TRAQUINICES DE UM MENINO DA ROÇA
(CONTOS)
FORTALEZA-CEARÁ
VERÃO DE 2003
(I)
MEMÓRIAS FUTURAS DO SENHOR JACINTO TERRA
Nove horas da noite. Um gemido, seguido de um grito abafado, chegam à sala. Incomodado, meu pai sai do sono pesado em que estava mergulhado desde a boquinha da noite. Com má vontade se escancha na rede. Aguça os ouvidos e espera por novo chamado de socorro que não vem. Aborrecido vai até o quarto. Afasta o lençol, que fazia as vezes de porta, e espicha o pescoço como se quisesse apurar a vista para enxergar melhor o que se passava lá dentro.
As chamas amarelas da lamparina, dependurada na parede, eram fracas. Mal dissipavam a escuridão guardada pelas quatro paredes daquele quarto. Do umbral da porta de pano, improviso da necessidade, meu pai vê minha mãe deitada numa rede. Gotas de suor desciam por sua testa, a escorregar pela sua face pálida de dor, até se perderem por entre as dobras ensopadas do lençol que trazia preso entre os dentes.
- Isso é lá hora de sentir dor! Praguejou meu pai com aquele humor sertanejo de dias de lundu.
- Que é que está sentindo, Coque?
Era assim que ele chamava minha mãe... Coque, de Alacoque.
- Por que não falou mais cedo?
Teve o silêncio como resposta. Esperou um pouco mais. Nenhuma palavra.
Trombudo, retorna furioso para a sala. Passa uma das pernas por cima da rede. Escarranchado, segura a cabeça entre as mãos. Aperta-a com força, como se quisesse espremer de dentro dela pragas para jogá-las contra o azar que o incomodava naquela hora da noite.
O desconforto da situação deixou meu pai furioso. Continuou a praguejar baixinho, com medo de que minha mãe pudesse ouvi-lo. Ele sabia que ela não o incomodaria por pouca coisa. Mulher de fibra, afeita à dureza da vida sertaneja, só pediria ajuda na última hora. A dor que sentira, quando ainda estava à beira do fogão, não a assustou. Uma dorzinha de nada lá ia impedi-la de fazer o jantar do seu marido! Mulher cumpridora de suas obrigações, não arreda o pé de seus afazeres por qualquer besteira. Engoliu a dor. Serviu o jantar, lavou os pratos e foi-se deitar, esperançosa de que logo tudo ia passar.
Espera vã. As dores aumentaram de intensidade; iam e vinham como maior freqüência. Coitada de minha mãe! Passou a noite em claro.
Meu pai já havia caído novamente no sono, quando foi de novo acordado com os gemidos de sua mulher. Dessa vez, mais altos. Diabos! Parece que não tinha jeito, não. Ele não iria conseguir dormir naquela noite. O melhor a fazer seria tomar providências para ajudá-la.
E foi o que fez.
Sentou-se escanchado na rede. Segurando-a com as duas mãos, com um supetão, puxou-a contra o peito para poder levantar-se.
De pé, ainda com a rede entre as pernas, tateia com os pés o chão de barro batido à procura de suas currulepes. Encontra-as e calça-as. Pega uma corda de laçar e se dirige para a roça, onde o cavalo e o jumento de botar água comiam tocos de sabugos com palha de milho.
Era um pequeno cercado, pegado com os fundos da casa.
Com a corda numa mão e uma cuia de milho na outra, meu pai se aproxima do cavalo. Chama-o pelo nome, balançando o milho que trazia na cuia. Acostumado a comer ração, o animal não resiste ao chamado pavloviano do seu dono. Sem oferecer resistência, se deixa laçar e ser conduzido até o alpendre da casa.
O alpendre não era lá grande coisa. Parecia mais uma latada. Qualquer pessoa de estatura mediana podia alcançar com a mão o frechal. Era aí onde meu pai guardava algumas utilidades. Entre as telhas e os caibros, ele enfiava as foices e roçadeiras e outros pequenos instrumentos de trabalho. Nunca faltava um bom rolo de sebo de carneiro capado. De mil e uma utilidades, o sebo quente era bom para curar braços e pernas desmentidas, desconjuntadas. Servia também para amaciar cordas de relho, arreios e outras tantas coisas.
