17/06/2008

MARX NO SÉCULO XXI: PREFÁCIO

FRANCISCO TEIXEIRA & CELSO FREDERICO

MARX NO SÉCULO XXI

SETEMBRO-2007

PREFÁCIO

COOPERAÇÃO COMPLEXA E APARÊNCIA “PÓS-MODERNA”

A crítica teórica e a polêmica de idéias não são próprias a épocas como a nossa; antes o são de outras, em que as teorias, as idéias e as opiniões são chamadas pela própria vida histórica a se converterem em força prática dos indivíduos e das classes sociais. Porque os livros não produzem épocas – como parece implícito no enganoso jargão publicitário segundo o qual determinada obra “fez época” –, mas, ao contrário, as épocas é que produzem, por torná-los necessários, seu livros, à primeira vista não pareceria exagerado dizer que nosso tempo não carece deles. Afinal, nos dias que correm, em que se “acabou por fazer desaparecer a opinião pública”,[1] reduzida por isso a simples conceito sociológico, a opinião passou a ser competência dos especialistas autorizados e que falam sem réplica, e que assim se alçam à condição oracular de “formadores de opinião”, e o público simplesmente expecta passivo, consumindo “fatos” e “análises” despachados com a “objetividade” – e, portanto, com a falsidade – de informações, que são ordens a executar.
Neste quadro, a polêmica viva das idéias e o choque de opiniões foram reduzidos à diversidade non opposita dos reiteradores do mesmo, uma verdadeira segunda natureza dos tempos atuais que dá formato desde aos objetos cotidianos do consumo às expressões do desejo sexual, nas quais, também nelas, ainda uma vez, se repõe a mesma lógica perversa da ratio mercantil.[2] Na chamada “alta cultura”, na qual se incluem os trabalhos acadêmicos, em geral nada se passa distintamente: a dissecação dos cadáveres – que podem ser livros de autores mortos ou experiências sociais de sujeitos vivos – se reduz ao confronto hermenêutico entre comentadores e estudiosos. (A vida, contudo, a verdadeira vida está em outro lugar, nos diria ainda agora Rimbaud). Encontra-se aí precisamente a mesma lógica que se expressa no fato de que, no plano político, reina o regime de omertà sobre a possibilidade histórica da superação revolucionária da atual sociedade, no fato de “que todos os que aspiram a governar querem governar o que está aí, com os mesmos procedimentos, e mantê-lo quase exatamente como é”, “que nenhum partido ou fragmento de partido não ensaia nem mesmo simplesmente pretender que tentaria mudar alguma coisa importante”.[3]
É este último fenômeno que, em seu segredo, guarda os mistérios de todos os anteriores. Para que a discussão, o debate, a polêmica, se as palavras e as idéias não encontram fluxo na vida? Já se disse que os homens, portanto também os autores, se parecem mais com sua época do que com seus pais; para o bem e para o mal, o mesmo ocorre com os livros. Portanto, não é preciso dizer muita mais coisa para se compreender por que os livros de crítica social são cada vez mais raros e – para falar na linguagem compreensível por nosso tempo – sem sucesso. De outro modo, tal coisa acontece porque, na seqüência da operação 11 de setembro, seqüência esta que a tornou necessária e que a explica, a contestação anticapitalista internacional da virada do século não prosseguiu, porque as contestações insurrecionais da Argentina e de Oaxaca ficaram isoladas, porque o ludismo contra as máquinas permitidas do consumo mercantil dos incendiares de voitures na França não se transformou em desobediência aberta e sabotagem declarada ao sistema de trabalho alienado; enfim, porque a contestação à atual ordem permanece fragmentada, esta não se constitui ainda numa experiência de comunicação, permanecendo – como sói de ocorrer com a verdadeira vida – clandestina, sem linguagem coerente e adequada.
Contudo, é apressado dizer que épocas que não fazem bons livros não precisam deles; bem pelo contrário, trata-se do inverso. A nossa, tão pobre de crítica – e não só de crítica social, mas de toda e qualquer crítica teórica –, embora não os produza, deles precisa; e de livros que, ao contrário dos dias, sejam honestos e que, ao contrário dos que em sua maioria estão à venda, ajudem a conhecer a realidade e a torná-la novamente criticável. Marx no século XXI é um deles: este é, de fato, um livro necessário. Nele, a polêmica com outros autores não se caracteriza pela busca de uma melhor interpretação de obras, tampouco temos aqui a aplicação de noções ideais a experiências reais ou mesmo a produção de novas noções ideais como candidatas a substitutas de outras mais antigas. Bem pelo contrário, este livro retoma o antigo esforço de subir da terra ao céu, ao invés de aí permanecer ou daí descer. Em outras palavras, ele retoma a crítica social que, em nossos dias, só pode ser – e esta é sua grande tese – a persistência e o desenvolvimento da crítica da economia política, cuja primeira e fundamental expressão teórica a formulou Marx, no conjunto de seus escritos. Sendo a retomada teórica da crítica da economia política sua principal tese, os ensaios que compõem este livro o fazem buscando mostrar, numa polêmica com o pensamento semicrítico, o que este, em seu apego unilateral à aparência do sistema produtor de mercadorias, não consegue apreender, pois lhe faltam, logo de cara, a posição crítica e a “lógica dialética do conflito”,[4] que é a necessária forma teórica daquela posição prática. Afinal, se a dialética está proscrita nos dois lados – o ultra-racionalista e o pós-moderno – do Reno, bem como nos diversos departamentos universitários de ultramar que os espelham, é porque antes de tudo lhes falta a posição conflitual com base na qual as contradições reais da sociedade possam ser adequadamente expressas em sua forma conceitual.[5]
A contracorrente dessa tendência, e instrumentado das categorias dialéticas de totalidade e contradição, Francisco Teixeira, no primeiro desses ensaios, enfrenta teoricamente a ideologia do fim da “sociedade do trabalho”, tal como ela, em expressões distintas, está presente em André Gorz, Claus Offe e Jürgen Habermas. Apresentando descritivamente, com competência e clareza, num primeiro momento, as posições de cada um desses autores, passa em seguida a lhes contra-arrestar com finura teórica e clareza política. Deixa assim claro que a tese de Gorz e Offe, segundo a qual haveria uma perda da “centralidade sociológica” do trabalho no capitalismo contemporâneo tem, logo de cara, uma função política: trata-se justamente de afirmar a perda de importância da luta de classes fabril, da luta de classes no âmbito do trabalho e da produção. Confundindo crise do emprego com crise do trabalho, como observa com argúcia Celso Frederico no segundo ensaio deste livro, Gorz e Offe têm por meta justamente atacar a teoria crítica do valor, formulada por Marx. Com este fim, elaboram uma concepção do capitalismo contemporâneo que vê, na extensão da forma-mercadoria – e, portanto, da dominância do valor e do trabalho abstrato, diríamos nós – a um conjunto mais amplo das relações sociais materiais, aos assim chamados “serviços”, a perda da materialidade do trabalho e a impossibilidade de aí, por conseqüência, haver mensuração quantitativa de tempo de trabalho no mesmo padrão do trabalho industrial; e o fazem justamente quando sua conclusão deveria ser, como parece óbvio, o contrário da que apresenta.
