A CRISE COMO ELA É
Francisco José Soares Teixeira[1]
Num sistema de produção em que toda a conexão do processo de reprodução repousa sobre o crédito, quando então o crédito subitamente cessa e passa a apenas a valer pagamento em espécie, tem de sobrevir evidentemente uma crise, uma corrida violenta aos meios de pagamento. À primeira vista, a crise toda se apresenta, portanto, apenas como uma crise de crédito e crise monetária. E de fato trata-se apenas da conversibilidade das letras em dinheiro. Mas essas letras representam em sua maioria compras e vendas reais, cuja extensão, que ultrapassa de longe as necessidades sociais, está, em última instância, na base de toda crise. Ao lado disso, entretanto, uma enorme quantidade dessas letras representa negócios meramente fraudulentos que agora vem à luz do dia e estouram; além de especulações feitas com capital alheio, mas fracassadas; e, finalmente, capitais-mercadorias desvalorizados ou até invendáveis (...). Todo esse sistema artificial de expansão forçada do processo de reprodução não pode naturalmente ser curado pelo fato de um banco, por exemplo, o Banco da Inglaterra, dar a todos os caloteiros, em seu papel, o capital que lhes falta e comprar todas as mercadorias desvalorizadas a seus antigos valores nominais. De resto, tudo aparece aqui invertido, pois nesse mundo de papel o preço real e seus momentos reais nunca aparecem, mas apenas barras, dinheiro metálico, notas, letras de câmbio e papeis de crédito. Essa inversão aparece sobretudo nos centros em que se concentram todo o negócio monetário do país, como Londres; todo o processo se torna incompreensível; já menos, nos centros de produção.
(O Capital – SP. Nova Cultural, 1988. Livro III, Vol. V. p. 21/22).
1. A CRISE E SEU CONTEXTO HISTÓRICO
A atual crise é bem diferente da crise de 1929. Hoje, crise abrange todo Planeta terra, pois ocorre num momento em que a economia foi mundialmente unificada pelo capital. Além disso, essa crise vem acompanhada por uma profunda crise de alimentos, de desemprego e climática.
Mas a diferença básica entre a crise de hoje e a de 1929 é o fato de que esta acontece num estágio de evolução do capitalismo em que o desenvolvimento das forças produtivas perdeu ser caráter civilizador. Do Manifesto Comunista, passando pelos Grundrise até chegar à sua obra mais acabada, O Capital, são inúmeras as passagens em que Marx se refere à missão civilizadora do capital. Para não tomar muito tempo dos senhores e senhoras, permitam-me citar uma passagem dos Grundrisse em que aparece claramente essa missão progressista do capital. No volume I dessa obra, Marx diz que se deve ao capital a criação da
(...)sociedade burguesa e a apropriação universal da natureza, como os próprios vínculos sociais dos membros da sociedade. Daí a grande influência civilizadora do capital; a produção de um estágio social, em comparação com o qual todos os anteriores aparecem como meros desenvolvimentos locais da humanidade ou idolatria da natureza. Pela primeira vez, a natureza se converte puramente em objeto para a humanidade, em pura matéria de utilidade; cessar de ser conhecida como um poder para si mesma; e a descoberta teórica de suas leis autônomas aparece meramente como um ardil para subjugá-la às necessidades humanas, seja como objeto de consumo, seja como meio de produção. De acordo com essa tendência, o capital tende para além das barreiras nacionais, tanto quanto da veneração da natureza e da satisfação tradicional, confinada, complacente e incrustada nas necessidades existentes, bem como da reprodução dos velhos estilos de vida. O capital é destrutivo ante tudo isso e constantemente o revoluciona, rompendo todas as barreiras que impeçam o desenvolvimento das forças produtivas, a expansão das necessidades, a diversificação do desenvolvimento da produção e a exploração e o intercâmbio das forças naturais e espirituais (Grundrisse, Vol. I., p. 362).
A força que anima esse caráter progressista e revolucionário do capital, nas palavras de Marx, é a fome de dinheiro. Movida unicamente pelo interesse de tudo fazer se transformar em mercadorias, a burguesia cruzou fronteiras, atirou-se mar adentro e conquistou a América, a África, a China... Tal qual Midas, fez do mundo todo numa imensa feira comercial; tudo em que tocava convertia-se em dinheiro. Tudo e todos, a quem encontrava pela frente, eram apanhados e atirados ao redemoinho do mercado mundial. Assim, a burguesia destruiu todos os laços naturais que prendiam os homens uns aos outros, “para deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do pagamento à vista” (Manifesto Comunista. Ed. Boitempo, p. 42).