Era uma casa de taipa. Tinha o teto acaçapado. O piso era negro, de terra batida; cheio de buracos. As paredes eram negras, rebocadas com barro cru, rachado pelo calor do sol.
Os cômodos eram contados. Nada além do necessário. Duas salas, um quarto de dormir, uma cozinha e uma despensa.
Duas portas de madeira de cedro fornido faziam a comunicação entre a sala principal e o alpendre. Eram portas divididas ao meio. A parte de cima, sempre aberta, parecia mais uma janela. A parte de baixo estava todo o tempo fechada, e com a tramela passada, para impedir que a miuçalha invadisse a casa.
Um corredor estreito, com o piso cheio de buracos, ligava a sala principal à sala de jantar. Do lado esquerdo de quem entrava pelo corredor adentro tinha um quarto escuro, com uma janela localizada bem perto do telhado. Era de lá que vinham os gemidos de minha mãe.
Com a sala de jantar avizinhavam-se a cozinha e a despensa.
A cozinha era pequena. Um jirau fazia as vezes de uma pia de lavar louça. Entre uma refeição e outra, enormes pratos de barros descansavam emborcados, arrodeados de panelas de barro de fundo encardido de tanto levar fumaça.
O fogão de lenha permanecia todo o tempo aceso. O bule de café, sempre à espera de visitas, jamais saía da beira do fogo. Vez por outra, uma labareda, atiçada por um sopro de bochecha ou pelo vento do abanador, lambia suas laterais. Qualquer hora do dia ou da noite, nunca faltava um cafezinho quente.
A despensa era muito escura. Ao fundo, se levantava um paiol de milho que ia até perto do teto. Pegado a uma das paredes laterais, ficavam enormes tubos cheios de feijão, entupidos até a boca. Na parede oposta, sobre um grande banco de aroeira maciça, descansavam sacos de estopa cheios de rapadura preta, arroz, farinha e açúcar.
Ao redor de toda a casa, um enorme terreiro a separava do monturo, onde ficavam o curral das vacas, chiqueiro das cabras e ovelhas e o roçado do cavalo e do jumento de botar água . No meio do terreiro, tinha um mourão de aroeira, fincado firmemente no chão, que servia para amarrar os animais mansos e brabos.
Era assim a casa em que naquela noite minha mãe gemia de dor.
Do alpendre, meu pai podia ouvir a sua respiração ofegante.
Apressa as providências.
Com a sela numa mão e a esteira na outra, meu pai se aproxima do cavalo, que se entretinha fuçando os últimos caroços de milho que haviam sobrado no fundo da cuia. Joga a sela no lombo do animal, puxando-a até perto da garupa. Em seguida, pega o rabo do cavalo. Arruma-o na forma de cacho, passando-o pela laçada do rabicho, como assim fazem a mulheres ao amarrar os cabelos atrás da nuca. Depois afivela as cilhas e, por último, põe as rédeas.
Tudo pronto!
Com passadas largas, meu pai vence o alpendre, atravessa a sala e emboca corredor a dentro. Chega ao quarto onde estava minha mãe e da porta bodeja:
- Estou indo buscar a cumade Medalha, Coque. Quem sabe se ela não dá um jeito nessa dor. As meizinhas dela são milagrosas; se duvidar, cura até quem foi desenganado pelos médicos. Tente se acalmar. Vou num pé e volto noutro.
Ao passar de volta pelo alpendre, pega o chicote de couro cru e o pendura no pulso. Monta e sai em disparada.
Meia hora depois chegava ao seu destino.
- Boa de casa!
Passaram-se alguns minutos, até que uma voz responde lá de dentro:
- Boa de fora! É o cumpade Fuloro?
Era assim que as pessoas mais íntimas chamavam meu pai. As mais letradas dispensavam a vogal u, enrolavam um pouco a língua e o chamavam de Floro; abreviação carinhosa do seu verdadeiro nome: Florentino.
- Sim, cumade, sou eu, Floro.
- Numa hora dessas, cumpade! Que aconteceu?
- Sei lá, cumade. De uma hora pra outra a mulher deu pra gemer. Me disse que estava sentindo uma dor aguda que ia do pé do cangote até o mucumbu. Acho que Coque tá ficando doida. Sabe o que ela me disse, cumade? - Que a dor corria o espinhaço todo, de cima a baixo, fazendo ziguezague como um relâmpago em noite de tempestade. Dá pra acreditar numa coisa dessa?