Deste modo, se com sua renúncia à teoria crítica do valor pretende compreender a importância de outros conflitos não situados imediatamente na fábrica, Gorz (e o mesmo ocorre com Offe) termina por não enxergar que na extensão das relações assalariadas, das relações monetário-mercantis, a outros âmbitos do trabalho e do consumo, ocorre justamente a extensão do valor e do trabalho abstrato, o que não destitui, mas, ao contrário, reitera com mais gravidade e agudeza a importância da teoria crítica do valor para a compreensão dos fenômenos do capitalismo contemporâneo; e dentre estes, em primeiro lugar, como Teixeira o demonstra empírica e teoricamente, o aumento da proletarização das relações de trabalho, com o aumento do assalariamento da assim chamada população economicamente ativa, e a aplicação nos tais “serviços” dos mesmos mecanismos de racionalização do trabalho que visam a um aumento de produtividade. Afinal, o que pode significar a necessidade de aumento de produtividade em determinados setores da economia, senão a necessidade de economizar tempo, isto é, tempo quantificável de trabalho, portanto, trabalho abstrato? – é o que argumenta de forma incisiva o autor.
Na verdade, a posição comum a Gorz e Offe tem o objetivo de destituição não apenas da teoria crítica do valor, mas também, de contrabando, do materialismo histórico. Pretendem não apenas mostrar que o trabalho abstrato deixou de ser a categoria central para a compreensão crítica do capitalismo contemporâneo, mas também, como dizem desajeitadamente, que a “categoria sociológica do trabalho” não é mais a determinação central da vida social. Claro que, para a crítica da economia política, não há qualquer relação necessária entre o fato histórico (e não, “sociológico”) do trabalho, como atividade prática produtiva, e a determinação do trabalho abstrato numa sociedade produtora de mercadorias. Ainda que, do ponto de vista da consciência teórica, a compreensão do trabalho como fundamento da vida social só tenha podido se dar numa sociedade fundada no trabalho abstrato, numa sociedade, portanto, que põe em equivalência distintas espécies de trabalhos concretos e, assim, possibilita a compreensão categorial do trabalho em geral, em sua universalidade, não há, contudo, do ponto de vista da própria realidade, qualquer dependência mútua entre a centralidade da categoria do trabalho abstrato nesta sociedade determinada e a centralidade do trabalho na fundação da sociabilidade humana.[6]
No entanto, assim como a Economia Política, a ideologia da perda de centralidade do trabalho abstrato no capitalismo contemporâneo – que busca, com a indicação dessa suposta perda, concluir daí uma destituição ontológica do trabalho na vida social – cai no erro de identificar uma categoria mais abstrata da vida social com uma categoria mais determinada, pois específica de uma forma particular de sociedade. O “esquecimento” da distinção entre esses dois níveis de abstração também constitui, nas palavras irônicas de Marx, “toda a sabedoria dos modernos economistas, que demonstram a eternidade e harmonia das relações sociais existentes. Por exemplo, nenhuma produção é possível sem um instrumento de produção, ainda que esse instrumento seja exclusivamente a mão. Nenhuma produção é possível sem trabalho passado, acumulado, ainda que este trabalho seja simplesmente a destreza concentrada e reunida na mão do selvagem mediante o exercício repetido. O capital é, entre outras coisas, também instrumento de produção, também trabalho passado, objetivado. Em conseqüência, o capital é uma relação natural, geral, eterna; mas o é, se deixo de lado precisamente o específico, o que unicamente converte o ‘instrumento de produção’, o ‘trabalho acumulado’ em capital”.[7] Os atuais inimigos da teoria crítica do valor, pressupondo essa mesma identidade, seguem por um caminho inverso e, por modus tolens, concluem: se o trabalho abstrato perdeu sua dominância social no capitalismo contemporâneo, então se perdeu aí também a “centralidade sociológica do trabalho”. Em seu gesto, contudo, terminam por abdicar daquilo que, apesar de sua falta de rigor, era ao menos central na Economia Política clássica: a teoria do valor-trabalho.