Essa “fome devoradora” por mais-trabalho, levou o capital a revolucionar o processo de trabalho a ponto de transformar o sistema de maquinaria numa espécie de força de trabalho intelectual, no sentido de que esse novo sistema não necessita de quase nenhum trabalho para ser vivificado, isto é: para fazê-lo operar, funcionar. É o que pensa Marx em suas prospecções sobre o desenvolvimento do capitalismo. Segundo ele, a fome do modo de produção capitalista por mais-valia poderia levá-lo a um estágio de desenvolvimento a ponto de transformar o trabalhador, da condição de apêndice da máquina que era até então, em supervisor e controlador do processo de produção (Ver Marx, Karl, Grundrisse, Vol. II., p. 228).
Nesse estágio de desenvolvimento,
o roubo de tempo e trabalho alheio, sobre o qual se funda a produção atual, aparece como uma base miserável (...). Tão logo o trabalho em sua forma imediata deixa de ser a grande fonte de riqueza, o tempo de trabalho deixa de ser a sua medida e por isso o valor de troca deixa de ser a medida do valor de uso ... (Grundirsse. Vol. II., p. 228).
Nesse contexto, estariam postas
as condições para fazê-lo (isto é: o sistema capitalista) explodir (Grundrisse. Vol. II, p. 229).
As especulações teóricas de Marx sobre o futuro do capitalismo tornaram-se realidade. Obviamente, as transformações operadas no processo de produção não levaram a implosão do sistema, no entanto, hoje, o capital opera no limite em que a substituição do trabalho vivo por trabalho morto (máquinas, equipamentos, instalações, etc) é cada vez mais difícil. Como assim? - Marx explica: a substituição de trabalhadores por máquinas só vale a pena se a economia com capital variável (gastos com pagamento da força de trabalho) for maior do que as despesas realizadas com capital constante (isto é: com a compra de máquinas, equipamentos, etc).
Quando o capital atinge aquele limite, e tudo indica que ele já o alcançou, sua missão civilizadora chega ao fim. Com efeito, a partir de meados da década de 1970, o capital inaugura um novo período de acumulação em que não há mais desenvolvimento. O crescimento econômico não se faz mais por meio de criação de novos mercados e por incorporação de novas áreas geográficas ao mercado capitalista, uma vez que o mundo todo já se transformou numa imensa feira comercial. Acumular não significa mais criar novas empresas, mas, sim, fundir as existentes em novas unidades cada vez maiores. Com efeito, segundo dados de François Chesnais (Mundialização do Capital, SP:Xamã, 1996), mais de 66% dos investimentos realizados atualmente, em todo o mundo, são de fusão e não mais de criação de novas plantas industriais. Não sem razão, pela primeira vez na história do capitalismo, o crescimento econômico deixa se ser sinônimo de criação de empregos.
Nesse contexto, o capital passa a recriar formas de trabalho que há muito já haviam sido superadas pelo desenvolvimento do capitalismo. Como exemplo, basta lembrar as modalidades de precarização do trabalho, tais como trabalho domiciliar, por tempo parcial, flexibilização contratual, terceirização, trabalho escravo, etc. Daí a ofensiva do capital contra as leis de proteção ao trabalho criadas pelo Estado do Bem-estar social e por seus “irmãos” da periferia capitalista: uma espécie de simulacro dos Estados social-democratas.
São essas as condições históricas em que a crise bate à porta de todas as economias do Planeta. Desde 1997, com a queda astronômica das bolsas asiáticas, ela anuncia a sua chegada. Mas, somente, agora, em 2008, é que o mundo se dá conta de que ela veio para ficar; desta vez, sem deixar ninguém de fora, nem mesmo aqueles países que se “gabam” de ter reservas cambiais suficientes para enfrentá-la.
Mas, qual é mesmo a natureza dessa crise? Trata-se de uma crise unicamente financeira, ou ela tem outras determinações?
O contexto em que ela surge, já se conhece: acontece num período em que o capitalismo, ao que tudo indica, esgotou suas possibilidades históricas de conjugar acumulação com desenvolvimento. Mas isso não é suficiente para compreender sua real natureza. É preciso, agora, se voltar para a análise de suas causas, objeto de que se ocupa o restante deste texto. Espera-se que os senhores e senhoras tenham um pouquinho mais de paciência, pois devem estar ansiosos por falar.