- Valha-me Deus, cumpade! Espere um pouco. É só o tempo d'eu me arrumar.
Não demorou muito para o vulto de Dona Medalha aparecer à porta.
- Tô pronta, cumpade. Vixe Maria, meu cumpade! Tá um breu só, num tá não? Não é melhor fazer uns fachos?
- Tem razão, cumade!
Meu pai desapeia do cavalo e vai até um monte de lenha. Escolhe dois pedaços fornidos de sabiá ainda maduros. Esfacheia uma das suas extremidades. Em seguida, aproxima um deles da lamparina, até pegar fogo. Guarda o outro, entregando o que estava aceso a Dª. Medalha.
- Pé na estrada, cumade! É um bom pedaço até lá em casa... É quase uma légua de caminhada! Além disso, cumade, choveu muito. O caminho deve estar muito liso. Cuidado para não escorregar ou meter um pé num buraco.
- Se preocupe não, cumpade! Tô acostumada a andar por essas veredas. Conheço como a palma da minha mão. Vum bora.
À frente do cavalo, Dona Medalha caminhava com pressa. O caminho estreito, cheio de grotas e buracos não os deixava andar lado a lado. O jeito era seguir um depois do outro, enfileirados como patinhos atrás da mãe.
Quando o último facho chegava ao fim, Dona Medalha e meu pai botavam o pé no terreiro de casa.
Do aceiro Dona Medalha anuncia sua chegada. Grita:
- Cheguei, cumade Alacoque!
Apressa os passos. Esbaforida, chega ao quarto de minha mãe. De tanta dor, seu rosto pálido lembrava uma flor de algodão. De imediato diagnosticou a dor de minha mãe. Com ares de dona da situação, volta-se para meu pai e grita:
- Põe a chaleira d'água no fogo, cumpade. Escalde a bacia grande bem escaldada. Vou precisar dela.
Eram os preparativos para esperar a minha chegada.
Cheguei às quatro horas da manhã. Demorei um bocado. Desde a boquinha da noite que eu anunciava a minha visita. Minha mãe foi quem não levou muito a sério os beliscões que sentia no espinhaço de vez em quando.
Quase morri por falta de ar. A desgraçada da Dona Medalha puxava-me pela cabeça, com os dois polegares pressionado as minhas narinas. Só consegui respirar direito, quando ela me enrolou nos cueiros. Foi, então, que senti pela primeira vez um cheiro de terra molhada; cheiro de prenúncio de inverno batendo à porta dos sertanejos. Não me contive e gritei para mim mesmo:
-Ah, agora sim! Já sinto melhor o cheiro da terra molhada.
Mal terminei de concluir meus pensamentos, ouvi os berros de alegria da comadre Medalha:
- É menino, cumade! Como ele vai se chamar?
- Jacinto, Jacinto Terra. É o sobrenome do meu pai, cumade. Tenho fé em Deus que ele vai ser um grande homem. Vai ser a salvação da família! Vai pra cidade estudar pra virar doutô e tirar os irmãos da roça. Isso aqui é lá vida de gente!
A conversa de minha mãe com sua comadre deixou-me preocupado. “Será que ela estava certa? Seria minha sina ir embora do sertão, virar doutor e voltar para tirar meus irmãos da roça?” pensava enquanto ela continuava a prosear. Resolvi, então, dar uma rápida vasculhada no meu futuro. Ela estava certa, sim. Mas não poderia adivinhar que tinha muitas pedras no caminho. Comecei a chorar, não sei se por causa do corte do meu umbigo, que Dona Medalha acabara de jogar fora, ou se pelo que me esperava. Na dúvida, resolvi parar de pensar no futuro. Dói menos...
(II)
ESTRAGOS TEOLÓGICOS DE UM PEIDO
Ninguém nasce crente nem tampouco ateu. Nenhuma pessoa vem ao mundo com um espelho, muito menos como um filósofo fichtiano: eu sou eu. O que cada um é, faz, ou deixa de fazer, depende do meio social em que foi criado. Se nasce no seio de uma família religiosa, é quase certo que será um deles. Mas, se foi educado para acreditar que todos são feitos unicamente de matéria, sua propensão é a de imaginar que a vida nasce da terra; não vem dos céus – não resulta da criação de Deus.
