26/12/2011

O SENTIDO DA HISTÓRIA EM HEGEL POR UM NÃO-FILÓSOFO

O SENTIDO DA HISTÓRIA EM HEGEL

POR UM NÃO-FILÓSOFO

Francisco José Soares Teixeira[1]

TEXTO-RASCUNHO ELABORADO PARA DISCUSSÃO DO GRUPO DE PESQUISA SOBRE ECONOMIA, POLÍTICA E DIREITO EM MARX, DA UNIVERSIDADE REGIONAL DO CARIRI (URCA).

RAZÃO E HISTÓRIA

A Filosofia da História, de Hegel, não é um livro inacessível aos não filósofos. É um livro difícil, não resta dúvida. A começar pelo fato de que o leitor deve ter presente que o método filosófico adotado pelo autor em questão é muito diferente daquele utilizado pelas ciências. Estas trabalham com pressupostos não demonstrados, pois tomam a realidade como um complexo de acontecimentos que só podem ser abordados partindo de certas hipóteses. A corrente da economia que faz da utilidade o fundamento do valor, por exemplo, parte da ideia de que os recursos são escassos e os agentes econômicos são racionais e que, por isso, procuram maximizar a aplicação de seus rendimentos para que possam obter o maior grau possível de satisfação. A Economia Política Clássica não é muito diferente. Como aquela, também trabalha com pressupostos. Referindo-se aos dois maiores expoentes dessa ciência, Adam Smith e David Ricardo, estes assentam sua teoria num pressuposto antropológico de que o homem é um ser troca; nasceu e vive numa sociedade em que seus agentes são, por natureza, proprietários de mercadorias e, como tais, vivem da troca do produto do seu trabalho. Smith não deixa dúvida quanto a isto. Para ele, o princípio que dá origem a divisão do trabalho

da qual derivam tantas vantagens, não é, em sua origem, o efeito de uma sabedoria humana qualquer, que preveria e visaria esta riqueza geral à qual dá origem. Ela é conseqüência necessária, embora muito lenta e gradual, de uma certa tendência ou propensão, embora muito lenta e gradual, de uma certa tendência ou propensão existente na natureza humanas que não tem em vista esta utilidade extensa, ou seja: a propensão a intercambiar, permutar ou trocar uma coisa pela outra[2].

Partindo desse pressuposto antropológico, Smith e Ricardo procuram “justificá-lo”. Smith, por exemplo, recorre a um suposto estado de natureza no qual os indivíduos, donos de seus meios de produção, trocam suas mercadorias umas pelas outras de acordo com o princípio da troca de equivalência - da troca igual, para depois, aplicá-lo no mundo real, num mundo em que a sociedade é dividida em classes sociais. É dessa aplicação que derivam todas as dificuldades e contradições que esses autores se deparam para tentar sustentar o princípio da equivalência na troca entre capital e trabalho[3].

A filosofia não trabalha com pressupostos. Esta forma de saber, como diz Hegel,

não tem a vantagem, de que se beneficiam as outras ciências, de poder pressupor os seus objetos como imediatamente dados pela representação, e de pressupor também como já admitido, para o início e o ulterior desenvolvimento, o método do conhecer[4].

No lugar da representação, a filosofia põe pensamentos, categorias e conceitos. Nesse sentido, como dirá Hegel, a filosofia se define como a consideração pensante dos objetos; como conhecimento que concebe, isto é, capaz de gerar seu conteúdo, que nada mais é do que o repensar conseqüente o próprio pensamento pensado em suas representações ordinárias e nas ciências. Afinal, se o homem se distingue do animal pelo pensar, então, “todo o humano é humano por e somente por ser produzido pelo pensar”[5].

Ora, “se todo o humano é humano” porque produzido pelo pensar, então, é patente que, para a filosofia, o sujeito e o objeto do conhecimento não são dois polos separados em que o primeiro, como procedem as ciências, é o polo ativo, o polo que dá sentido à realidade, e o segundo, o polo passivo. Ora, para Hegel, ser e pensar não são duas coisas distintas. Para ele, o mundo não é um amontoado de coisas sem sentido; tudo que nele existe tem uma razão de ser. Nada existe por acaso. A razão é a lei do mundo e tudo o que acontece na história ocorre racionalmente. E ocorre porque, para ele, as leis da lógica, suas categorias, e as da realidade são dois aspectos de um mesmo processo. Por isso, Hegel sente-se à vontade para afirmar que o único pensamento que a filosofia traz para o tratamento da história é a razão.

Mas como Hegel sabe que a história é governada pela razão? Porque sua filosofia é um sistema lógico composto de três partes, cada uma delas com tarefas específicas, próprias, que lhes cabem nesse todo orgânico e articulado. Na primeira parte desse sistema, Ciência da Lógica, ele inventaria as categorias, que expressam a inteligibilidade da realidade, e as expõem numa sequência lógico-necessária que vai da mais simples, o ser na sua pura indeterminação, até as mais ricas de determinações que é o ser totalmente determinado.

Tudo isso pode parecer totalmente destituído de sentido para o leitor, isto é, como algo puramente abstrato. De certa forma sim. Afinal, como diz Hegel,

a lógica é a ciência mais difícil; não tem a ver com intuições, nem sequer, como a geometria, com representações sensíveis abstratas, mas com abstrações puras, e exige uma força de hábito de se retirar para o pensamento, o reter nele e nele mover-se[6].

Por isso, a Ciência da Lógica é extremamente difícil. Mas, como diz Hegel acima, para quem não tem o hábito de fazer do pensamento o objeto do próprio pensar; afinal, o objeto do pensar é o próprio pensamento. Mas, se essa ciência parece difícil, por outro lado, acrescenta Hegel,

poderia considerar-se como a mais fácil, porque o seu conteúdo nada mais é do que o próprio pensar e as suas determinações ordinárias, e estas são ao mesmo tempo as mais simples e o que há de mais elementar. São também o que há de mais conhecido: o ser, o nada, etc., especificação, grandeza, etc., ser-em-si, ser-para-si, uno, múltiplo, etc[7].

Aí estão as categorias com as quais trabalha a Ciência da Lógica (ser, nada, grandezas, ser-em-si, ser-para-si etc.). Como elas são formas puras, destituídas de quaisquer sensibilidades empíricas, são puros pensamentos que constituem o conteúdo do pensar. Sendo assim então, não há separação entre o conceito e seu objeto, pois ambos são pensamentos derivados de pensamentos.