Se todas as sociedades anteriores se produziram e reproduziram no e pelo trabalho humano, se uma sociedade emancipada no futuro se produzirá e reproduzirá no e pelo trabalho humano, não houve antes nem haverá depois, contudo, a duplicação e a dominância do trabalho abstrato sobre esses trabalhos concretos aí referidos. Pelo mesmo motivo, não é pela determinação fundadora do trabalho na sociabilidade humana em geral que o proletariado e suas lutas de classes podem exercer, na sociedade capitalista, uma atividade revolucionária, pois nas diversas sociedades de classes anteriores à sociedade capitalista, todas elas fundadas no trabalho, nem sempre coube aos produtores diretos a potência revolucionária que, determinada pelas próprias relações de produção, agora cabe ao proletariado; antes é somente pelas próprias características das relações de produção capitalistas, relações estas fundadas no trabalho abstrato e, portanto, na produção industrial do valor, que se constituem as potencialidades dos produtores diretos aí implicados, a saber, aos proletários modernos. O problema teórico que aqui se apresenta – e, portanto, também em face da ideologia da perda da “centralidade sociológica do trabalho” no capitalismo contemporâneo – não diz respeito à posição fundante do trabalho em geral, mas, sim, à persistência da produção do valor, cuja substância é o trabalho abstrato, como ratio ultima da atual forma de sociabilidade. É justamente neste âmbito que o ensaio de Teixeira enfrenta a questão, buscando demonstrar, para além das impressões empíricas dos ideólogos da falência da teoria crítica do valor-trabalho (abstrato), que operam com categorias sociológicas da aparência do sistema de produção, a relação – inclusive empírica – das categorias críticas da economia política desenvolvidas por Marx com o capitalismo em suas atuais características.
Isso não quer dizer, contudo, que a discussão teoricamente mais abstrata quanto ao materialismo histórico não seja aqui também enfrentada. E o é principalmente na crítica da má concepção habermasiana do materialismo histórico. Neste caso, nosso autor trata de demonstrar que a prometida “reconstrução” da concepção materialista da sociedade, por Habermas, resulta – desculpem-me o deboche – numa desconstrução. Com efeito, a confessada assunção habermasiana da categoria sociológica de “interação social”, de matiz positivista (Durkheim), que Habermas reconstrói na perspectiva das considerações lingüístico-pragmáticas da filosofia contemporânea, não menos positivistas, leva-o a conceber, para além das relações sociais de produção e das forças produtivas, que em Marx são ao mesmo tempo parte e base das primeiras, um âmbito “prático-moral”, de “reconhecimento recíproco”, enfim, “um sistema de normas sociais que pressupõe a linguagem”. Deste modo, para Habermas, trata-se de conceber a modernidade não apenas de uma perspectiva das forças e relações de produção, mas também como um processo histórico de dessacralização, de laicização, das relações prático-morais mediadas pela linguagem, de sorte que é com base no reconhecimento teórico – ausente em Marx – deste último âmbito que se pode desenvolver uma posição teórica crítica do capitalismo desenvolvido, na medida em que aí se pode pôr em questão o avanço das ações técnico-instrumentais sobre as ações prático-interativas, lingüístico-comunicativas. A incompreensão de Marx da suposta distinção dessas duas instâncias societais o teria levado a reduzir a vida social ao âmbito técnico-instrumental, ao “subsistema” da economia. Mais uma vez, portanto, também nesta teoria sociológica – que, por não compreender a natureza fetichista do sistema produtor de valor, resume a “economia” a um “subsistema” – encontramos a destituição ontológica do trabalho (reduzido a ações técnico-nstrumentais) e, mais ainda, a recusa a encarar a centralidade, na totalidade da vida social presente, do trabalho abstrato e do valor (como, aliás, o diz expressamente Habermas na discussão sobre a relação entre economia e Estado no capitalismo tardio).
Em sua apresentação descritiva da sociologia harbermasiana, Francisco Teixeira nos deixa ver a regressão teórica que, diante da tradição crítica do pensamento alemão do século 20, encontramos em Habermas. Seu caráter regressivo se constitui principalmente ao reduzir a categorias sociológicas isoladas e fixas as determinações mais primárias e, portanto, mais abstratas, que, numa perspectiva histórico-materialista, nos permitem pensar a vida social. Desse modo, a unidade originária da práxis produtiva é reduzida à classificação sociológica – cuja origem são as chamadas ciências do espírito do início do século 20 – de ações instrumentais, de um lado, e ações prático-morais, interativas, de outro. O que se perde nesse secundário nível sociológico, do ponto de vista de uma teoria mais fundamental sobre a sociedade e a história, é a compreensão da práxis produtiva, materialmente produtiva, tanto de coisas e relações econômicas quanto de consciência, de linguagem, de valores e normas. Em outras palavras, perde-se aí a compreensão de que o não-material, tal como a consciência, a linguagem e as normas, é também práxico-materialmente produzido, de que o não-material é também, simplesmente, práxico. Com efeito, para Marx, a consciência e a linguagem, que não se distinguem e separam entre si, não se separam também da vida prática, produtiva, e do correspondente intercâmbio prático, mas, sim, são por estes mesmos produzidas: “O ‘espírito’”, dizem Marx e Engels, “tem consigo de antemão a maldição de estar ‘preso’ à matéria, a qual nos surge aqui na forma de camadas de ar em movimento, de sons, numa palavra, da linguagem. A linguagem é tão velha como a consciência – a linguagem é a consciência real prática que existe também para outros homens e que, portanto, só assim existe também para mim, e a linguagem só nasce, como a consciência, da necessidade, da carência física de intercâmbio com outros homens”.[8] A “reviravolta” materialista – termo que uso aqui não sem ironia – implicou, nas pegadas da dialética hegeliana, como podemos ver, uma crítica da filosofia moderna da consciência e da concepção instrumental da linguagem.