Essa determinação social nunca é absoluta. Um cristão fervoroso pode vir a se tornar um ateu intolerante, ou vice-versa. Conheci, nos meus tempos de faculdade, muitos marxistas aprendizes de manual, que afirmavam que Deus não existe. Aprenderam com o catecismo marxista que o homem é feito de matéria, não produzido pelo sopro divino. Tempos depois, vi esses mesmos ateus de outrora de terço nas mãos. Desiludiram-se com as lições do mestre e, agora, pedem desculpas pelo próprio passado. “Acreditávamos no comunismo, mas agora ...”. Conheci também cristãos, que nunca haviam duvidado da existência de Deus, terminarem a vida perguntando se realmente eram descendentes de Adão e Eva.
Comigo, as coisas aconteceram de modo muito diferente. Meus pais eram de uma família temente a Deus. Todas as noites recitavam o terço, pedindo a Sua proteção e alguns pequenos favores: bom inverno e muita fartura. Sem dúvida, uma troca justa. Afinal, se Deus precisa ser louvado, é mais do que justo recompensar aqueles que o fazem.
Assim, fui educado. Cheguei até mesmo a fazer planos para estudar em algum seminário e virar padre. Pensava que assim poderia intermediar, melhor, os pedidos dos meus pais junto ao Pai Celestial.
Felizmente, Deus decidiu que não me queria como seu representante na terra. Para cumprir seu desígnio, fez meus pais me mandarem passar uma temporada longe de casa. Começava, aí, a minha conversão em ateu. Foi até bom porque pude economizar caminho e tempo: não precisei esperar pela idade apropriada para ler as teorias materialistas, como assim fizeram meus amigos marxistas arrependidos. Aprendi tudo sozinho; contei tãosomente com os arrimos da experiência.
É disto que trata essa pequena história, que começa quando eu estava entrando na idade buliçosa da puberdade. Época em que meus pais me mandaram passar uma temporada com a minha avó materna; lá pelas bandas da chapada do Araripe. Era para desasnar, pois até então não sabia fazer um ó com uma quenga.
Viajei com a minha mãe para Barbalha, município onde ficava a casa em que eu ia passar quase dois anos de minha vida. Fomos de trem até a cidade de Crato. Daí pegamos um ônibus de linha até o povoado de Santa Cruz. Pernoitamos na casa de um conhecido, e no dia seguinte chispamos para o sítio da minha de avó. Era uma casinha de taipa, coberta com folhas de palmeiras, cercada de plantações de andu.
Foi aí que conheci os meus primos por parte da minha mãe. Até então, só conhecia os do sertão, os da parte de pai...
Tempos de traquinices ... Tempos de descrenças.
... Minha avó morava com uma moça velha, de nome Vicença. Devia ter entre quarenta a cinqüenta anos de idade. Vitalina assanhada. Todas as tardes ficava horas e horas a se balançar em sua cadeira de balanço, fingindo que estava dormindo. Levantava a saia até a altura dos joelhos, e abria as pernas. Era para a meninada ficar espiando.
Um dia resolvi bulir com ela. Chamei os meus primos e fomos olhar o fingimento da Vicença. Toquei no braço da cadeira e balancei para ver se ela acordava do seu sono hipócrita. Nada! Desci a mão até suas pernas. Nada de novo. Ela continuava de boca aberta, se fazendo que estava dormindo. Resolvi então soltar as rédeas da minha afoiteza. Peguei a barra de sua saia e levantei até perto da sua cintura. Bem devagar, para que ela pensasse que acreditávamos em sua encenação safada. O fundo de suas calçolas, amarelas de encardida, apareceu. Apalpei novamente as suas pernas e deixei minha mão escorregar por entre suas coxas. A descarada continuava fingindo.
Fiquei mais afoito. Repeti o movimento de carinho. Desta feita deixei que minha mão tocasse em sua xoxota. A fingida abriu as pernas ainda mais. Foi então que tive a certeza de que ela queria levar adiante aquela safadeza. Não esperei mais: enfiei o dedo maior de todos em sua vagina chorosa e ardente de desejos reprimidos. Massageei o seu ponto fraco, até sentir um líquido quente descendo por entre as suas pernas.