Agora, sim, pode-se repetir o enunciado do § 19, da Enciclopédia das Ciências da Lógica, no qual Hegel se refere à lógica como “a ciência da ideia pura, isto é, da Ideia no elemento abstrato do pensar”. Noutras palavras, trata-se do desenvolvimento do conceito lógico da Ideia em si e para si, que é, na verdade, expressão da Liberdade.

Esse é o primeiro momento do sistema de Hegel, no qual ele demonstra a liberdade do pensar, uma vez que seu conteúdo é o próprio pensamento e suas determinações (categorias). Os dois momentos seguintes são: a filosofia da Natureza, como a ciência da Ideia no seu ser-outro e a Filosofia do Espírito, como a ciência da Ideia que, do seu ser outro, a si retorna. Assim, a Ideia, pura interioridade na Lógica, exterioriza-se (aliena-se) na Natureza e na Filosofia do Espírito, na História, retorna a si, sem se perder em todo esse percurso.

As leis da lógica presidem, portanto, todos os três momentos do sistema. Logo, elas são as leis da Razão, no seu desenvolvimento lógico-conceitual, que deve corresponder com o progresso da liberdade no chão da história. Assim como na Ciência da Lógica a exposição começa com as categorias mais simples e pobres de determinações, o percurso da liberdade segue a mesma lógica. Inicialmente, a Liberdade começa a se manifestar nas civilizações orientais nas quais apenas um era livre sabia que era; na antiguidade clássica, Grécia e Roma, em que alguns sabiam e eram livres e, finalmente, nas civilizações modernas onde todos sabem que são livres. Percurso que assim ilustra Hegel:

como mercúrio é o guia das almas, a Ideia, na verdade, é que conduz os povos e o mundo, e é o espírito, sua vontade mais racional e mais necessária, que dirigiu e dirige os acontecimentos mundiais. Nosso objetivo aqui é conhecê-lo nessa função ...[8] .

Conhecer o espírito nessa função de que fala Hegel nesta citação, pressupõe que a razão governa o mundo, uma vez ele (o espírito) é a vontade mais necessária e racional da Ideia ou da razão. Mas isto não é matéria da Filosofia da História e, sim, da Ciência da Lógica. Aquela apenas considera como matéria já demonstrada. Mesmo assim, Hegel não deixa o leitor de sua Filosofia da História com a mera afirmação de que a razão governa o mundo. Recorre a duas formas, ou pontos de vista que demonstram a convicção de que a razão reinou e reina no mundo e na história universal. A primeira dessas formas é um fato histórico. O grego Anaxágoras foi o primeiro a afirmar que “a inteligência geral, ou a razão, rege o mundo”[9]. Infelizmente, como Platão faz Sócrates dizer, o princípio de que fala Anaxágoras, isto é, de que a razão reina no mundo, “não se refere ao princípio em si, mas à deficiência de sua aplicação à natureza concreta”[10]. Como assim? Melhor deixar que o próprio Sócrates teórico de Platão esclareça em que consiste tal deficiência:

Alegrava-me, igualmente, e esperava ter encontrado um mestre que me explicasse a natureza segundo a razão. Alguém que me mostrasse em cada ser particular um fim particular, e na totalidade dos seres o fim geral; eu não teria desistido dessa esperança tão facilmente. Mas como fiquei decepcionado quando, com sofreguidão, procedi à leitura de Anaxágoras, e constatei que ele apenas cita causas exteriores, tais como o ar, o Éter, a água e coisas do gênero, ao invés da razão![11]

Agora, sim, fica claro que, para Anaxágoras, a natureza não era concebida segundo o princípio que de que a razão rege o mundo, isto é, de que ele é produto da própria razão, mas, sim, de causas externas tais como o ar, a água etc. Como diz Hegel, para Anaxágoras, a natureza

não é concebida segundo esse princípio; na verdade, esse princípio permanecia abstrato; a natureza não era entendida como um desenvolvimento do mesmo, como uma ordem produzida pela razão. Chamo a atenção, desde o início, para essa distinção entre se estabelecer uma definição, um princípio ou verdade de modo meramente abstrato, ou evoluir para uma determinação mais precisa e um desenvolvimento concreto[12].

Outra manifestação do princípio de que a razão governa o mundo é sua aplicação na forma da verdade religiosa, isto é, de “que o mundo não foi abandonado ao acaso e causas externas aleatórias, mas que é regido por uma Providência”[13]. Mas assim como Anaxágoras e os gregos em geral não conseguiriam levar a termo a ideia de que a razão governa o mundo, a fé na Providência não pode ser aplicada à história universal, pois seu plano não pode ser desvendado uma vez que permanece oculto aos olhos do crente. Como diz Hegel,

A fé na Providência opõe-se, pelo menos, a toda aplicação ou a acontecimentos de seu plano, pois, particularmente, aqui e ali, concorda-se que ânimos religiosos reconheçam, em acontecimentos isolados, não apenas efeitos ocasionais, mas a manifestação da vontade divina, quando, por exemplo, chega uma ajuda inesperada a um indivíduo em grande apuro e necessidade; entretanto, tais objetivos são limitados unicamente a seus objetivos especiais[14].

Ora, prossegue Hegel,

Na história universal, lidamos com indivíduos, que formam povos, e com totalidade, que são os Estados. Portanto, não podemos nos ater a miudezas e crenças na Providência, e menos ainda à crença abstrata e indeterminada, que apenas quer generalizar, ou seja, supor que existe uma providência, mas não para os fatos determinantes da mesma[15].

Hegel recusa, assim, as duas aplicações do princípio de que a razão governa o mundo: o de Anaxágoras, que afirma que a razão reina no mundo, e o dogma da Sagrada Escritura que declara como verdade a lei de que o mundo é regido por uma Providência. Não aceita o princípio de Anaxágoras porque, para este, o mundo não aparece como produto da própria razão, mas, sim, de causas externas tais como a água, o ar etc. Igualmente, nega o dogma da Sagrada escritura porque nele o que prevalece é a forma sentimental, imaginativa e mítica. A razão não pode se valer da fé, pois, neste caso, ela não seria mais do que uma obra do sentimento, da crença e da imaginação.

Ora, para Hegel, a razão

é o conteúdo infinito, toda essência e verdade, a própria matéria que ele fornece à elaboração de sua própria atividade, pois ela não carece, como o ato finito, de materiais externos e de meios dados que ofereçam alimentos e objetos. Ela se nutre se si mesma, é o seu próprio pressuposto, e seu objetivo é o objetivo final e absoluto. Assim, ela própria realiza sua finalidade e faz passar do interior para o exterior, não apenas no universo natural, mas também no universo espiritual – na história universal. Tal ideia é o verdadeiro, o eterno, a potência pura e simples, que se manifesta no mundo e somente ela se manifesta, sua honra e magnificência: eis o que a filosofia demonstra, como dissemos, e aqui se pressupõe demonstrado[16].