Naturalmente, encontramos nessa passagem citada de Marx e Engels uma concepção bastante genérica, posto que necessariamente situada num determinado nível de abstração teórico-conceitual. Mas, justamente porque as relações lingüístico-comunicativas se produzem praxicamente, elas só podem ser compreendidas historicamente numa apreensão mais determinada das forças produtivas e das relações sociais nas quais se incluem e as quais medeiam. Deste modo, o fenômeno histórico de dessacralização e laicização das relações lingüístico-comunicativas na modernidade a que se refere Habermas é, do ponto de vista histórico-materialista, inseparável do desenvolvimento das forças produtivas burguesas e das relações de produção burguesas. É assim que, retomando com base neste enfoque a discussão existente no interior da sociologia alemã do início do século passado acerca da experiência lingüístico-comunicativa na modernidade, W. Benjamin explica as transformações da experiência social da linguagem comunicativa nos seguintes termos: “[...] esse processo vem de longe. Nada seria mais tolo que ver nele um ‘sintoma de decadência’ ou uma característica ‘moderna’. Na realidade, esse processo [...] tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evolução secular das forças produtivas”.[9] Nessa compreensão, está superada de modo claro, e de antemão, a distinção sociológica e fixa entre “interação” e “trabalho”, a linguagem e a comunicação só podendo ser compreendidas em conexão com o desenvolvimento das forças produtivas, com o qual conformam uma unidade prática. Ao invés de uma apreensão à parte de um âmbito interativo-comunicativo, distinto das assim chamadas ações técnico-instrumentais, trata-se para Benjamin de encontrar, no homem que, pelo trabalho, se relaciona com a natureza, o ente-genérico que ele é, de modo que o homem que, mediante os instrumentos e objetos de trabalho, compõe as forças produtivas é o homem já socialmente constituído, é o homem cuja natureza genérica é o “conjunto das relações sociais”.[10]
De modo mais concreto, esta concepção histórico-materialista do caráter práxico da linguagem, da comunicação e da consciência deve significa, no que diz respeito à sociedade capitalista, a completa impossibilidade teórica de separar o âmbito interativo-comunicativo das categorias que aí determinam a produção e a reprodução da vida social. Justamente porque o que é próprio ao gênero humano é sua atividade prática, sua autoconstrução em uma atividade sensível-material que, ao produzir um mundo humano-social em distinção com o mundo imediatamente natural, produz ao mesmo tempo o homem como ser histórico-social, a expropriação desta atividade, quando ela se torna reificada, coisificada, sob a forma-mercadoria da própria força de trabalho, tem por conseqüência a reificação das relações diretamente lingüístico-comunicativas, já que estas são a consciência prática social, inseparável, para o bem e para o mal, de toda prática social. Se toda prática social é comunicativa, dando-se assim num intercâmbio entre os homens que conta com a mediação da linguagem, uma prática social alienada traz consigo, necessariamente, não apenas uma “consciência invertida”, uma “falsa consciência”, mas também, nisto mesmo, uma “consciência real prática” (linguagem) alienada. Assim é que, para Guy Debord – autor que é lembrado por Francisco Teixeira –, quando o próprio desenvolvimento capitalista estende as características do trabalho alienado ao conjunto da vida social, isto é, quando o trabalho em sua forma alienada realiza a “ocupação total da vida cotidiana” (SdS, § 10),[11] o capitalismo se demonstra ser, justamente aí, “o contrário do diálogo” (Idem, § 18). Em outras palavras, “com a separação generalizada do trabalhador e de seu produto, perde-se todo ponto de vista unitário da atividade realizada, toda comunicação direta entre os produtores [...] [e] a atividade e a comunicação se tornam o atributo exclusivo da direção do sistema” (Idem, § 26). Assim, não se trata, para Debord, de distinguir fenomenologicamente mundo da vida e mundo sistêmico, como o faz Habermas em sua teoria do agir comunicativo, mas, ao contrário, de indicar num procedimento dialético que a lógica reificada da forma-mercadoria e do trabalho assalariado organiza a inteira vida cotidiana. Em conseqüência, o chamado mundo da vida, categoria com a qual Habermas pensa a vida cotidiana, é de pronto determinado pelo mundo sistêmico das relações econômicas fetichistas.
A resposta mais contundente que Francisco Teixeira oferece aos inimigos da teoria crítica do valor-trabalho (abstrato) não é, contudo, nas análises críticas pontuais de cada um deles, mas, sim, quando, após a preparação polêmica, passa a enfrentar diretamente a atual configuração do sistema capitalista e apresenta a categoria da cooperação complexa. Trata-se aqui do resultado de uma investigação categorial do capitalismo contemporâneo que, apoiado a um só tempo na crítica dialética da economia política e nas pesquisas empíricas atuais sobre as novas características da produção capitalista, apresenta a instigante tese de que, à grande indústria, descrita por Marx n’O capital, e à qual antecedem a cooperação simples e a manufatura, segue agora uma nova forma da valorização do valor, que, do ponto de vista da organização da produção, retoma características da cooperação simples, mas com base no capital extremamente centralizado da época monopólica e nas forças produtivas altamente desenvolvidas pela revolução científico-técnica.