2. QUE CRISE É ESSA?
2.1. CRESCIMENTO SEM EMPREGO
É uma crise do capital, isto é, produto de suas contradições internas. Com a diferença de que não guarda mais semelhanças com as crises anteriores, pois acontece num estágio em que o desenvolvimento do capitalismo parece ter atingido seus limites históricos, no sentido de que o crescimento econômico não se faz acompanhar, necessariamente, de um crescimento no emprego. Ninguém melhor do que Celso Furtado para legitimar essa tese. Ao apagar das luzes de sua existência, reconhece que
hoje, mesmo na Europa, não se vê horizonte para uma relativa harmonia baseada no pleno emprego. Para manter o nível de agressividade das economias capitalistas tornou-se necessário abandonar as políticas de emprego. O aumento de produtividade se desassociou de efeitos sociais benéficos. Esta é a maior mutação que vejo nas economias capitalistas contemporâneas (Entrevista concedida ao CORECON de São Paulo).
Furtado não é uma voz isolada. Juan Somavia, diretor geral da Organização Internacional do Trabalho (OIT), não acredita que o crescimento econômico possa gerar postos de trabalho suficientes para acabar com o desemprego. Segundo ele, em 2004, a taxa de crescimento da economia mundial, que foi da ordem de 5,1%, resultou apenas num aumento de 1,8% no número de pessoas ocupadas. Mas isso ainda não traduz toda questão. Até 2015, argumenta Somavia,
cerca de 400 milhões de pessoas se incorporarão à força de trabalho. Isto quer dizer que mesmo que se consiga um crescimento acelerado do emprego para produzir 40 milhões de postos por ano, a taxa de desemprego baixaria apenas 1% em 10 anos”.
No Brasil, as perspectivas para o trabalho são igualmente desanimadoras. Estudos realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o mercado de trabalho no Brasil está encolhendo. Uma pesquisa realizada por essa instituição, junta à indústria automotiva, revela que nos anos 80, para uma capacidade de produção de um milhão e quinhentos mil veículos, este setor empregava 140 mil trabalhadores. Hoje, para uma capacidade de produção de três milhões de veículos, as montadoras empregam apenas 90 mil trabalhadores.
Contra esse estado de coisas, de nada vale fazer exigências morais aos donos do capital; pedir-lhes para que privilegiem o emprego em vez de substituí-lo por maquinaria. Esperança Vã! Pouco importa que sejam bons cristãos, cidadãos exemplares, membros da sociedade protetora dos animais, até mesmo vicejarem odor de santidade, como diria Marx; não, não adiante mesmo, pois em matéria de dinheiro não há boa vontade. Bem mais fácil do que tentar convertê-los em homens de boa vontade, seria pregar o catecismo no inferno. Aí, talvez, algumas almas arrependidas voltassem ao mundo para praticar o bem.
Ora, a alma do capitalista é a alma do capital. Como seu representante, é obrigado a agir de acordo com a racionalidade do capital. E esta é a contradição em processo, no sentido de que tende a reduzir ao mínimo o número de trabalhadores empregado, para poder aumentar a exploração, isto é: extrair uma massa maior de mais-valia. Noutras palavras, para fazer o trabalhador gerar uma quantidade maior de mais-valor, o capital precisa elevar produtividade do trabalho, e só pode fazê-lo introduzindo tecnologias poupadora de mão-de-obra. Por essa razão, a partir de determinada fase do desenvolvimento do capitalismo, o crescimento econômico se faz acompanhar por um aumento absoluto do desemprego.
Mas, qual é mesmo a natureza da atual crise?
2.2. A CRISE DENTRO DA CRISE
Com o fim da segunda guerra mundial, abre‑se um período de expansão e prosperidade econômica em quase todo o mundo capitalista. As economias dos assim chamados países centrais ou industrializados entram num longo ciclo de crescimento, sustentado por uma produtividade crescente, que possibilitou ganhos reais de salários, concomitantemente com aumento dos lucros. Essa congruência entre salário e lucro permitiu ao sistema gozar de relativa estabilidade econômica e de certa harmonia social.
É neste contexto de estabilidade econômica e de pleno emprego que foram organizados e consolidados os mecanismos para a criação dos programas públicos de geração de emprego e renda, de maneira sistêmica, organicamente articulados com um conjunto de políticas macroeconômicas, comprometidas com o crescimento econômico.