A razão governa o mundo; ela preside tanto o mundo material como também o mundo espiritual. Tudo é razão; nada está fora dela, nem no mundo natural e nem tampouco na história universal. Consequentemente, tudo o que ocorre na história

resultou e deve resultar em que nela tudo aconteceu racionalmente, que ela foi a marcha racional e necessária do espírito universal; espírito cuja natureza é sempre idêntica e que a explicita na existência universal. Tal deve ser, como dissemos o resultado do estudo da história[17].

Destaque-se dessa última citação que, para Hegel, a história foi e é a marcha racional e necessária do espírito universal. Com isso, anuncia-se a matéria que deve ser agora examinada: o curso da história.


O CURSO DA HISTÓRIA

O espírito nada mais é do que o desenvolvimento histórico da razão em seu conceito.

O único pensamento que a filosofia traz para o tratamento da história é a razão, diz Hegel. Pois, para ele,

é da alçada da filosofia, e digna dela somente, tomar a história no ponto em que a racionalidade começa a entrar na existência mundial. Não onde ela é ainda apenas uma possibilidade, mas onde há um Estado em que ela aparece na consciência, na vontade e na ação. A existência inorgânica do espírito e da liberdade, isto é, a apatia inconsciente do bem e do mal – e, portanto, das leis-, não é mesmo objeto da história (...). A liberdade consiste somente no saber e querer objetos universais, substanciais, como o direito e a lei, produzindo uma realidade que lhes é conforme: o Estado[18].

Hegel não poderia ter sido mais claro. Com efeito, ele não deixa dúvida de que só há história quando o povo se encontra organizado num Estado, pois como já fora citado páginas atrás, e nunca é demais repetir, lê-se que

na história universal, lidamos como indivíduos, que formam povos, e com totalidade, que são os Estados. Portanto, não podemos nos ater a miudezas da crença na Providência, e menos ainda à crença abstrata e indeterminada, que apenas quer generalizar, ou seja, supor que existe uma Providência, mas não para os fatos determinantes da mesma[19].

Não há história sem a presença do Estado. “Houve povos”, diz Hegel,

que persistiram sem Estado numa longa vida antes de terem atingido a própria determinação, e antes mesmo de terem realizado importante cultura em certas direções. Aliás, essa “pré-história” está, conforme já disse, fora do nosso propósito[20].

Hegel apresenta as razões por que essa chamada “pré-história” de que ele fala nesta citação está fora da história. Argumenta que

as épocas que transcorreram para os povos antes da história escrita, representa em séculos e milênios, podem ter sido cheias de revoluções, gerações e transformações muito violentas, mas não tem história objetiva, porque não apresentam narrativas subjetivas, narrativas históricas. Não é que os documentos dessa época tenham desaparecido acidentalmente, mas nós não os temos porque eles não podem existir. Apenas no Estado, com a consciência das leis, ocorrem as ações claras, e com elas a claridade de sua conscientização, conferindo a capacidade e mostrando a necessidade de registros duradouros (...). A Índia não possui somente antigos livros religiosos e obras poéticas brilhantes, mas também velhos códigos – uma das condições históricas que postulamos -; entretanto, não tem história[21].

Não há dúvida de que, para Hegel, é o Estado que dá sentido à história. Pois somente nessa instituição, a liberdade, que é o objetivo final da história, pode de fato se realizar, efetivar-se, uma vez que somente no Estado a vontade geral e as vontades particulares se conciliam plenamente.

Por isso, continua Hegel,

Na história universal só se pode falar dos povos que formam um Estado. É preciso saber que tal Estado é a realização da liberdade, isto é, da finalidade absoluta, que ele existe por si mesmo; além disso, deve-se saber que todo valor que o homem possui, toda realidade espiritual, ele só o tem mediante o Estado (...). No Estado o universal está nas leis, em determinações gerais e racionais. Ele é a ideia divina, tal qual existe no mundo. Ele é assim o objeto mais próximo da história universal, no qual a liberdade recebe a sua objetividade e usufrui dela. A lei é a objetividade do espírito e da vontade em sua verdade, e só a vontade que obedece à lei é livre, pois ela obedece a si mesma, está em si mesma livremente (...). O racional como substancial é necessário; somos livres quando o reconhecemos como lei e quando seguimos essa lei como substância de da nossa própria essência. A vontade objetiva e a subjetiva são, então, conciliadas, formando uma unidade serena, pois a eticidade do Estado não é a eticidade moral, refletida, na qual predomina a convicção individual; esta é mais acessível ao mundo moderno, enquanto a real e antiga parte do princípio de que todos cumpram o seu dever (...). A moralidade objetiva, todavia, é o dever, o direito substancial, a segunda natureza (...), pois a primeira natureza humana é sua existência imediata, animal[22].

Nessa citação, quando Hegel afirma que “a eticidade do Estado não é a eticidade moral, refletida, na qual predomina a convicção individual”, está dirigindo uma crítica à concepção de liberdade como autonomia absoluta. Kant pensava assim. Para ele e a maioria dos modernos, a liberdade era entendida como espontaneidade radical da ação de cada indivíduo; este atua com plena independência e autonomia, pois é capaz de agir livre de quaisquer motivações, inclinações. Para Kant, por exemplo, uma ação é moral se ela ocorre conforme o dever, isto é, quando a pessoa age conscientemente porque sabe e quer que sua ação esteja de acordo com o que prescreve a lei universal da razão. Ora, agir em conformidade com a lei da razão, significa, diz o autor da Crítica da Razão Prática, que o sujeito moral decida atuar com plena autonomia e independência, não condicionado por nada nem ninguém; livre, portanto, de quaisquer motivações. Quem pratica caridade com a esperança de ser perdoado por seus pecados, ou porque isto o faria sentir-se bem, não age de acordo com a lei moral. Kant oferece um bom exemplo do que significa agir em conformidade com a razão, quando se pergunta: “não posso eu, quando me encontro em apuro, fazer uma promessa com a intenção de a não cumprir[23]?

