Parece que não há muito que fazer. Mas, se é verdade que o passaro de Minerva só levanta vôo quando as sombras da noite começam a cair, quando, portanto, o homem já não sabe o que pensar e dizer e as ciências as artes ainda não sabem o que pensar e dizer, é tempo de o homem voltar a mergulhar na íntima noite de sua alma para voltar a pensar.
Afinal, como diz Aristóteles, a razão é o que o homem tem de mais divino. Se ele a condenou ao desterro, deve e pode chamá-la de volta.
[1] Economista, mestre em Teoria Econômica e doutorado em Educação. Professor da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). E-mail: acopyara@uol.com.br; BLOG: www.fcojoseteixeira.blogspot.com
[2] “O que falta ao jovem de hoje é a alegria do intelecto; a metáfora em forma de poesia, cinema, artes plásticas, teatro, música e literatura. Hoje a leitura está em falta. O jovem não sabe quem é Nietshce nem Foucault, não sabe quem é Kafka, nem Guimarães Rosa. Nunca leu A montanha mágica, de Thomas Mann, nem conhece o poema “A máquina do mundo”, de Drummond. A história é a grande falta para o jovem de hoje. Tudo é história. É preciso ler história, estudar história, fazer história. Estamos fazendo história neste momento e não temos consciência da importância deste momento. História é muito mais isto do que isso, do que aquilo. História é agora. Roland Barthes (2000:8) afirma que entre as ciências antropológicas a soberania pertence à História.
“Ingressar numa universidade é fazer história. É como ingressar num grande lago. Há os apressados que cruzam-no de um nado. Há os que preferem a paciência do mergulho, pois sabem que no devassar das profundezas é onde encontramos as pérolas do encantamento. Viver bem é encantar-se. Infeliz de quem não se encanta com as mais simples das coisas. Um grande filósofo é aquele que se encanta, que se entusiasma até com sua própria sombra. Flaubert, antes de escrever Madame Bovary, era um ocioso, limitava-se a observar o rio Sena, portanto era ocupadíssimo. Quanta filosofia um rio nos transmite. Mas ele também gastava o tempo ou observando a sobrinha comendo geléia, ou observando o comportamento das vacas. Quando se cansava observava as mulheres. Mas tinha outra mania o nosso escritor francês: gostava de burilar frases. Trabalhava uma frase como quem burila um diamante. Assim ele tornou-se escritor. Tenho certeza de que ele concluiu que a escrita literária pode suprir a distância entre o nosso desejo de grandeza e a pequenez do mundo, entre a nossa aspiração à eternidade e a condição de mortal que carregamos” [Lima, Batista de. Alegria do Pensar. Conferência pronunciada aos estudantes de Ciências Sociais, da Universidade de Fortaleza, verão de 2004].
[3] Tocqueville, Alex. A democracia na América: sentimentos e opiniões: e uma profusão e sentimentos e opiniões que o estado social democrático faz nascer entre os americanos. – São Paulo: Martins Fontes, 2000. Livro II, p. 69: "Iria mais longe que meu pensamento se dissesse que a literatura e uma nação é sempre subordinada a seu estado social e à sua constituição política. Sei que, independentemente dessas causas, há várias outras que proporcionam certas características às obras literárias; mas essas me parecem as principais”.
[4] Idem.Ibidem. Livro.II,p. 67.
[5] Idem.Ibidem.Livro.II, p. 53.
[6] Idem.Ibidem. Livro.I, p.61.
[7] Idem.Ibidem. Livro.II, p.51/52.
[8] Idem.Ibidem.Livro.II, p.19.
[9] Idem.Ibidem.Livro.II., p. 96/97.
[10] Dantas, Marcos. A lógica do capital-informação: a fragmentação dos monopólios e a monopolização dos fragmentos num mundo de comunicações globais. – Rio de Janeiro: Contratempo, 1996.,p.15: “Hoje, a grande maioria das pessoas interage de forma diária, cotidiana, corriqueira, com alguma tecnologia da informação e da comunicação. Esta interação não se resume ao mero uso do telefone à passiva audiência de televisão. Também, num entre outros exemplos, o simples ato de sacar dinheiro em um banco num caixa automático é um fato de telecomunicação. As pessoas, em geral, pouco ou nada sabem sobre como funcionam essas tecnologias: do ponto de vista técnico, é claro, não se poderia exigir isto, exceto dos engenheiros que as projetam e operam; mas, e do ponto de vista social mais amplo? Se não são especialistas (e, no Brasil, excetuando-se os profissionais das empresas de telecomunicações, os "especialistas" não passam de meia dúzia de economistas acadêmicos, sendo ainda mais raros sociólogos, historiadores e até mesmo comunicólogos que estudam de fato e seriamente, o tema), as pessoas, mesmo aquelas mais politizadas, pouco ou nada sabem do funcionamento das comunicações, enquanto meio através do qual é gerada, registrada e distribuída a informação, daí se obtendo valores econômicos e sociais que são acumulados e apropriados pelos diversos agentes”.
[11] Revista Planeta. Edição 403, ano 33, abril de 2006., p. 28/29].
[12] Sagan, Carl. O Mundo Assombrado pelos Demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. – São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 20: “Em todo o mundo, existe um enorme número de pessoas inteligentes e até talentosas que nutrem uma paixão pela ciência. Mas essa paixão não é correspondida. Os levantamentos sugerem que 95% dos norte-americanos são cientificamente analfabetos. A porcentagem é exatamente igual à afro-americana, quase todos escravos, que eram analfabetos pouco antes da guerra civil – quando havia penalidades severas para quem ensinasse um escravo a ler”.
[13] Wood Jr, Thomaz. Homo ignobilis. – Carta Capital., Edição de 02/04/08.
[14] Idem.Ibidem.
01/02/2010
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2 comentários:
É inspirador saber que existem ainda intelectuais que ousam "ensaiar". A contemporaniedade suprimiu os grandes vôos da razão, para enquadrá-la em departamentos científicos ultra-especializados. Como se a vida social, a nível do ser mas também do conhecer, não fosse constitutiva de uma dialética totalizante. Claramente, percebe-se no conhecimento científico e filosófico contemporâneo o reflexo distorcido da existência material do homem, existência alienada esta. A divisão social do trabalho, a regência da lei do valor, a produtividade com vistas à cumulação do capital e não à satisfação de necessidades humanas, tudo isto lança reflexos nocivos sobre o pensamento da humanidade. Teixeira acusa o senso-comum; eu acuso mesmo a ciência. Que busca o conhecimento ciêntífico contemporâneo senão a ampliação da base técnica sobre a qual o capital se valoriza reiteradamente? Infelizmente, as ciências humanas haviam de ter uma sorte diferente das ciências naturais, esperava-se. Mas não. As ciências humanas, valendo-se do paradigma epistemológico daquelas, tornaram-se profundamente reacionárias. Hoje, cada departamento produz um conhecimento puramente empírico, os quais não dialogam entre si, não são momentos de uma mesma totalidade. Assim, Teixeira, digo-lhe: ouse ensaiar, ouse pensar!
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