A esculhambação chegou ao fim quando a fingida se mexeu na cadeira. Não sei se para continuar o gozo, ou para pedir que eu parasse. Vagarosamente, tirei o dedo de dentro de sua vagina e abaixei a sua saia. Foi então que percebi alguns pigmentos brancos na cabeça do meu dedo. Levei-o ao nariz. Senti engulhos. Aquele bicho tinha um cheiro horrível; de bacalhau ardido.
Saí dali correndo, direto para a beira do rio para lavar o dedo com sabão e areia. Antes, queria que os meus primos experimentassem os efeitos da nossa estripulia. Passei o dedo em suas ventas. Ficaram todos engulhados com o cheiro.
-Eco! Eco! Como é que os homens gostam dessa coisa nojenta?
Nunca mais bulimos com a Vicença. Coitada! Jamais iria gozar de novo na vida. Foi a primeira e última vez que pobre teve prazer.
No meio dessa perdição toda só se salvava a minha avó. Aos meus olhos, ela era uma verdadeira santa. Vivia rezando. Ao redor de sua cintura, um enorme rosário adornava suas vestes. Seus vestidos eram quase todos iguais: brancos com bolas azuis, com dois grandes bolsos nas laterais.
Nunca vi minha avó comendo feijão com arroz. Era sempre o mesmo prato: papa; de manhã e à tardinha. Sua refeições eram feitas na cozinha. Aí, ela pegava o seu prato de papa, e o esvaziava pelas beiradas. Quando terminava, levanta-se e rezava um terço inteiro. Nunca vi uma pessoa rezar tanto. Só podia ser santa. Era assim que eu a via.
Guardei essa imagem de minha avó até o fatídico dia em que ela mostrou sua fraqueza humana. Aconteceu na refeição da tarde. Depois de comer o seu manjar do céu, levantou-se e foi para os fundos da casa, como fazia de costume. Neste dia resolvi segui-la. De longe, para que ela não percebesse. Parei a uma certa distância. Vi quando ela meteu a mão no bolso para pegar o seu rosário. Parada ali, de frente para o pôr do sol, parecia uma santa. Os raios do sol, envolvendo todo o seu corpo, desenhavam uma silhueta dourada, parecida com as que eu via nos retratos dos santos, que ela tinha pendurados nas paredes de sua casa. Corri para abraçá-la. Quando estirei os meus braços para abarcar a sua cintura, ouvi um som estrondoso saindo da sua bunda. Minha avó acabava de peidar.
Minha descoberta acidental me deixou estatelado. Por alguns segundo, um turbilhão de coisas passou pela minha mente. Me lembrei das safadezas da Vicença, dos peidos do meu pai se balançando na rede do alpendre e escarrando no chão, dos arrotos e dos peidos dos meus irmãos. Todo mundo peidava. Até os bichos. Minha avó não era diferente. Ela também peidava.
Quando me refiz do susto, dei meia volta e entrei em casa. Jurei que nunca mais iria acreditar em santos. Muito menos na força da reza. Nunca tinha visto ninguém rezar peidando. Decidi que o melhor era mesmo não acreditar em nada do que nos ensinava a religião. Nem mesmo em Deus.
(III)
BICHO DO MATO
Aos dez anos de idade fui estudar na cidade, logo na capital do Estado. Até então nunca tinha saído do sertão. A única cidade que conhecia era um pequeno povoado, que cabia dentro dos olhos de qualquer observador. Fui morar com uma família amiga dos meus pais, que nunca tinha visto na vida. Mas isso não importava muito. Afinal, vim ao mundo para virar doutor, fazer fortuna, cuidar dos meus irmãos e tirar meus pais daquela vida miserável da roça.
Ao chegar na cidade grande, fiquei atordoado. Sentia-me igual a um bicho acuado. Luzes acesas por toda parte. Um ruge-ruge de gente de dar até agonia. Tudo era muito esquisito. As pessoas falavam diferente da minha gente. Eram cheias de finuras. Comportavam-se de um modo muito estranho. Comiam de garfo e faca. Andavam arrumadas, de sapatos ... bem vestidas. As ruas, entupidas de carros, pareciam mais formigueiros. Nada do meu sertão. Não tinha cavalo nem rios para tomar banho. Não tinha coalhada adoçada com raspa de rapadura. Não tinha nada das coisas com que eu estava acostumado e de que gostava.