Sua resposta é longa, mais vale a pena citá-la na íntegra, pois ajuda a entender o que significa agir por dever ou agir motivado por alguma inclinação. No caso em questão, argumenta

que é fácil distinguir aqui os dois sentidos que a questão pode ter: - Se é prudente, ou se é conforme o dever, fazer uma falsa promessa. O primeiro caso pode sem dúvida apresentar-se muitas vezes. É verdade que vejo bem que não basta furtar-me ao embaraço presente por meio desta escapatória, mas que tenho de ponderar se desta mentira me não poderão advir posteriormente incômodos maiores do que aqueles de que agora me liberto; e como as conseqüências, a despeito da minha pretensa esperteza, não são assim tão fáceis de prever, devo pensar que a confiança uma vez perdida me pode vir a ser mais prejudicial do que todo o mal do que agora quero evitar; posso enfim perguntar se não seria mais prudente agir aqui em conformidade com a máxima universal e adquirir o costume de não prometer nada senão com a intenção de cumprir a promessa[24].

Deve estar claro que, quando se mente movido por certos interesses, todas as ponderações que possa fazer a pessoa mostram que ela não está com independência e plena autonomia, mesmo quando procura adquirir o costume de nada prometer para que sua ação possa ser observada por todas pessoas. Ora, continua Kant,

ser verdadeiro por dever é uma coisa totalmente diferente de sê-lo por medo das conseqüências prejudiciais; enquanto no primeiro caso o conceito da ação em si mesma contém já para mim uma lei, no segundo tenho de olhar à minha volta para descobrir que efeito poderão para mim estar ligados à ação. Porque, se me afasto do princípio do dever, isso é de certeza mau; mas se for infiel à minha máxima de esperteza, isso poderá trazer-me por vezes grandes vantagens, embora seja em verdade mai8s seguro continuar-lhe fiel. Entretanto, para resolver da maneira mais curta e mais segura o problema de saber se uma promessa mentirosa é conforme o dever, preciso só me perguntar a mim mesmo : - Ficaria eu satisfeito de ver a minha máxima (de me tirar de apuros por meio de uma promessa não verdadeira) tomar o valor de lei universal (tanto para mim como para todos os outros)? E poderia eu dizer a mim mesmo: - Toda gente pode fazer uma promessa mentirosa quando se acha em dificuldade de que não pode sair de outra maneira? Em breve reconheço que posso em verdade querer a mentira, mas que não posso querer uma lei universal de mentir; pois, segundo uma tal lei, não poderia haver propriamente já promessa alguma, porque seria inútil afirmar a minha vontade relativamente à minhas futuras ações a pessoas que não acreditariam na minha afirmação, ou, se precipitadamente o fizessem, me pagariam na mesma moeda. Por conseguinte a minha máxima, uma vez arvorada em lei universal, destruir-se-ia a si mesma necessariamente[25].

Agora tudo se esclarece. Uma ação é moralmente boa se ela possui a capacidade de ser universalizada. No exemplo da mentira, viu-se que esta não pode ser elevada ao status de lei universal, pois se todos mentem, ninguém poderia mais afirmar sua vontade perante os outros. Por isso, diz Kant, em sua polêmica contra um filósofo alemão,

cada homem (...) tem não somente o direito mas até o estrito dever de enunciar a verdade nas proposições que não pode evitar, mesmo que prejudique a ele ou a outros. Ele mesmo por conseguinte não faz com isso propriamente nenhum dano a quem é lesado, mas é o acaso que causa esse dano. Porque neste caso o indivíduo não é absolutamente livre para escolher, porquanto a veracidade (desde que seja obrigado a falar) é um dever incondicionado. (...) o dever de veracidade (...) não faz qualquer distinção entre pessoas, umas em relação as quais tenhamos este dever, outras para com as quais nos possamos desvencilhar dele, porque é um dever incondicionado, válido em quaisquer condições[26].

Bem que se poderia perguntar a Kant o seguinte: quem esconde um fugitivo da Gestapo, por exemplo, deve denunciá-lo à polícia, caso esta bata em sua porta à procura do prisioneiro, que conseguiu escapar da câmara de gás? Não há dúvida de que Kant responderia afirmativamente. Caso não o fizesse, estaria faltando com a verdade e, assim, sempre de acordo com o raciocínio do autor em questão, a veracidade não seria mais um dever a ser observado por todos os integrantes da sociedade.

Agir moralmente é agir livre de quaisquer motivações pessoais. Nisto consiste o conceito de liberdade em Kant. Liberdade é, portanto, agir com total autonomia e independência; não importam as conseqüências do agir de cada um, desde que todos ajam em conformidade com máximas que possam ser universalizáveis, generalizadas.

É contra essa concepção de liberdade que se insurge Hegel na citação de número 22. Para ele, repita-se, “ a vontade objetiva e a subjetiva são, então, conciliadas, formando uma unidade serena, pois a eticidade do Estado não é a eticidade moral, refletida, na qual predomina a convicção individual; esta é mais acessível ao mundo moderno, enquanto a real e antiga parte do princípio de que todos cumpram o seu dever”. A liberdade como pura autonomia, diria Hegel, significa que os agentes sociais atuam egoisticamente, pois estariam agindo sem levar em consideração as conseqüências de suas ações, seus vínculos interpessoais. Estariam, portanto, elevando-se acima das instituições da sociedade, sem se importarem uns com os outros. Contra essa concepção de liberdade, dirá Hegel, ela nunca pode ser tarefa de cada indivíduo no seu isolamento particular. Pelo contrário, a liberdade é tarefa de todos os membros da comunidade, organizada institucionalmente (Estado) para garantir a liberdade. Como esclarece Solsona,

levado pelo seu realismo e pela sua peremptória recusa do sentimental (...), Hegel tende a identificar liberdade com o efetivamente permitido e garantido pelas instituições políticas e jurídicas. Hegel acrescenta, a uma rigorosa identificação entre liberdade e a instituição que a garante, a pretensão de que a liberdade partilhada deve romper barreiras entre os indivíduos. O filósofo pensa que se a liberdade não poder ser mais de todos, isso implica que ninguém se pode subtrair unilateralmente do todo. No caminho da liberdade, o velho lema de juventude “hen kai pan” (um em todo) continua a ser central para Hegel, predominando o todo acima de uno, do indivíduo. A liberdade é pois, para Hegel, algo eminentemente coletivo, encarnado no espírito objetivo ou objetivado em instituições políticas, ultrapassando a subjetividade individual, a sensibilidade particular ou a consciência moral individual (...). Apenas institucionalizada e captada na sua necessária dimensão coletiva se torna objetiva – espírito objetivo -, fazendo do mero conjunto de indivíduos um povo, uma comunidade, um todo, um Estado[27].

Mas por que o homem somente pode ser verdadeiramente livre no Estado? Porque, dirá Hegel, é nessa instituição que

os interesses gerais do Estado se conjugam ao interesse particular dos cidadãos; um encontra no outro a sua satisfação e concretização (...)[28].