Nas pegadas de Marx, Teixeira mostra que, na seqüência de cooperação simples, manufatura e grande indústria, a relação social capital se desenvolve progressivamente até tornar-se, nessa última forma, sujeito auto-referido que submete a si a totalidade das relações sociais. Mostra justamente aí como – o que não é nem de longe compreendido pelo marxismo analítico de Jon Elster e pela desconstrução do materialismo histórico de Habermas – se sedimenta uma unidade concreta entre o desenvolvimento das forças produtivas, dentre as quais se inclui a organização da produção, e a moderna forma social das relações de produção, a forma-capital. Descreve como a grande indústria, tal como Marx a apresenta, implica também modificações da vida cotidiana dos produtores – entre as quais, ressaltariam Benjamin e Debord, as sofridas nos âmbito lingüístico-comunicativo e estético-perceptivo – graças às transformações do processo a um só tempo social e técnico de valorização do valor, pois, nos lembra Teixeira, “ao generalizar a produção de valores de troca, a grande indústria transforma os meios de subsistência em mercadorias, criando, assim, um grande mercado para aqueles capitalistas que produzem mercadorias que entram no consumo pessoal do trabalhador” (3.2, a). Essas transformações da vida cotidiana fora do trabalho, nas quais “os bens de consumo da classe trabalhadora são produzidos como capital-mercadoria”, são inseparáveis daquilo que Teixeira chama de “uma completa des-subjetivação do processo de trabalho”, que ocorre quando, com base material nas forças produtivas até então desenvolvidas, a forma-capital se apresenta como sujeito autoposto e autotélico da produção social: na grande indústria “o capital torna-se sujeito do processo de valorização, porque, doravante, são os meios de produção que empregam o trabalhador e não o contrário, como ocorria na cooperação simples e na manufatura” (idem). Eis aí uma verdadeira aula de materialismo histórico concreto, pois fundado nas determinações particulares – trabalho abstrato e valor – da sociedade capitalista!
A cooperação complexa é compreendida por Teixeira como nascida de uma dupla dinâmica do capital como relação social contraditória, em cujo desenvolvimento o avanço das forças produtivas não se separa da luta de classes. Ele se aproxima, assim, de uma tese central às reflexões teóricas do movimento de autonomia operária nos anos 70 na Itália, justamente a de que a chamada “reestruturação produtiva” seria uma resposta do capital à crítica prática – as diversas formas de desobediência, sabotagem etc. – que o proletariado então dirigia ao trabalho alienado, resposta que, tendo um caráter eminentemente político, se apóia porém na constante transformação das forças produtivas, própria à concorrência intercapitalista, e na necessidade, aí inclusa, de aumento (ou simplesmente preservação) da taxa de lucro. O que aí se apresenta é uma concepção histórica, e não lógica, do desenvolvimento do capital, uma concepção atenta às contradições e às lutas práticas entre as classes. Este ponto de partida metodológico se reapresenta na análise do Teixeira justamente ao conceber a cooperação complexa como um resultado histórico das contradições – centralmente, a contradição entre as forças produtivas e a relação social capital – da forma grande indústria. Essas contradições que resultariam não num “limite absoluto do capital”,[12] mas numa “forma limite” histórica – “tudo indica que o capital atingiu o ápice do seu desenvolvimento histórico”, nos observa cauteloso nosso autor –, cuja gênese, sendo as contradições práticas da relação social capital, só neste âmbito prático, parece-me permitido assim concluir, pode encontrar seu desenlace.
Em diálogo com os Grundriise, e com as prospecções que nesta obra Marx faz sobre o desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo, cujo resultado seria um processo material de produção em que o tempo de trabalho concreto está reduzido ao mínimo, em clara contradição com a permanência social da quantificação do trabalho abstrato como medida social de valor, Teixeira conclui daí não uma situação sem-saída do capital, mas uma transformação formal da produção capitalista que vence, embora não supera, as contradições da grande indústria, repondo-as num outro âmbito formal. A constatação teórica que toma como ponto de partida é simples: “o capitalismo é incompatível com a produção plenamente automatizada”; afinal, “se as prospecções de Marx fossem levadas às últimas conseqüências, o desenvolvimento das forças produtivas entrariam em colapso com as relações capitalistas de produção” (3.2, b). A concepção do capitalismo como um “repleno de contradições”[13] é aqui mantida; e, ao invés de uma resolução lógica formal de uma real contradição, atenta-se para as contradições reais, as contratendências e o desenvolvimento histórico das formas de produção do valor. Em resposta às contradições a que chegou a grande indústria, a cooperação complexa se constitui numa “formação reativa” (como diria Freud), sendo a sua função histórica – algo posto pelo próprio movimento contraditório das relações sociais – a de impedir um “colapso do sistema”. Diferentemente da grande indústria, cujo desenvolvimento a um só tempo lógico-imanente e histórico cumpriu a tarefa de conduzir o capital à sua forma pura de sujeito da produção, a cooperação complexa “nasce para inaugurar um novo período de acumulação do capital em que não há mais desenvolvimento, isto é: expansão do emprego, criação de mercados até então inexistentes, incorporação de novas áreas geográficas ao mercado capitalista etc.” (idem). Por isso mesmo, alerta-nos o autor, a cooperação complexa é “menos progressiva” do que a grande indústria, pois sua base é o limite histórico a que chegou a valorização do valor mediante o grande desenvolvimento das forças produtivas pelo capital.