Era outro mundo. Eu vivia assustado. Tinha medo até dos meninos mofinos, magricelas, aqueles que eu podia fazer lamber o chão apenas com uma tapa no pé do ouvido. Vivia com o coração no pé da goela. Tinha medo de tudo: dos meninos, dos carros, das pessoas... de fazer as coisas erradas, de me perder e não saber mais voltar pra casa. Às vezes ficava imaginando que se uma coisa dessas acontecesse, eu nunca mais iria ver de novo o meu sertão. Só de pensar, um calafrio percorria meu espinhaço do cangote até o mucumbu. Era um tremelique de ficar com as pernas bambas
Foi um tempo de muita dor. Comparando-me com os meninos da cidade, eu me sentia inferior; como um bicho assustado, preso numa arapuca. As brincadeiras eram pesadas. Mangavam das minhas roupas, das minhas alpercatas, do meu jeito banzeiro de andar.
- Não tem nada, não. Um dia ainda pego um filho de uma égua desses lá no meu sertão. Quero ver como ele vai se arranjar em cima de um cavalo arisco. Com certeza deixaria seu couro espichado nos espinhos do cipoal de sabiá. Aí, queria ver se ainda se atreveria a me chamar de pangaré?
Pensamentos mais bobos esses! Pelo menos, serviam-me de arrimo contra os vexames que sofria na cidade grande.
O mais humilhante deles aconteceu no dia em que fui brincar de bola com os meninos da rua em que morávamos. Fomos jogar num campo de areia pesada. As traves eram formadas por dois grandes pés de benjamim. Como sempre, eu deveria ir para o gol. Não precisa nem dizer o porquê! No meio da partida, um menino do time adversário passa por todo mundo e avança em minha direção. Quanto mais se aproximava, maior ia ficando. A cada passada que dava, podia ouvir o barulho de suas bolotas balançando dentro do seu escroto. Parecia mais o cavalo marchador do meu pai. Adorava vê-lo passeando em sua montaria, todo faceiro, pelos terreiros da casa. Todas às tardinhas, costumava montá-lo. Dizia que era para treiná-lo. Era uma verdadeira orquestração de sons e cores. Os cascos batendo contra os pedregulhos arrancavam faíscas do chão. Dos buracos das ventas saía um nuvem de fumaça quente. A cada baforada, ouvia-se o sopro de suas narinas se abrindo e se fechando. De suas virilhas, vinha um som oco de seus testículos batendo contra as paredes internas de suas coxas, ploc, ploc, ploc...
Passado aquele lampejo de memória, voltei à realidade. Lá vinha o menino, carregando a bola em minha direção. Suspendia-a do chão areoso, como se os seus pés fossem uma pá. Um medo enorme foi tomando conta de mim, a ponto de me deixar praticamente paralisado no meio do gol. Foi então que ouvi a gritaria dos meninos: "sai pangaré, sai, sai..." Não esperei duas vezes: corri para fora do campo.
Foi a minha desgraça:
- Pangaré, seu filho da puta, é pra fechar o gol, não pra deixar o gol. Parece que é burro!
Com um sorriso amarelo e morrendo de vergonha, voltei pro campo; peguei a bola e a devolvi para os meus companheiros de time. Só então compreendi o uso que faziam daquela palavra. O sentido era outro: atirar-se aos pés do atacante, fechar o gol como se diz na gíria do futebol.
A duras penas fui aprendendo a viver na cidade. A família com quem eu morava não tinha muitas posses. Para remediar as coisas, fui ser coroinha. Roubei muita hóstia. Com medo de castigo, tinha o cuidado de pegar somente aquelas que ainda não tinham sido benzidas. Mas eu não só safava o sangue e o corpo de Cristo. Surrupiava também uma parte das esmolas que eu arrecadava nas missas e nas quermesses. A fome faz cada uma... Por isso, pensava: o Filho do Homem lá de cima não iria se importar com esses pequenos furtos. Se Ele realmente existe, não iria se incomodar com isso. Coisas bem piores do que essa fiz nos tempos em que fui morar com minha santa avó. Nem por isso fui castigado. Como poderia sê-lo se a mãe de minha mãe rezava peidando?