Vale dizer, é no Estado que as vontades particulares se conciliam com a vontade geral. Mas essa união entre o particular e o universal não se realiza de forma espontânea. O Estado moderno, que é o objeto de preocupação de Hegel, é o resultado de um longo processo anterior de organização e aperfeiçoamento realizado pela história, que ele, a seu modo, assim descreve:

o Estado necessita de muitos eventos, invenções de organizações apropriadas, acompanhadas de longas batalhas do intelecto, até que ela traga à consciência o que lhe é próprio. São necessárias, também, batalhas entre os interesses particulares e as paixões, e um processo árduo e moroso para discipliná-los, até que se realize aquela união. O momento de tal união representa os períodos de seu florescimento, de sua virtude, de sua força e felicidade[29].

É assim que evolui e se aperfeiçoa o Estado. A história é o lugar em que as paixões e as vontades subjetivas se digladiam, e que tem como resultado um avanço e aperfeiçoamento das instituições políticas e jurídicas em direção a um estágio mais avançado e superior da liberdade. De flor contingente que era entre os gregos, o Estado torna-se universalidade privada no cristianismo e, na Revolução francesa, transforma-se em universalidade abstrata, e daí ruma para alcançar a liberdade substancial.

Esses diversos estágios de evolução e aperfeiçoamento do Estado mostram o curso do desenvolvimento da história. Durante esse processo, a caminhada do espírito passa por momentos de turbulência, de instabilidade social que leva o espírito de um povo, expressão de seu modo de ser na arte, na religião, na ciência etc., a desintegrar e a dá mais um passo para um estágio superior. Quando o Estado alcança a liberdade substancial, quando esta está plenamente realizada, o curso da história alcançou seu objetivo final: a realização da liberdade.

Mas é preciso ter presente que esse avanço e aperfeiçoamento do Estado são visto por Hegel como resultado do desenvolvimento da razão, uma vez que, para ele, é a Razão que escreve a História e não os homens. Estes têm apenas que se deixarem guiar pela Razão Universal e nela se dissolverem, isto é, viverem de acordo com suas leis, exteriorizadas nas instituições políticas e sociais. Afinal, como visto antes, para Hegel, a história começa somente a partir do momento em que a racionalidade começa a entrar na existência mundial; isto é, quando surge o Estado; antes disto não há história, reina a irracionalidade.

Acompanhar esse processo de evolução e aperfeiçoamento do Estado, é, na verdade, analisar como a dialética da razão se impõe aos indivíduos, obrigando-os a tomar consciência de suas ações e vontade. Neste sentido, essa análise é, na verdade, uma análise da lógica da razão, como esta escreve, no chão da história, a liberdade e a tomada de consciência pelos indivíduos do que é verdadeiramente substancial, que é a vontade geral encarnada na soberania do Estado Ela deve se impor sobre as vontades particulares, e não o contrário como aconteceu na Revolução francesa. Afinal, para Hegel, os indivíduos são livres somente quando se identificam com o todo (Estado) e com ele se conciliam e se harmonizam.

Antes, porém, de analisar a dialética da razão, como está se impõe aos indivíduos, vale a pena abrir um parêntese para falar da crítica que Hegel faz aos revolucionários franceses.

Para Hegel, o erro da Revolução francesa foi o de rebaixar a vontade geral aos interesses das vontades particulares ao instituírem o sistema de representação via voto direto. Como esclarece Solsona,

apesar da concentração dos grandes fatos revolucionários nas ruas de Paris e, mais ainda, nas bancadas das várias convenções, nas quais – presumidamente – se reunia a Nação, para Hegel, o envolvimento direto da cidadania no governo democrático falhou totalmente num país extenso e povoado como a França. O sistema de voto usado é, no entender de Hegel, um procedimento sem vida, abstrato e que não representa realmente a cidadania – que permanece alheia -, mas os diferentes partidos, cenáculos ou clubs políticos. Hegel afirma peremptoriamente que “por esse motivo, na Revolução Francesa, a constituição republicana não se realizou nunca como uma democracia, tendo a tirania e o despotismo erguido a sua voz sob a mascara da liberdade e da igualdade. A constituição democrática de Robespierre nunca se pôde realizar”[30].

O sufrágio universal é, portanto, incapaz de realizar uma verdadeira democracia. Diria Hegel que a subjetividade no mundo moderno perdeu completamente aquele estado de inocência, que a fazia ser imediatamente uma com o todo, como na Grécia Antiga. Na modernidade, o individualismo e subjetivo têm unicamente como fim os seus interesses particulares. Por isso, são incapazes de realizar a união entre o universal e o particular. Em seu Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito Natural e Ciência do Estado em Compêndio, doravante simplesmente Filosofia do Direito (FD), Hegel, no § 311, justifica sua crítica ao sistema do sufrágio universal.

Argumenta que

a deputação, enquanto emanando da sociedade civil-burguesa, tem (...) o sentido de que os deputados estejam familiarizados com as carências especiais, obstáculos, os interesses particulares desta, e de que participem das mesmas. Enquanto essa deputação emana, segundo a natureza da sociedade civil-burguesa, das suas diversas corporações (§ 308) e o modo simples dessa proveniência não é perturbado por abstrações e pelas representações atomísticas, ela satisfaz esse ponto de vista, e eleger é então ou algo de todo supérfluo, ou reduz-se a um frívolo jogo da opinião e do arbítrio[31].

Para Hegel, a verdadeira representação deve expressar a organicidade da sociedade civil-burguesa. Noutros termos, a representação política deveria refletir a divisão social do trabalho no interior da sociedade civil-burguesa. Para tanto, como se pode depreender da citação anterior, a ligação interna dos cidadãos com a universalidade do Estado teria de ser mediada pelos estamentos e as corporações: o estamento agrícola (representante da aristocracia), o estamento industrial, composto pela a burguesia, trabalhadores e profissionais liberais e, finalmente, o estamento universal, formado pelos funcionários públicos admitidos por mérito e dedicados aos assuntos universais.

Afinal, dirá Hegel,

cada um desses ramos tem, porém, perante os outros, o mesmo direito de ser representado. Se os deputados devem ser considerados como representantes, isso tem um sentido organicamente racional somente quando não o sejam como representantes de singularidades, de uma multidão, mas representantes de uma das esferas essenciais da sociedade, representantes dos grandes interesses desta[32].