De modo concreto, a categoria de cooperação complexa reproduz no nível teórico um movimento objetivo do capital, em que este – num retorno abstratamente formal à cooperação simples – “passou a reagrupar numa única unidade de produção as diferentes fases do ciclo de acumulação, antes separadas espacial e temporalmente pela divisão social do trabalho” (idem). Trata-se aí da conseqüência histórica – compreensível categorialmente em seu movimento lógico – mais extremada da centralização de capital, persistente desde há um século, conseqüência pela qual, agora, cada uma das formas do capital (capital comercial, capital bancário, capital industrial), antes distintas entre si, se constitui em “partição de um mesmo capital individual”. A novidade aqui, explica-nos Teixeira, é que, na grande indústria, tal como no-la apresentou Marx, “o capital-dinheiro era um negócio particular dos bancos; o capital produtivo, dos industriais, e o capital mercadoria, dos comerciantes” (idem). A esse processo de centralização monopólica do capital, que se apóia numa base material de forças produtivas altamente desenvolvidas, corresponde – como antes, na grande indústria, ocorrera na unidade concreta entre as forças produtivas, a forma de relações sociais e a organização material do trabalho – uma reorganização material da produção em que cada empresa monopolista “realiza, em sua experiência concreta, o que expressa o conceito de capital industrial; ou seja, cada empresa passa a existir como encarnação individual de todas as formas de existência de capital: capital-dinheiro, capital produtivo e capital-mercadoria” (idem). É nesse processo social e técnico mais amplo – em que as categorias de totalidade e contradição são centrais à apreensão do capitalismo contemporâneo – que, segundo Teixeira, “o capital vê-se impelido a readequar os elementos subjetivos do processo de trabalho à nova forma de produção de mercadorias”; em outras palavras: “Assim como as empresas foram levadas a reconstituir, na prática, a unidade das diferentes formas de existência do capital, a reestruturação produtiva, com seus novos métodos e técnicas de contratação e gerenciamento, recompõe a unidade das diferentes fases do processo de trabalho, recriando um novo tipo de trabalhador coletivo combinado” (idem).
Como se pode ver sem grande esforço, é a isto que me referia quando, logo acima, afirmava que, no conceito de cooperação complexa, Teixeira opunha seu mais forte argumento contra a ideologia do fim do trabalho abstrato como fundamento da sociedade contemporânea, afinal os chamados “serviços” – bancários, comerciais – são aí compreendidos, enquanto suas “partições”, no capital total. Em conseqüência, o proletário das redes de fast food, como, por exemplo, a McDonald, que ao mesmo tempo produz e vende, não inclui sua atividade apenas no comércio, mas também na produção (ainda que seja uma produção final, a partir de elementos anteriormente pré-produzidos no interior ou sob o comando econômico da mesma empresa capitalista, que, assim, não pode ser chamada simplesmente de comercial, ou de “serviço”); de modo mais amplo, é o mesmo que ocorre na técnica de just in time nas grandes montadoras de automóveis, de computadores etc., em que se estabelece uma relação temporal mais imediata entre a produção e a venda. Em outras palavras, mantendo o conceito de capital total (global), Teixeira demonstra a persistência e a ampliação do trabalho abstrato como princípio organizador da produção e da vida social. E, assim, as transformações imediatamente visíveis no âmbito do trabalho se estendem e correspondem ao conjunto da vida cotidiana, em que o trabalho abstrato continua a ser produzido – e, em sua forma monetária de custos, a ser contabilizado – em formas que economizam tempo (no duplo sentido de que se produz em menos tempo quantitativo pago e de que o tempo não-formalmente produtivo é subsumido à economia). Ocorre assim uma completa transformação da vida cotidiana, descrita por Teixeira como componente da lógica da cooperação complexa, na qual todos os indivíduos se transformam, fora do trabalho, enquanto “consumidores”, em trabalhadores sem-contracheque. Não há dúvida, aqui andam juntas a proletarização dos indivíduos, a economização do tempo vivido e a perda de qualidade do mundo.
Assumindo o mesmo ponto de partida que Francisco Teixeira (o da crítica da economia política), Celso Frederico polemiza, no segundo ensaio deste livro, com os ideólogos da chamada “sociedade de consumo”, que, mal-baseados nas mesmas impressões empíricas da aparência do sistema, tal como aqueles outros ideólogos que Teixeira combate, chegam à conclusão da perda de objetividade e das contradições da realidade socialmente produzida. Neste caso, trata-se da compreensão teórica dos fenômenos da circulação mercantil e do tipo de consciência social que aí se produz num momento da produção capitalista – a cooperação complexa, segundo a tese de Teixeira assumida por Frederico – em que, através dos chamados “serviços”, as relações de troca e venda se estendem a âmbitos e a quanta diversos do tempo vivido.