Esse ciclo virtuoso de crescimento, com desenvolvimento, teve vida breve. O sistema capitalista global
entrou num período de crise na primeira metade da década de 1970; (...) esse período de crise será de longa duração , não estando a vista o seu fim; (...) suas características são uma taxa mais lenta de acumulação de capital (o que significa, como causa e como efeito, uma taxa de lucro relativamente baixa), desemprego crescente e inflação contínua a taxas muita acima daquelas dos 25 anos anteriores. As flutuações econômicas do tipo conhecido no ciclo econômico continuam durante esse período de estagnação (como ocorreu, por exemplo, durante a estagnação na década de 1930), e choques adicionais e perturbações do sistema (crise dentro da crise) não só são possíveis, mas inevitáveis (Harry Magdoff & Paul M. Sweezy. A crise do capitalismo americano. RJ: Zahar Editores, 1982; p. 81).
Crise dentro da crise! Como isso é possível? Por mais paradoxal que pareça, a crise dentro da crise nada mais é do que o modo como o capitalismo se desenvolve. Como assim? Seu desenvolvimento esbarra constantemente em barreiras criadas pelo próprio capital, uma vez que a produção de coisas úteis para humanidade só é levada a cabo na medida em que se mostre lucrativa para o capital. Se o valor de uso a ser produzido não pode ser realizado como valor de troca, como mercadoria disposta à venda, ele não será objeto de produção e, assim, não poderá satisfazer a nenhuma necessidade humana, por mais importante e necessária que seja. É nesse sentido que Marx afirma que o capital é a sua própria barreira. Sua fome voraz por mais-valia
procura constantemente superar as barreiras que lhes são imanentes, mas só as supera por meios que lhe antepõem novamente essas barreiras e em escala mais poderosa (Idem, Ibidem., p. 180).
Daí a razão da crise de 1929. O capital, livre de regulações legais, criou uma massa de capital-mercadoria bem maior do que o tamanho do estômago do mercado; seu impulso desmesurado, para gerar mais-valia, esbarrou, assim, com sua capacidade de valorização. Para superar essa barreira, a burguesia foi obrigada, pela luta de classes, a aceitar a intervenção do Estado, que se tornou, desde então, estruturalmente imprescindível para a reprodução do capital e da força de trabalho. Mas, essa mesma intervenção, a partir de meados da década de 1970, se transformou numa nova barreira para a acumulação do capital. Para superá-la, os donos do capital lançaram mão dos seguintes meios:
(1) liberalização das finanças, do comércio e do investimento. Assim, o capital destruiu todas as relações políticas surgidas com a crise de 1929; todas as cadeia impostas pela democracia liberal-social do pós-guerra;
(2) privatização das estatais, de modo a ampliar mercados para o capital;
(3) criação, numa escala sem precedente, de formas artificiais de crédito para as empresas, consumo e, sobretudo, créditos hipotecários sem limites. Na verdade, trata-se da criação do que Marx chama de capital fictício, cujo volume desregrado detonou o estopim da crise, que se arrasta desde meados da década de 1070;
(4) Incorporação ao mercado capitalistas de novas economias emergentes, tais como a Índia, China e Rússia.
Mas, esses meios que permitiram o capital prolongar o ciclo de crescimento econômico do pós-guerra, ainda que com baixas taxas de crescimento econômico e com crescimento do desemprego e da inflação; esses mesmos meios transformaram-se, hoje, em novas barreiras para a expansão do capital. O feitiço virou-se contra o próprio feiticeiro, isto é, aqueles meios, utilizados pelo capital para superar as barreiras da acumulação, voltaram contra o próprio capital, desta feita, numa escala mais poderosa.
Eis aí, portanto, a natureza da atual crise. Seu aspecto mais visível, a falência de grandes bancos e a quebradeira das bolsas, é apenas a ponta de um imenso iceberg, que se derrete a cada flutuação econômica. Certamente, o capital deverá superar as novas barreiras criadas por ele mesmo. Mas o que daí vai surgir não traz muita esperança para a classe trabalhadora e os deserdados do consumo. O capitalismo há muito já cumpriu a sua missão civilizadora; perdeu seu caráter progressista e se transformou num sistema predatório. Se o capital nasceu, como diz Marx, “escorrendo sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés”, hoje, mais do que nunca, sua fome por mais-trabalho criou uma multidão de farrapos humanos, só desejada pelas moscas-varejeiras e abutres que sobrevoam os monturos de lixos. Que o diga a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), cujas estatísticas registram um contingente de quase um bilhão de famintos, que amanhece e anoitece sem ter o que comer.
[1] Professor de Economia Política da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e da Universidade de Fortaleza (UNIFOR).
05/12/2008
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