A soberania não pode, portanto, depender do livre arbítrio das vontades particulares, pois,

a propósito da eleição pelos muitos [enquanto] singulares pode ser ainda assinalado que nos grandes Estados em particular, necessariamente intervém a indiferença em face do dar voto, enquanto ele, na multidão, tem uma influencia insignificante e os que têm direito a voto, por mais elevada que a autorização desse direito se lhe apresente e apregoe, precisamente não comparece à votação; - de sorte que de uma tal instituição resulta antes o contrário da sua destinação, e a eleição cai sob o poder de poucos, de um partido, por conseguinte, do interesse particular, acidental, que exatamente deveria ser neutralizado[33].

Aos olhos de Hegel, aí está a razão do fracasso da Revolução francesa, que foi a de reduzir o universal do Estado ao livre arbítrio das vontades particulares, que se manifestam via sistema eleitoral, isto é, por meio do sufrágio universal. Eis aí a razão por que ele escreveu sua FD. Sua pretensão, como assim esclarece Furet[34], era mostrar que o Estado deveria conseguir o que a Revolução tentou sem êxito: realizar a razão no chão da história.

Se é certo o que afirma Furet, bem que se poderia perguntar a Hegel se ele não estaria a ensinar os homens como esse deveriam se comportar para realizar o que o Revolução francesa não conseguiu. Tudo parece indicar que sim. No prefácio à sua FD, queixa-se de que

o que reside entre a razão enquanto espírito autoconsciente e a razão enquanto efetividade, o que separa aquela razão dessa e não a deixa encontrar satisfação nela é o entrave de algo abstrato que não se libertou para o conceito. Reconhecer a razão como a rosa na cruz do presente e, com isso, alegrar-se com esse, tal discernimento racional é a reconciliação com a efetividade que a filosofia concede aos que já atingiram alguma vez a exigência interna de conceituar e manter, igualmente, a liberdade subjetiva não num particular e contingente, porém no que em si e para si[35].

Ora, considerando que o Estado prussiano, havia alcançado, segundo Hegel, o mais alto grau de aperfeiçoamento na evolução histórica, não deveria as vontades particulares se conciliarem com essa instituição, com sua universalidade? Não foi esse o pecado dos revolucionários franceses, ao rebaixaram a razão ao arbítrio das vontades particulares, com seu sistema de representação?

Melhor deixar essa dúvida em suspenso e voltar ao que se anunciou antes: analisar como a dialética da razão se impõe aos indivíduos, obrigando-os a tomar consciência de suas ações e vontade. Noutras palavras, de que meios se serve a razão para escrever na história seu fim absoluto: a realização da liberdade?

ASTÚCIA DA RAZÃO.

Os acontecimentos da história universal, diria Hegel, não são viagens de cavalheiros errantes, façanhas de heróis digladiando-se inutilmente, que lutam e se sacrificam por um objetivo vão. Sua atividade não se esvai sem deixar vestígios, porque em tais acontecimentos existe uma conexão necessária. Há uma razão subjacente a todos esses acontecimentos que imprime à história uma caráter racional. Os fenômenos históricos não são, portanto, meros acontecimentos que se sucedem ao acaso e ao sabor dos caprichos dos indivíduos.

Essa racionalidade não se encontra à vista imediata, isto é, a nível dos fenômenos observáveis e relatados pela historiografia. Para desvendar essa racionalidade, é preciso atravessar a exterioridade dos fenômenos e ir até a sua essência. Esse trabalho é realizado pelo pensamento especulativo, pela razão, que vai aos fundamentos do que é simplesmente dado para revelar o porquê de sua existência. Para tanto, a filosofia não pode se armar de hipóteses a priori, para investigar os fenômenos e, assim, descrevê-los. Ao contrário disto, a filosofia concebe a história a partir do que Hegel chama de esforço do conceito que nada mais do que o esforço de um pensamento

que deve se despojar de suas opiniões, preconceitos e hipóteses externa ao objeto, e que deve abdicar (...) daquela desenvoltura que paira vaidosamente acima do conteúdo para mergulhar decididamente no objeto e considerar apenas o movimento próprio do conteúdo e apenas trazer à consciência este trabalho próprio da razão[36].

Esse é método filosófico como qual a filosofia aborda da história: desvendar por trás dos acontecimentos e eventos históricos sua racionalidade imanente. Por isso, como visto antes, para Hegel, o único pensamento que a filosofia traz para o tratamento da história é o conceito simples de razão, uma vez que esta governa o mundo; por conseguinte, a história universal é também um processo racional. Seu estudo, afirma Hegel,

resultou e deve resultar em que nela tudo acontece racionalmente, que ela foi a marcha necessária do espírito universal; espírito cuja natureza é sempre idêntica e que a explicita na existência universal[37].

A marcha necessária e universal do espírito é o processo por meio do qual a razão dirige a história, uma vez que o espírito nada mais é do que o desenvolvimento histórico da razão em seu conceito. Mas como a razão dirige o mundo? De que meios ela se serve para alcançar o seu objetivo final: a liberdade? – Das paixões e interesses dos homens. Embora a liberdade em si seja essencialmente uma ideia interior não desenvolvida, os meios, diz Hegel

são, ao contrário, algo exterior, o fenômeno que surge aos olhos, apresentando-se, imediatamente, na história. Ao primeiro relance, a história convence-nos de que as ações dos homens derivam de suas necessidades, de suas peixões, de seus interesses, de seu caráter e de seus talentos, de tal forma que nesse espetáculo de atividade são apenas as necessidades, paixões e interesses se manifestam como motivo e intervêm como a força principal[38].

Mas como a razão se serve desses meios externos, para escrever a liberdade na chão da história? - Fazendo com que as paixões e os interesses particulares dos homens trabalhem contra si próprios; desgastem-se e se anulem, para que, daí, a razão possa emergir. É o que Hegel chama de “astúcia da razão”. Como assim? O interesse particular, argumenta Hegel, é

inseparável da participação do universal, pois é também da atividade do particular e de sua negação que resulta o universal. É o particular que se desgasta em conflitos, sendo em parte destruído. Não é a ideia geral que se expõe ao perigo na oposição e na luta. Ela se mantém intocável e ilesa na retaguarda. Isso se deve chamar astúcia da razão: deixar que as paixões atuem por si mesmas, manifestando-se na realidade, experimentando perdas e sofrendo danos, pois esse é o fenômeno no qual uma parte é nula e a outra afirmativa. O particular geralmente é ínfimo perante o universal, os indivíduos são sacrificados e abandonados. A ideia recompensa o tributo da existência e da transitoriedade, não por ela própria, mas pelas paixões dos indivíduos[39].

Se as paixões trabalham contra si próprias, anulam-se em suas contendas, então, não há como negar que os indivíduos não passam de suportes de um plano tecido pela razão em seu curso para escrever a história. Tudo indica que é isso mesmo que Hegel tem em mente, quando afirma que

os seres humanos conseguem o que querem de imediato. Porém, ao concretizar seus interesses, eles realizam algo mais abrangente; algo que se oculta no interior de suas ações, mas que não está em sua consciência ou em sua intenção[40].