Para Jean Baudrillard, no chamado consumo (sempre entendido por ele como um fenômeno imediato de aquisição monetária de um objeto mercantil), o valor de uso (ou o “referente”, no dizer da lingüística estruturalista) é substituído pelo “signo” sem referente real, que passa a sobrepor-se, ontologicamente, à realidade e, socialmente, ao valor econômico. Mas se o signo autonomizado, segundo Baudrillard, destitui o “princípio de realidade”, destitui ao mesmo tempo a realidade tanto do trabalho concreto, útil, pois o valor de uso deixaria de ser o critério da satisfação de desejos e necessidades, quanto do valor econômico, fundado sobre o trabalho abstrato, pois outras determinações, tais como o status, passariam a valorar economicamente a mercadoria. Deste modo, o mesmo problema teórico se reapresenta aqui: o da possibilidade da crítica da economia política dar inteligência crítica à atual experiência social em sua forma imediata, cotidiana.[14]
Nesse mesmo processo, segundo Baudrillard, ocorreria a autonomização do signo também na linguagem, do que resultaria, descreve-nos Frederico, “um mundo fantasmagórico em que reina o ‘jogo aleatório dos significantes’” (1). É um mundo do simulacro, onde não há mais nem princípio de realidade, nem valor. O que deveria explicar – a saber, a perda de realidade, perda que é prática e consciencial, na experiência cotidiana dos indivíduos na sociedade do espetáculo –, Baudrillard o toma como a própria explicação; para dizer o mínimo, o fenômeno aparente é assumido, num verdadeiro simulacro teórico, como autoreferido. Justamente quando a teoria crítica do valor permite-nos compreender, como o mostra Debord, a experiência de reificação das relações sociais, de perda de controle pelos indivíduos, desde a imediatidade cotidiana, sobre suas atividades e relações genéricas e, portanto, do seu acesso prático e lingüístico-comunicativo à realidade produzida por eles, mas deles autonomizada, Baudrillard transforma tais fenômenos sociais aparentes em base de uma “teoria” positivadora da alienação, apresentando uma ideologia segundo a qual, se já não temos acesso à realidade prática, tal se dá não por uma contradição da própria realidade e da prática que a produz, mas sim porque, misteriosamente, o “princípio de realidade” se tornou uma “hiper-realidade”. Ele não desconfia minimamente de que se, na experiência lingüístico-comunicativa cotidiana, a linguagem parece se descolar – através do desvanecimento do referente e da autonomização do signo – da práxis social e, portanto, da realidade social aí produzida praxicamente, tal ocorre porque, assim como se dá com a própria práxis, que, no domínio da alienação se emancipa do sujeito, também a linguagem se encontra, nas relações mercantis, aderida a uma realidade autonomizada diante dos indivíduos.
Ao contrário de Baudrillard, Celso Frederico situa esses fenômenos na experiência cotidiana das relações mercantis, apresentando o simulacro baudrillardiano numa correspondência com a autofalsificação das mercadorias e, numa sugestiva imagem, nos demonstra como a compreensão teórica desse fenômeno cotidiano se baseia diretamente na teoria crítica do valor-trabalho (abstrato). A produção capitalista mundializada dos objetos de consumo mercantil nos deixa entrever, como numa mônada, esse processo mais amplo de falsificação do real, ou antes, de impossibilidade de aferição da realidade do real na conhecida prática industrial de fabricação de artigos de grife, que, simultaneamente, são clonados pelos mesmos fabricantes. “Torna-se cada vez mais difícil separar o ‘verdadeiro’ do ‘falso’ nessa pirataria praticada muitas vezes pela mesma fábrica” (idem), nos diz Frederico. A isso, o ideólogo pós-moderno poderia responder, como o faz a vendedora da 25 de março lembrada por nosso autor: “não é falsificado; ele é uma réplica!”. A hiper-realidade que é réplica autoreferida de si mesma, tanto quanto o relógio, o vinho ou o perfume que o mesmo fabricante falsifica, não concerne, como imagina Baudrillard, a uma perda do princípio de realidade, mas, antes, a que essa realidade – com toda sua opacidade reificada – se falsifica a si mesma numa sociedade em que os sujeitos práticos da produção material da vida se negam e se destituem enquanto sujeitos de e em suas próprias relações sociais. Os chamados pós-modernos – na verdade, os mais apaixonados pela última palavra da modernidade capitalista – “procuram destacar a autonomização da aparência”, nos diz Frederico; “mas assim fazendo, permanecem na esfera subjetiva, examinando fenômenos objetivos sob a ótica da consciência mistificada” (idem). É precisamente assim que, ao invés de explicarem a consciência cotidiana reificada em sua relação com a experiência social cotidiana reificada, os ideólogos do pós-modernismo transformam em “teoria” o ponto de vista imediata, unilateral e aparente desses fenômenos e dessa consciência, na qual os últimos se refletem.
Analisando um conjunto de fenômenos culturais contemporâneos – tais como a publicidade, o chamado “consumismo”, a ideologia pós-modernista – com base na tese de que eles só são compreensíveis, numa posição social crítica, com base na teoria crítica do valor-trabalho (abstrato), Celso Frederico relaciona esses fenômenos ao desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo contemporâneo, às contradições econômicas que daí surgem, à proletarização geral da sociedade e ao domínio, sobre o conjunto do tempo socialmente vivido, da lógica econômica de “economia do tempo”. E conclui, numa concepção unitária da práxis social, afirmando que “a dominação do capital imprimiu sua marca ao conjunto da vida social, evidenciando que economia e cultura não são esferas separadas” (3). De outro modo, podemos concluir, a crítica da cultura é, necessariamente, crítica da economia política.
É uma tal compreensão unitária da práxis social que cimenta a relação entre os dois ensaios aqui publicados. Ambos são esforços de crítica da economia política. A recensão que, a título de Prefácio, fiz deles, embora talvez muita extensa, tem o objetivo de simplesmente mostrar, mais do que argumentar, a afirmação inicial de que este é um livro necessário. Muitas questões não foram aqui nem mesmo tocadas, entre elas questões que são para mim mais discutíveis do que talvez o sejam, para a maioria dos leitores, as que aqui ressaltei e valorizei. De qualquer modo, se pretendi dizer o que o torna necessário, eu o fiz pelo que, neste livro, me parece potencializar-nos à crítica social no presente. É isso que, em sua leitura e na escrita desse Prefácio, me mobilizou de modo apaixonado; li um e escrevei outro febrilmente, num gole só. Digo-o porque isso também explica muito dos defeitos deste meu texto. É que há uma preocupante dialética entre paixão e pressa. A paixão tem pressa pelo seu objeto, pretende tê-lo e consumi-lo rapidamente; mas, com isso, muitas propriedades do objeto são deixadas de lado, tanto as que talvez poderíamos também apreciar quanto as que, por possível desagrado, são incapazes de nos apaixonar. Em nosso caso, porém, este resultado tão unilateral poderá facilmente ser superado pelos outros – mais atentos e circunspectos – leitores deste livro.