(IV)
FRUSTRAÇÃO
Isidoro é um personagem do romance Caetés, de Graciliano Ramos. Sujeito ensimesmado, gabava-se de ter a gramática na ponta da língua. Sua profissão de jornalista lhe exigia cuidado com o idioma. Um dia, quando redigia uma notícia sobre os “sublinhados dotes” espirituais da senhorita Josefa Teixeira, filha de uma abastado comerciante da cidade, Vitorino Teixeira, assim escrevia.
“Deu-nos o prazer da sua encantadora visita a senhorita Josefa Teixeira, dileta filha do abastado comerciante e nosso particular amigo Vitorino Teixeira, que nos encantou em deliciosa palestra com os sublinhados dotes do seu espírito”.
Cheio de suficiência, Isidoro atirou ao ouvido de João Valério sua obra prima, com um pedido de resposta:
“- Este sublinhados aqui não está mau, hem?”
Coitado! Se soubesse o que o aguardava, não teria se deixado levar pela embriaguez momentânea de sua vaidade. As alfinetadas que recebeu de João Valério deixaram-no desapontado e perplexo: descobriu que não sabia escrever. E não sabia mesmo. Sem ser direto, talvez para não acabar de uma vez só com o delírio literário de Isidoro, e, assim, causar-lhe uma profunda depressão cognitiva, João Valério respondeu:
“- Está ótimo. Está igual ao Camões. Mas como você fez, parece que a conversa foi com o Vitorino.
“- Ora essa! Realmente, exclamou Isidoro desapontado. Desmanchar tudo!
“- Não é preciso, sussurrou Padre Atanásio, que se acercara, lera o período. Deite um ponto no Vitorino Teixeira, corte o que e meta depois A visitante. Pronto. A visitante sem virgula, é melhor sem vírgula.
“Louvei sinceramente a inteligência de Padre Atanásio e aconselhei também:
“- É bom suprimir o encantou, que já há uma encantadora atrás. Ponha cativou, fica esplendido. E a senhorita, risque a senhorita para não rimar com visita. Escreva D. Josefa Teixeira, como nós chamamos. Deixe a senhorita para a outra”.
Que o padre Atanásio é muito inteligente não há como negar, mas, o João Valério, este, sim, é um verdadeiro artesão da palavra. Lapidou o texto do Isidoro. Retirou as embromações lingüísticas, as lorotas que só servem de enchimentos, e deixou o absolutamente necessário. O texto ganhou leveza e simplicidade. Ficou bonito e gostoso de se ler.
Ah, quem me dera ser um João Valério da vida! Mas, são tão poucos. Hoje, quase não mais se encontram escritores como ele. Imitá-lo é quase impossível; mas, não podemos deixar de tentar. Se não conseguirmos, resta o consolo de ler sua obra e com ela aprender o que gramática nenhuma ensina.
Por falar nisso, lembrei-me de rever a introdução que abre este texto. Senti vergonha. Não tinha percebido que cometera coisas semelhantes as que praticara Isidoro. Como ele, não encontrei erros gramaticais, o que me serviu de consolo. Mas, o estilo rimado do texto me deixou bastante desapontado, frustrado, para não dizer com uma ponta de inveja de João Valério. O primeiro parágrafo foi feito de uma rima só: exigia, notícia, dia, redigia e escrevia.
Que coisa horrível! Que estilo estropiado! Será que não tem conserto? Decerto que tem. Mas, como não posso contar com a ajuda direta de João Valério, resta-me valer de suas lições, para tentar reescrever o texto; assim:
Isidoro é um personagem do romance Caetés, de Graciliano Ramos, que trabalhava no jornal A Semana. Sujeito ensimesmado, vivia a gabar-se de ter a gramática na ponta da língua. Um dia, ao redigir uma notícia sobre os dotes espirituais da senhorita Josefa Teixeira, filha de uma abastado comerciante da cidade, escreveu...
E agora, Graciliano, perdão, João Valério, melhorou? Pelo menos desapareceu o excesso de rima com os “ia”, que deixavam o primeiro parágrafo uma cantiga de grilo.
05/12/2008
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