Essa a dialética entre o universal e o particular, entre a razão e as paixões humanas, compreendem momentos,

que intervêm em nosso objeto: o primeiro é a ideia, o segundo, as paixões humanas; um é a urdidura do tecido, o outro, a trama do grande tapete da história universal que se desenrola perante nós. O centro concreto de ambos é a liberdade moral no Estado[41].

Como exemplo dessa urdidura da razão, Hegel imagina um homem que, por vingança, ateia fogo na casa de seu inimigo. As implicações de sua ação se voltam contra ele, pois sua ação individual o faz ver que aquilo que visava, vingar-se de seu inimigo, repercute sobre um grupo maior de pessoas que nada tinham a ver com o ato em si praticado por ele. Nesse ato, diz Hegel,

já se manifesta a ligação entre a ação imediata e outros acontecimentos (...), que não se relacionam diretamente a esse ação”[42].

Tal ação pode provocar, continua Hegel,

um grande incêndio, que destrói bens e propriedade de muitas outras pessoas (...), custando até a vida de muitos (...). Mas o ato ainda encerra uma outra determinação geral: o objetivo do autor era apenas a vingança contra um indivíduo por meio da destruição da propriedade deste; porém, essa destruição é também um crime, e como tal merecedora de punição (...). Devemos depreender desse exemplo a ideia de que a ação imediata pode conter algo além do que está na vontade e na consciência do autor. Tal exemplo nos mostra ainda que a substância da ação, e consequentemente o ato em si, volta-se contra aquele que o praticou; será a causa de uma reação contra ele, e acabará por prejudicá-lo[43] .

O ESTADO

É assim que se dá a união entre o universal e o particular, a razão e o subjetivo. No exemplo acima, o indivíduo é levado a descobrir que sua ação pode prejudicar outras pessoas e que, por isso, é obrigado a responder por ela. Afinal, como ele não está só no mundo, é premido a levar em conta as conseqüências de sua ação. Caso se recuse, a sociedade o obriga a fazê-lo. Mas para tomar consciência daquela união, o homem deve ser educado a querer o universal, que nada mais é do que o Estado, o qual, diz Hegel,

é o fundamento e o centro dos outros lados concretos da vida do povo: a arte, o direito, a moral, a religião e a ciência. Toda a ação espiritual tem como única finalidade tomar consciência dessa união, ou seja, de sua liberdade. Entre as manifestações dessa união consciente, a religião[44] está em primeiro lugar[45].

Afinal, a filosofia divide com a religião o princípio de que a razão governa o mundo. A religião ensina que

o mundo não foi abandonado ao acaso e causas externas, mas é regido por uma Providência (...). A verdade que uma providência divina preside os acontecimentos universais equivale ao princípio [da razão] citado, pois a Providência divina é a sabedoria que, com um poder infinito, concretiza os seus objetivos, isto é, o objetivo absoluto e racional do mundo[46].

Esclareça-se, no entanto, que filosofia, diferentemente da religião, não faz uso da fé, mas, sim, da razão, com o que é racional em si. Mesmo assim, a religião é de suma importância para promover a união entre a vontade particular, subjetiva e a objetiva. É na religião, que trabalha com a sensibilidade e, por isso, está mais próxima do homem comum, diz Hegel,

que o espírito existente, o espírito do mundo, se conscientiza do espírito absoluto; nessa consciência de sua essência, a vontade do homem renuncia o seu interesse particular. Na devoção, ele deixa de lado os seus interesses[47].

A religião tem, portanto, um papel extremamente importante na educação do povo, uma vez que fala na sua linguagem, que é da representação e do sentimento. Daí a crítica de Hegel aos revolucionários franceses que não só propagaram os ideais iluministas, que incluíam um sentimento anticlerical e anti-religioso, como também exerceram, na prática, esses ideais, muitas vezes de forma violenta. Ora, para Hegel, como assim esclarece Solsona,

os iluministas franceses anti-religiosos, esqueciam que ‘os princípios da razão da realidade efetiva têm a sua garantia última e suprema na consciência religiosa, no subsumir sob a consciência a verdade absoluta”. Para Hegel e Turgot, a religião resolve o problema que Kant, por exemplo, não poderia solucionar: quem garante que os monarcas ou os indivíduos que detêm o governo atuem justamente? A resposta hegeliana e de Turgot vai no sentido de que a única garantia é a religião, que é “compromisso mais elevado” e que reside na consciência mais íntima do monarca. A religião é o que mais íntima e profundamente dirige os homens. Por isso, as leis por só “não poderiam suportar a resistência duradoura, a contradição e os ataques do espírito religioso contra elas, mesmo quando estivessem determinadas e extrinsecamente promulgadas. Desta forma, ainda que o seu conteúdo pudesse ser o mais verdadeiro estas leis fracassariam nas consciências, o espírito das quais seria diferente do espírito das leis, e então este espírito não as sancionaria”[48].

Diferentemente da religião, a filosofia não tem capacidade para conduzir o povo a determinar a história. Acreditar que a filosofia poderia desempenhar tal papel, não passava de uma pretensão ingênua dos iluministas e dos revolucionários franceses. A filosofia é, para Hegel, o saber absoluto e supremo, somente acessível a uma elite educada. A religião é também essa forma de saber, mas porque é um saber representativo e sensível, é mais acessível ao povo como um todo. É o próprio Hegel quem atribui, como se viu antes, esse privilegio à religião, isto é, de guia da humanidade. É o que diz Hegel na seguinte passagem:

o princípio geral que se manifesta no Estado torna-se um objeto da consciência, a forma sob a qual tudo se torna real, é isso que constitui a cultura de uma nação. Porém, o conteúdo determinado que recebe a forma de universalidade, e que existe na realidade concreta que é o Estado, é o próprio espírito do povo. O Estado real é animado por esse espírito em todos os seus interesses particulares: guerra, instituições, etc. Mas o homem precisa também conhecer esse seu espírito, a sua própria essência, e adquirir consciência de sua unidade original, pois dissemos que a moralidade é a unidade da vontade subjetiva e da vo9ntade universal. Porém, o espírito tem que se conscientizar-se disso formalmente, e o centro desse saber é a religião. A arte e a ciência são apenas aspectos e formas diversas desse mesmo conteúdo (...). E religião é o lugar em que um povo a apresenta a si próprio a definição do que ele considera verdadeiro. Uma definição contém tudo o que diz respeito à essência de um objeto, reduzindo sua natureza a uma simples determinação básica, como espelho para toda a determinação – a alma universal permeando todo o particular. A representação de Deus constitui, assim, o fundamento universal de um povo[49].