João Emiliano Fortaleza de Aquino
Fortaleza, outubro de 2007


EDITORA CORTEZ , SÃO PAULO (PRELO)
[1] No dizer de Debord, porque “de cara, [ela] se encontrara incapaz de se fazer escutar; depois, numa seqüência rápida, de simplesmente se formar” (Debord, G. Commentaires sur la societé du spectacle. Paris: Editions Gallimard, 1992, p. 27).
[2] Cf. Amaral, I. V. Estetismo e mercado: sexualidades, transgressão e captura na experiência contemporânea. In: Vale, A. F. C.; Paiva, A. C. S. (orgs.). Estilísticas da sexualidade. Campinas, SP: Editora Pontes, 2006, p. 19-38.
[3] Debord, op. cit., p. 37.
[4] Ibidem, p. 48.
[5] Cabe aí a mesma explicação histórica que Marx dá para a distinção de seu esforço teórico em relação à Economia Política clássica: “À medida que é burguesa, ou seja, ao invés de compreender a ordem capitalista como um estágio historicamente transitório de evolução, a encara como a configuração última e absoluta da produção social, a Economia Política só pode permanecer como ciência enquanto a luta de classes permanecer latente ou só se manifestar em episódios isolados”. Por isso mesmo, a crítica da economia política “representa [...] uma classe, ela só pode representar a classe cuja missão histórica é a derrubada do modo de produção capitalista e a abolição final das classes – o proletariado” (Marx, K. Posfácio da segunda edição. O capital, v. I, l. I. Trad. bras. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1983, respectivamente, p. 16 e 18). Em outras palavras, para Marx é a luta de classes do proletariado, a crítica prática da sociedade produtora de mercadorias, que produz ao mesmo tempo o dobre dos sinos da Economia Política e o surgimento da crítica teórica da economia política.
[6] Trata-se, na determinação ontológica do trabalho em geral, universal, de uma abstração a partir de formas historicamente particulares de sociabilidade, mas essa é, como diz Marx, uma “abstração com sentido”: “Quando se fala, portanto, da produção, se fala sempre da produção em um estado determinado de desenvolvimento social – da produção de indivíduos em sociedade. Poderia parecer, por conseqüência, que, para falar da produção em geral, teríamos ou bem que seguir um desenvolvimento histórico em suas diferentes fases, ou bem declarar um princípio que tem a ver com uma época histórica determinada, por exemplo, com a moderna produção burguesa [...]. Só que todas as épocas da produção têm certas características em comum, determinações comuns. A produção em geral é uma abstração, mas uma abstração com sentido, na medida em que ressalta realmente o comum, o fixa e nos evita, em conseqüência, a repetição. No entanto, esse elemento geral, ou este elemento comum obtido e isolado mediante a comparação, é por sua vez algo multiplamente articulado que se dispersa em distintas determinações”. (Marx, K. Líneas fundamentales de la crítica de la economía política (Grundrisse), I. Trad. esp. Javier Pérez Royo. Barcelona: Grijalbo, 1977, p. 7-8).
[7] Ibidem, p. 8.
[8] Marx, K.; Engels, F. A ideologia alemã – 1º capítulo (Feuerbach). São Paulo: Moraes, 1984, p. 33-34.
[9] Benjamin, W. O narrador. Obras escolhidas, I. Trad. br. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense: 1985, p. 201.
[10] Marx, K. Teses sobre Feuerbach, § 6. In: Marx, K.; Engels, F. Op. cit., p. 109. Sobre essa concepção benjaminiana da unidade originária da práxis, cf. Agamben, G. “O príncipe e o sapo. O problema do método em Adorno e Benjamin”. In: Infância e história. Destruição da experiência e origem da história. Trad. bras. Henrique Burigo. Belo Horizonte : Editora da UFMG, 2005, p. 129-149.
[11] Debord, Guy. La société du spectacle. Paris: Gallimard, 1998.
[12] Cf. Kurz, R. O colapso da modernização. Trad. bras. Karen Elsabe Barbosa. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1999.
[13] Marx, K. O capital, ed. cit., p. 21.
[14] Quanto ao valor de uso, devo observar que Baudrillard passou longe de o compreender, mesmo superficialmente. O valor de uso, nos diz Marx, “satisfaz necessidades humanas de quaisquer espécie. A natureza dessas necessidades, se elas se originam do estômago ou da fantasia, não altera nada na coisa (O capital, ed. cit., p. 45). Que toda sociedade produza valorações simbólicas (cultuais, ritualísticas, de status etc.) de seus objetos produzidos e usados, assim como indivíduos possam – inclusive do ponto de vista sexual, como ocorre no fetichismo descrito por Freud – dar-lhes uma significação que não tem a ver diretamente com o uso social desses objetos, num e noutro caso tais objetos não deixam de ser valores de uso, produzidos pelo trabalho concreto e que, por suas características físicas, correspondem a determinadas necessidades físicas ou espirituais dos homens. Duas outras questões, porém, são distintas dessa primeira e entre si: por um lado, a compreensão dos processos (sociais ou psíquicos) que produzem tais valorações aos valores de uso; por outro, a compreensão da determinação do valor mercantil deles, já que, independente de qual seu valor de uso social ou individual, eles continuam na sociedade capitalista contemporânea a ser comprados e vendidos. Imerso em confusões, Baudrillard não consegue nem mesmo compreender a qualquer um desses problemas, que dirá respondê-los.

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