É assim que o Estado torna-se objeto da consciência do povo, que apreendeu com a religião a querer o que é universal. Agora, sim, pode-se resumir tudo o que foi dito dobre aquela instituição. Mais do que um simples aparelho administrativo, o Estado é o centro sobre o qual repousa a união do lado subjetivo e objetivo da vontade. Como afirma Hegel, e já citado anteriormente, a existência objetiva dessa união

é o Estado, o qual é, assim, o fundamento e o centro dos dois lados concretos da vida do povo: a arte, o direito, a moral, a religião e a ciência. Toda ação espiritual tem como única finalidade tomar consciência dessa união, ou seja, de sua liberdade[50].

Hegel considera, pois, o Estado como a totalidade moral, um todo espiritual que engloba a cultura de uma nação. Esta é o que é o seu Estado. Como ele diz , o Estado é

essa totalidade temporal é uma essência, o espírito de um povo. Os indivíduos pertencem a ele; cada um é o filho de seu povo e, igualmente, um filho do seu tempo – se o seu Estado se encontra em processo. \ninguém fica atrás de seu tempo e, muito menos, o ultrapassa. Essa essência espiritual - o espírito de seu tempo – é sua; ele é um representante dela; é dela que ele surge e é nela que ele se baseia. Para os atenienses, a palavra Atenas tinha um duplo significado: em primeiro lugar, designava um complexo de instituições políticas; em segundo, era a deusa que representava o espírito do povo e sua unidade [51].

O Estado expressa, portanto, o espírito do seu povo que é, como dirá Hegel

um espírito determinado, que se ergue em meio a um mundo objetivo. Ele existe e persiste na forma do culto religioso, nos costumes, em sua constituição e em suas leis políticas – em todo complexo de suas instituições, dos acontecimentos e fatos que compõem a sua história. É essa sua obra; é isso que é essa nação particular é. Os povos são suas ações. Todo inglês dirá: ‘Nós aqueles que navegam o oceano, que dominam o comércio mundial, as Índias Orientais e suas riquezas; aqueles que têm um parlamento e um tribunal de jurados, etc. A atitude do indivíduo em relação a esse espírito é apropriar-se de tal existência substancial, fazendo dela a sua índole e capacidade, para que tenha um lugar definido no mundo – para que ele seja alguma coisa -, pois ele considera a maneira de ser do povo a que pertence como um universo fixo, ao qual ele deve incorporar-se. É nessa sua obra, nesse seu universo, que o espírito do povo se compraz e encontra satisfação[52].

O Estado é essa totalidade espiritual, que paira acima da sociedade e lhe dá sentido existencial. O todo é o Estado porque somente nele os indivíduos realizam-se e encontram satisfação. É polis grega atualizada em suas determinações modernas.



[1] Professor da Universidade Regional do Cariri (URCA).

[2] Smith, Adam. A riqueza das Nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. – 2.ed. – São Paulo: Nova Cultural, 1985, Vol.I., p. 49 (os grifos são nossos).

[3] A esse respeito ver Teixeira, Francisco José Soares. – Trabalho e Valor: Contribuição para a crítica da razão econômica. São Paulo: Editora Cortez, 2004.

[4] Hegel, G. W. Friedrich. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epítome. – Lisboa: Edições 70, Vol.I., § 1., p. 69.

[5] Idem,Ibidem., § 2., p. 69.

[6] Idem,Ibidem., §19., p. 89.

[7] Idem,Ibidem., §19., p. 89.

[8] Hegel, Georg Wilhelm Friedrich. Filosofia da História. – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008., p. 16.

[9] Idem,Ibidem., p. 16.

[10] Idem,Ibidem., p. 16.

[11] Idem,Ibidem., p. 19.

[12] Idem,Ibidem., p. 19.

[13] Idem,Ibidem., p. 19.

[14] Idem,Ibidem., p. 20.

[15] Idem,Ibidem., p. 20.

[16] Idem,Ibidem., p. 19.

[17] Idem,Ibidem., p. 18.

[18] Idem,Ibidem., p. 56.

[19] Idem,Ibidem., p. 20.

[20] Idem,Ibidem., p. 57.

[21] Idem,Ibidem., p. 59.

[22] Idem,Ibidem., p. 39-40 (os grifos são de minha responsabilidade).

[23] Kant, Immanuel. Textos Selecionados/ Fundamentação da Metafísica dos Costumes. – São Paulo: Abril Cultural, 1980 (Os Pensadores); p.116.

[24] Idem,Ibidem., p. 116.

[25] Idem,Ibidem., p. 116.

[26] ____ Sobre um Suposto Direito de Mentir por amor à Humanidade. - Editora Vozes: Petrópolis, 1985., p. 125/26, in Textos Seletos.

[27] Solsona, Gonçal Mayos. O que é a liberdade para Hegel? – acesso à internet em 26/11/11.

[28] Hegel, Filosofia da História., p. 29.

[29] Idem,Ibidem., p. 29.

[30] O que é a liberdade para Hegel, op. cit.

[31] Hegel, G. W. F. Filosofia do Direito. Tradução de Müller, Marcos Lutz. – Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas (textos Didáticos, nº 32, maio de 1998)., § 311., p. 117.

[32] Idem,Ibidem. § 311, nota 1.

[33] Idem,Ibidem.,§ 311, nota 2.

[34] Furet, François. Marx e a Revolução Francesa. – Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar Editor.

[35] Filosofia do Direito., p. 43.

[36] Müller, Marcos L. Exposição do Método Dialético em O Capital, in Boletim SEAF (Sociedade de Estudos Filosóficos), número 2 – Belo Horizonte, 1982., p. 25.

[37] Filosofia da História., p. 18.

[38] Idem,Ibidem., p. 26.

[39] Idem,Ibidem., p. 35.

[40] Idem,Ibidem., p. 31.

[41] Idem,Ibidem., p. 31.

[42] Idem,Ibidem., p. 31.

[43] Idem,Ibidem., p. 31-32.

[44] Depois da religião, vêm a arte e a filosofia.

[45] Idem,Ibidem., p. 47.

[46] Idem,Ibidem., p. 19.

[47] Idem,Ibidem., p. 47.

[48] O que é a liberdade para Hegel., op. cit.

[49] Idem,Ibidem., p. 47-48.

[50] Ibidem,Idem., p. 47.

[51] Idem,Ibide., p. 50.

[52] Idem,Ibidem., p. 68.